Fushi é um artefato imortal senciente criado por uma criatura com aspectos divinos. A característica de Fushi é copiar qualquer ser vivo que ele teve contato e que tenha morrido. Pouco a pouco as experiências que ele vai tendo vão fazendo com que ele deixe de ser um simples artefato que apenas reage a estímulos e vai se tornando alguém capaz de tomar suas próprias decisões.
Em Sociologia, dizemos que o ser humano é formado a partir de suas experiências e suas interações com outros contextos e indivíduos. Lev Vygotsky usou esse conceito de desenvolvimento proximal para seus estudos em psicopedagogia. Mas, podemos usar suas ideias para o desenvolvimento em geral, não limitados apenas ao desenvolvimento na infância e na adolescência. Experimentar coisas é parte do aprendizado. E leia-se esse experimentar ao viver novas situações ou conhecer/conviver com pessoas. São como blocos que vão sendo inserindo em nossas vidas, com cada tijolo formando uma parcela do todo. Quando pequenos somos uma página em branco; quando mais velhos somos uma casa quase completamente formada. Afinal, todos os dias vivemos novas experiências. Yoshitoki Oima pensou uma história onde o protagonista é literalmente uma página em branco e procura explorar suas relações com o mundo que o cerca.
Fumetsu no Anata E ou To Your Eternity é uma animação baseada no mangá homônimo da mestra Oima e que foi produzido pelo studio Brain's Base (Durara e Baccano) que teve 20 episódios em sua primeira temporada e terá uma segunda no futuro. Apenas cinco arcos do mangá foram adaptados (até o volume 9) e já existem mais cinco produzidos sendo que dois desses arcos (o de Takunaha e o de Jananda) equivalem a um arco dos novos. Então tem o suficiente para mais de vinte episódios eventualmente. A adaptação ficou bem fiel ao mangá e isso se deve bastante ao trabalho do diretor Masahiko Murata, um profissional experiente que chegou a trabalhar em vários episódios de Naruto principalmente no storyboard. Ou seja, ele sabe fazer essa transposição do mangá para uma animação. Gostei também de ver mais um retorno de uma cantora que não via há muito tempo: Hikaru Utada, que é a responsável pela opening e algumas lyrics da série. Assim como Megumi Hayashibara (que retornou compondo a opening da nova versão de Shaman King) ela havia ficado bastante tempo fora do circuito de animes.
A animação em si é muito boa com uma mescla de elementos desenhados e algumas coisas (bem poucas) de CGI. O resultado final é uma animação que pode ser fluida em momentos dramáticos e estática quando precisa trabalhar o emocional dos personagens. Isso sem perder a beleza do design de personagens ou do pano de fundo onde se passa a história. Oima criou uma série que emprega influências culturais vindas de várias partes do mundo e isso poderia dificultar a vida dos animadores caso eles não soubessem bem de onde ela tirou o pano de fundo. Logo de cara temos um cenário que lembra um pouco as civilizações ameríndias. Mais para a frente uma cidade que tem como base as primeiras cidades da Mesopotâmia. O trecho em Jananda me remeteu às cidades cretenses depois de arruinadas. Então existe um elemento de progressão cultural que se reflete nos cenários empregados. E essas passagens acontecem bruscamente. A trilha sonora é adequada à série e não chama a atenção propriamente. Nem deve. Fumetsu não é uma série dinâmica em si, mas emotiva, reflexiva. E a trilha precisa ser tranquila o suficiente para transmitir isso ao espectador.
Um artefato místico é jogado na Terra na aurora dos tempos. Ele foi criado por um ser que conhecemos apenas pelo nome de Beholder (ou Aquele que Tudo Vê, em algumas traduções) e este artefato tem a propriedade de adotar a forma, as memórias e características de qualquer coisa com quem ele entre em contato. Inicialmente ele entra em contato com uma pedra e adota sua forma por muito tempo. Depois ele assume a forma de um lobo branco que morreu em cima dele e finalmente ganha a capacidade de caminhar. No começo, o artefato não tem nome e nem muita consciência de si. Vive com um menino em um lugar remoto no meio da neve. Será com esse menino que o artefato vai aprender a necessidade de sobreviver. Depois que o menino morre, o lobo, que agora assumiu a forma desse menino, vai em busca de novas experiências. Pouco a pouco, essas experiências vão se empilhando e ele adota novas formas. Uma jovem menina chamada March dá o nome de Fushi (Imortal, em japonês) a ele. Fushi vai aprendendo a se comunicar com os outros, a falar e outras habilidades e se dando conta do mundo que o cerca. Mas, logo ele percebe que além das dificuldades da vida das pessoas com quem ele tem contato, criaturas chamadas Nokkers estão atrás de suas memórias. Essas criaturas podem assumir toda uma variedade de formas diferentes e caberá a Fushi deter o avanço delas, caso contrário ele perderá toda a noção sobre si mesmo.
