Uma história sobre um homem que desejava seguir os seus sonhos que se encontravam na música e de repente morre. Ele tenta a todo custo retornar à Terra enquanto ensina uma pequena alma a entender qual o sentido de sua existência.
Muitas vezes ouço comentários falando sobre animações serem algo para criança ou que não possuem assuntos profundos o suficiente para interessar públicos mais adultos. Sempre discordei dessa afirmação principalmente em tempos atuais. Os roteiros foram ficando progressivamente mais complexos, transformando o que parecia ser uma diversão para públicos mais jovens em algo que atraia outros públicos. A Pixar costuma surpreender produzindo alguns longa metragens realmente interessantes como Divertida Mente e Soul. Animações que trabalham questões filosóficas, fazem críticas sociais, pontuam problemas contemporâneos. Sempre recomendo àqueles que ficarem interessados a esquecerem um pouco a aparência mais infantil e tentar entender aquilo que se encontra nas entre linhas.
Soul é um filme produzido em parceria pela Walt Disney Pictures e pela Pixar, com 101 minutos e que foi disponibilizado no Disney + em dezembro de 2020. Foi uma ação inédita da Disney que não tinha como disponibilizar nos cinemas por conta das restrições advindas da pandemia. Ela aproveitou o lançamento do streaming do Disney + e usou Soul como uma forma de atrair mais assinantes. Soul foi dirigido por Pete Docter (de Inside Out, Toy Story 1 e 2), produção de Dana Murray (de Ratatouille, Procurando Nemo) e roteiro de Pete Docter, Mike Jones e Kemp Powers. Infelizmente por conta de todos os problemas restritivos, Soul não foi um filme lucrativo para a Disney, e não se pagou. É uma pena porque a animação é muito bem feita e representa aquilo que a Pixar tem de melhor. Posso elogiar com facilidade a ambientação em Nova York e no Outro Mundo, a trilha sonora e o design de personagens. Todos os personagens possuem personalidade, algo importante em um longa metragem dessa natureza. A trilha sonora oriunda do blues também é bem legal com várias músicas animadas quando precisavam ser ou mais melancólicas.
Joe Gardner é um professor de música do ensino médio que recebe a notícia que foi efetivado no cargo no início da história. Ele é um homem mais velho que ainda vive com sua mãe que fica feliz por finalmente seu filho conseguir um emprego que lhe dê estabilidade. Só que Joe não parece muito feliz com a novidade. Isso porque seu sonho é poder ser músico de jazz e mostrar todo o seu potencial criativo. Nesse mesmo dia, ele recebe a ligação de um de seus antigos alunos convidando-o para substituir um pianista na banda de Dorothea Williams, uma estrela do jazz. Ele segue para um teste de som com ela, e Joe acaba arrasando no piano e chamando a atenção da cantora, que inicialmente não havia dado muita bola para ele. Feliz por ver que seus sonhos podem finalmente estar se realizando, Joe comemora na rua até que sofre um acidente bobo caindo da tampa de um bueiro. Quando Joe se dá conta ele está em uma espécie de escada rolante seguindo em direção a uma luz. Para sua completa surpresa ele está seguindo em direção a uma outra vida, mas Joe corre na direção oposta tentando fugir de seu destino. É então que ele cai em uma espécie de limbo onde almas ainda não nascidas se desenvolvem e buscam descobrir suas paixões antes de descerem à Terra. Fingindo ser um dos tutores para descobrir um meio de voltar à Terra, Joe é pareado com a alma 22, uma alma agitada, sarcástica e inteligente que não deseja ir para o mundo dos vivos. Para voltar à Terra, Joe faz um acordo com a 22: ele quer o selo que permite a ela seguir para a Terra em troca de ela conseguir um passe para ser deixada em paz. É aí que a aventura começa...
Essa é uma história sobre um homem que ama a música. É inegável o quanto o jazz faz parte da vida de Joe. Ele fala diferente toda vez que começa a comentar algo a respeito de sua paixão. Só que ao mesmo tempo, perseguir o seu sonho lhe provocou privações. Algo que sua mãe argumenta estar preocupada já que ele precisa de alguma renda que possa fazer com que ele possa sustentar a si próprio. Ao se negar a dar aula e ter alguma estabilidade, ele se coloca novamente em uma estrada sem direção. Ao mesmo tempo, Joe não consegue se imaginar sem sua música. Achei que nesse ponto a história peca porque esse plot do Joe não é inteiramente concluído. Não sabemos exatamente qual é a escolha feita pelo personagem, algo deixado bem no ar. Podemos fazer algumas suposições como o fato de o personagem parecer ter conseguido seus objetivos. Não é spoiler, gente, porque nem eu sei o que aconteceu direito. Uma das cenas mais bonitas e bem representadas de que sentimentos o jazz gera em Joe é quando ele está tocando e o filme representa como se o personagem estivesse flutuando em um cenário estrelado. As notas musicais são como pequenas ondas batendo em um mar plácido.
