É possível toda obra ter um pouco das concepções de mundo do autor? Sempre um tema controverso, expor suas ideias em uma narrativa pode revelar mais sobre a visão de mundo de um escritor. Neste artigo vamos discutir como isso interfere na apresentação da narrativa.
Ficcionistas são capazes de elaborar tramas partindo de ideias imaginadas até construírem histórias completas. Suas narrrativas podem entreter, mostrar realidades diferentes, criticar ou favorecer determinado ponto de vista; podem ser um pouco de cada coisa por atribuir mensagens mesmo de modo inconsciente. Esta matéria explora a questão do ponto de vista do autor, do quanto essa pode interferir na condução da história e as possíveis maneiras de favorecer a qualidade da mesma ou tornar passível de críticas.
Alfredo Bosi, em seu livro Formações Ideológicas na Cultura Brasileira, nos fornece pistas ao nos ajudar a entender o quanto as definições de ideologia podem ser ligadas à escrita quando o autor interliga história e literatura. A visão ideológica do autor costuma transparecer na ficção, do mesmo modo as obras clássicas podem demonstrar os pensamentos vigentes da época:
“A ideologia estaria difusa na obra, pois o autor não poderia subtrair-se, enquanto homem do seu tempo, aos discursos de classe ou de grupo social que pretendem explicar o funcionamento da sociedade, os seus valores ou, mais ambiciosamente, o sentido da vida.”
Partindo disso, é preciso tomar dois cuidados. Primeiro evitar julgar aquilo que ele escreve a partir do que ele pensa. Um escritor de ficção policial não seria um serial killer, por exemplo. Bosi adverte sobre o fato de que a visão de um autor não ser um “núcleo vivo, o fogo, a alma da sua poeticidade, que é intuitiva, figural, imaginária”. Antes de criticar neste aspecto, seria melhor focar na qualidade da obra em vez de avaliar o autor. Por vezes a intenção da narrativa foi de chocar ou mesmo criticar alguma ideia colocada nas entrelinhas, portanto a primeira impressão na leitura pode ser errada.
O segundo cuidado é o ponto principal que eu queria trazer aqui: o autor colocando sua visão de mundo na narrativa. Mas, é preciso destacar que o cuidado destacado acima se repete aqui. Para Bosi, é preciso enxergar com outros olhos aquilo que está sendo lido até porque a literatura tem o poder de reapresentar para nós certos temas. Do contrário teríamos uma visão reducionista e uniforme sobre o que está se tentando apresentar, uniformizando e generalizando noções.
O leitor pode identificar isso a partir de dois pontos: primeiro é possível visualizar características expandidas da visão retratada na narrativa; o segundo é quando partimos do geral para julgar o particular. Mas, como isso se dá na prática? Vamos ver dois exemplos para entender que cuidados devemos ter ao avaliar duas obras para entendermos como os autores impuseram ou não suas visões no que escreveram.
Preconceito racial como elemento do terror
O historiador Marc Bloch, em seu livro Apologia da História, afirma que um autor é fruto de seu tempo. Agora, imagine-se pegando um romance de Lovecraft, o lendário autor de terror pela primeira vez. Suas criaturas fabulosas e a maneira como ele coloca um terror visceral no leitor. Só que alguma coisa incomoda. Afinal estamos no século XXI e nossa sociedade é mais diversa. Certamente temos amigos pertencentes a diferentes etnias. Assim em vez de se arrepiar diante do texto de O Horror em Red Hook, o leitor se entristece ao ler o seguinte trecho:
“A população é uma confusão e um enigma; elementos sírios, espanhóis, italianos e pretos se aglomerando um sobre o outro, com fragmentos próximos de regiões onde moram escandinavos e americanos. É uma babel de som e sujeira [...]”
Esta é a apresentação do bairro de Red Hook, onde acontecerá o caso de terror cujos imigrantes ― AVISO DE SPOILER ― são os responsáveis, em especial Robert Suydam, membro de família holandesa. O desfecho do conto revela que mesmo o caso tendo chegado ao fim, ocorrerão outros apenas por causa das pessoas presentes naquele lugar. Em suma, Lovecraft usa do próprio preconceito estrangeiro e racial ao desenvolver esta história de terror e ainda outras de descrições semelhantes sobre as pessoas negras:
“[...] um árabe de detestável boca negroide [...]”
Victor LaValle fez uma boa releitura desse romance em seu A Balada de Black Tom. A ideia é recontar O Horror de Red Hook e dar oportunidade a um personagem negro mostrar seu ponto de vista em uma ambientação centrada nos anos 20. Lavalle expõe os problemas sociais existentes na realidade de uma pessoa negra, fazendo uma discussão sobre o preconceito da época enquanto conta sua história. Visto de um ponto comercial esta é uma abordagem positiva visando discutir a perspectiva de personagem negro. A Balada de Black Tom vai além deste tópico ao recontar também a manifestação sobrenatural seguindo a linha de O Horror em Red Hook e não deve em nada a Lovecraft no emprego do terror, trazendo para si novos leitores e ressignificando uma leitura cuja visão era limitada.