Precisamos falar da 22. Se Joe se encontra em uma encruzilhada para entender o que ele precisa fazer de sua vida, a pequena alma não fica atrás. O grande problema dela é 22 não saber o que a atrai. Que tipo de atividade desperta o seu coração? Joe e 22 percorrem todo um salão de proporções infinitas buscando algo para ela e não conseguem encontrar. Se pararmos para pensar esse é o tipo de coisa que conseguimos despertar em alguém. Uma vocação ou uma paixão não são facilmente compreensíveis. 22 apenas ainda não teve a oportunidade de conhecer as atividades de perto. Isso porque nesse limbo onde eles se encontram, os cinco sentidos não funcionam corretamente. Então, a personagem não pode sentir o vento no rosto, o gosto de uma pizza, o cheiro de uma flor. Isso neutraliza as suas sensações e faz todas as coisas serem estranhas e distorcidas. Outra coisa que fica patente é que a personagem não gosta de ser forçada a fazer as coisas. Ela é um espírito livre e que gosta de experimentar o mundo à sua maneira. Quando aparece Joe que tem uma abordagem com ela totalmente diferente, 22 se importa com os seus problemas e tenta ser útil de alguma forma.
Essa é uma animação que fala muito sobre propósito e se somos ou não capazes de descobri-lo em nossas vidas. O que constitui uma vocação? É a partir destes questionamentos que nossas almas se colocam por toda a vida. Mas, a pergunta que fica é: temos que ter um objetivo na vida? Algo que fica patente ao longo de toda a animação é de o quanto cada dia de nossas vidas é uma experiência. Seja boa ou ruim, todas as coisas agem como mais um bloco na formação de nosso caráter. São as experiências, as relações e os contatos que regem aquilo que somos. Se desejamos perseguir um objetivo ou não, isso é secundário. Podemos apenas viver de acordo com o que acontece a cada dia, experimentando sensações novas a todo o momento. Temos duas abordagens completamente distintas nesse sentido: Joe possui um objetivo claro em vista enquanto 22 ainda está procurando aquilo que ela quer para si.
Soul é uma jornada de auto-conhecimento. Joe está em busca de si e de seu propósito. Ele tem medo de errar e desperdiçar sua vida com coisas que não lhe fazem sentido. No entanto, algumas experiências simples mostram o quanto ele é importante para as pessoas que o cercam. Por exemplo, a menina de sua turma que gostaria de tocar um instrumento e acaba sendo impedida pelos pais porque eles avaliam que isso não dá futuro. Quase um espelho da vida de Joe. Todo o incentivo que Joe dá para a sua vida é importante para que ela consiga ter forças para fazer suas escolhas. O que Joe não percebe também é que é possível errar, e tomar outros caminhos. 22 o cutuca várias vezes nesse sentido, apontando falhas na maneira em que ele imagina sua vida. Ou até pré-concepções que ele possui. Uma cena bem legal é em relação ao barbeiro que ele sempre frequenta e conversa somente sobre jazz. Joe nunca parou para pensar se o seu amigo teria outros interesses e ficou espantado quando viu isso. Foi preciso Joe morrer para que ele fosse capaz de reavaliar o que ele estava fazendo com sua vida. Essa é uma jornada ao contrário que funciona perfeitamente ligada à proposta narrativa.
Mas, é através de 22 que vemos uma camada mais profunda de Soul. Porque o filme também uma viagem contemplativa. Quando buscamos analisar a vida como algo dinâmico e cujo sentido está na apreciação das pequenas coisas. Seja uma música, um dia ensolarado, as folhas de uma árvore que caem. Ficamos tão preocupados com nossas problemáticas do cotidiano que nos esquecemos que a vida é efêmera; ou seja, estamos aqui por pouco tempo em uma escala cósmica. Cabe a nós aproveitar esse tempo na Terra da melhor maneira possível. 22 fica extasiada quando se vê encarando a materialidade do mundo real. A experiência é completamente diferente de quando ela estava no Salão de Todas as Coisas em busca de um sentido para si. Tudo ganha uma perspectiva diferente. As sensações geram reações para nós. Apesar de ser um filme bem veloz tem alguns belos momentos em que os personagens estão apenas apreciando o que a vida lhes deu.
Soul é uma das animações mais bonitas que pude conferir esse ano. Tem muito assunto para conversar sobre a animação, uma prova de uma direção e um roteiro felizes. Na minha opinião, não é um filme voltado para um público mais jovem porque ele suscita algumas discussões e reflexões que podem confundir a cabeça. Apesar de que todos os conceitos apresentados são feitos de um jeito bem simples e didático. O filme é repleto de metáforas sobre a vida e como apreciar a realidade com mais alegria. Os personagens são bem desenvolvidos e a narrativa tem um bom ritmo do começo ao fim. Me recordo que vi o filme de uma tacada só, sem dar aquelas pausas e paradas. Era tão divertido que eu queria seguir direto até o final. Recomendadíssimo.
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