Um adendo: a edição brasileira de A Balada de Black Tom publicada pela Editora Morro Branco traz no final a versão integral de O Horror em Red Hook permitindo aos leitores fazer uma relação entre as duas leituras.
Visão religiosa
Só deixando claro para fins de análise o cuidado ao trabalhar visões religiosas. Não quero trazer aqui que tal ou tal religião é superior a outra. Trago apenas a visão do autor a respeito do tema. Principalmente quando falamos de obras polêmicas como o livro nacional Angus: O Primeiro Guerreiro, escrito por Orlando Paes Filho. A ambientação é bem clichê no gênero fantástico: um jovem guerreiro criado entre os vikings que decide lutar a favor da Bretanha. Sim, proposta semelhante a O Último Reino de Bernard Cornwell. A diferença é que Orlando publicou a primeira versão de seu livro antes de Cornwell.
A narrativa segue a trajetória do protagonista Angus enquanto ele se envolve em batalhas épicas entre exércitos e ganhando fama e glória. O enredo trama bem as diferenças culturais entre os adversários, mostrando as qualidades militares de cada lado, focando nas lutas para o prazer daqueles que curtem esse gênero de história, e então no fim do primeiro volume ― ALERTA DE SPOILER ― entrega uma profecia destinada aos descendentes do protagonista, ao de lutar contra o que o cristianismo considera maléfico.
“― [...] Deus não ordenou nada disso, Angus, mas o homem é quem ordena a si mesmo tanta injustiça e mortandade, por ser ele escravo do pecado, pecado esse que Deus tanto deseja retirar-nos da alma. Mas em Sua Santa liberdade, a fim de que tenhamos o nosso mérito em nossas virtudes praticadas, Deus nos pede que tomemos nossas decisões e sejamos senhores de nossos caminhos, sob Suas bênçãos.”
Como disse antes, não há problemas em favorecer uma religião no decorrer da narrativa. O problema todo é que falta a discussão entre os lados antagônicos na história. Só que Orlando prefere partir de uma ideologia que se foca no geral para julgar o particular. Se ele tivesse favorecido o cristianismo desde o começo, mostrando qual seria o tom da narrativa, teria agradado aqueles que gostariam de permanecer na narrativa acompanhando a jornada do herói e alertado os demais sobre a proposta da narrativa.
Como último exemplo uso um clássico de nossa literatura: O Seminarista, de Bernardo Guimarães. A história trata do jovem Eugênio e sua carreira como padre. Ele descobre estar apaixonado e a narrativa se foca nesse dilema entre amor e religião. A diferença aqui é que o narrador interfere diretamente na história, colocando a culpa do dilema do jovem nas imposições injustas do catolicismo conforme a visão dele. Ou seja, o autor tece severas críticas ao cristianismo neste romance, pois o narrador opina quanto à condição do protagonista durante o seminário em vez de apenas focar em contar a história e deixar a interpretação livre ao leitor. Poderíamos facilmente criticar a abordagem do autor, mas ele revela algo importante a respeito do narrador logo no começo do romance, como demonstra essas duas passagens do capítulo 2:
“Um dia aconteceu-lhes um estupendo e singular incidente, que não posso deixar de referir.” e
“Talvez o leitor não creia nessas coisas que chamam abusões do povo [...]” [grifos do autor da matéria]
Na primeira citação o narrador conjuga o verbo poder na primeira pessoa, e na segunda passagem ele quebra a quarta parede e fala com o próprio leitor sobre a narrativa. Assim o narrador revela a nós que ele se reconhece no papel, ou seja, mesmo não sendo personagem, o narrador também participa da história. Assim, justifica a atitude de opinar sobre a história de Eugênio.
A criatividade disposta na forma de conduzir a narrativa será uma ferramenta essencial para transformar visões inteligentes em bons trabalhos narrativos. É diferente de contar uma história com uma visão clara sobre o que ele pensa sobre o mundo, mesmo tendo a intenção de contar uma boa história. É preciso também abrir espaços a discussões na ficção, buscar pontos divergentes e transcrevê-los em personagens diversos, favorecendo assim a democracia na literatura.
Referências:
Formações ideológicas na cultura brasileira, de Alfredo Bosi
Ficha Técnica:
Nome: A Balada de Black Tom
Autor: Victor LaValle
Editora: Morro Branco
Gênero: Terror
Tradutor: Petê Rissatti
Número de Páginas: 160
Ano de Publicação: 2018
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Ficha Técnica:
Nome: Angus - O Primeiro Guerreiro
Autor: Orlando Paes Filho
Editora: Novas Páginas
Gênero: Fantasia
Número de Páginas: 368
Ano de Publicação: 2017
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Ficha Técnica:
Nome: O Seminarista
Autor: Bernardo Guimarães
Editora: Principis
Número de Páginas: 128
Ano de Publicação: 2019 (nova edição)
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