Acima de tudo Fumetsu é uma história sobre a vida e como as experiências que vivemos são importantes para todos nós. Sejam essas experiências boas ou ruins. No começo Fushi é uma tabula rasa que não sabe nem ao menos como se faz para sobreviver. A cada novo arco de histórias, conceitos e ideias lhes são transmitidos e sua percepção sobre si se desenvolve. A necessidade de sobreviver, a capacidade de falar, a importância do outro, a responsabilidade por aquilo que fazemos e a coragem para seguir adiante. Essas são algumas das lições que nosso protagonista aprende ao longo de vinte episódios. A série é linda em sua proposta, apesar de em vários momentos ela não nos dar o final feliz que esperamos. Quando pensamos que as coisas estão resolvidas é aí que a série nos dá um soco no estômago. Afinal, a felicidade é algo extremamente relativo e a vida é feita de poucos momentos felizes. A vida é dura e precisamos galgá-la diariamente. As lições que ela nos ensina nos ajudam a lidar com situações futuras, quer usemos ou não aquilo que aprendemos.
Logo no começo da série vemos uma cultura que usa o sacrifício ritual como uma forma de controlar aqueles que eles subjugam para evitar revoltas. A terra de Ninnanah, também conhecida como a Terra Sagrada do Oniguma, é o primeiro lugar visitado por Fushi e é onde ele conhece March, Parona e Pioran, pessoas que vão acompanhá-lo de uma forma ou de outra por muito tempo. Todos os anos, uma das vilas que formam Ninnanah precisa enviar uma jovem garota para ser oferecida para o Oniguma se alimentar. No dia do ritual, um banquete é oferecido à criança que será sacrificada como uma forma de agradecimento. Só que March e Parona se questionam por que essa tradição permanece. March é a escolhida deste ano para o sacrifício e ela é uma menina inteligente, ingênua e muito curiosa. Ela deseja ser uma garota forte e conhecer outros lugares. Mas, vê seus sonhos para a vida serem encurtados quando Pioran a escolhe como sacrifício. March tenta fugir de um destino cruel, mas acaba sendo caçada pelos Yanome para ser colocada no altar sacrificial. É durante sua fuga que ela conhece Fushi e eles se tornam amigos.
A série trabalha muito bem a dificuldade inicial que Fushi tem para se comunicar com as pessoas. Fushi mal consegue entender a necessidade de se alimentar e de se proteger no começo, morrendo muitas e muitas vezes. Oima é uma autora que não é estranha ao desenvolvimento de personagens com algum tipo de dificuldade de comunicação. Ela é a autora por trás de A Voz do Silêncio e consegue transmitir muito bem a capacidade dos personagens de se comunicarem sem ser através de falas. Fushi ficou sem falar por vários episódios e com falas rudimentares por muitos outros. Diálogos mais precisos somente a partir do 12º ou 13º episódios. Sempre eram os outros personagens a buscarem conversar com ele. E isso fazia parte do aprendizado do personagem. Se no mangá isso é muito importante e significativo das preocupações da autora, na animação ficou melhor ainda. Os personagens como um todo são bastante expressivos seja a felicidade de March, a doçura de Rean, a loucura de Hayase.
Outro tema bastante importante nessa primeira parte da série é a aceitação. No arco de Takanaha, Fushi conhece o jovem Gugu, um menino pobre que vive na periferia da cidade em uma barraca ao ar livre junto de seu irmão. A vida deles é bem difícil devido à falta de dinheiro para comprar comida e ter uma vida mais confortável. Um dia, Gugu vê uma menina colhendo flores no campo até que várias toras de madeira se soltam de um amontoado e caem em direção a ela. Gugu consegue empurrá-la para o rio, mas ele fica preso e as toras atingem o seu rosto com toda a força, deformando-o para sempre. A partir daí, Gugu passa a esconder o seu rosto depois que percebe que as pessoas ficam aterrorizadas com a visão dele. Depois de vários acontecimentos, Fushi, Gugu e Rean formam uma espécie de família que vive unida na casa de um senhor produtor de ervas e saquê. Gugu é apaixonado por Rean, mas não consegue se confessar para ela não só por timidez como também com medo de ser rejeitado por sua deformidade. Rean não sabe que Gugu foi quem a salvou de um acidente fatal quando ela era mais nova. Tudo isso faz do personagem alguém com baixa auto-estima.
É curioso pensar que nessa história que envolve Fushi, Gugu e Rean, será Fushi com sua experiência de vida ainda em formação quem dará os melhores conselhos para o jovem mascarado. Usando o conhecimento de vida que aprendeu com Parona quando tentava resgatar a March, Fushi começa a criar ligações e associações com o que aprendeu antes. Seu conselho não é perfeito, sendo mais algo simplório para convencer Gugu de que ele deve demonstrar coragem diante das adversidades, mas mostra o quanto as experiências que Fushi tem passado formaram sua personalidade. Claro que faltam refinamentos em seus conhecimentos, como questões éticas e morais, conceitos que ele só irá aprender durante o arco de Jananda. A série é fascinante por esses pequenos detalhes e se pararmos para pensar na profundidade do que nos é apresentado poderíamos passar horas discutindo questões filosóficas. O gancho no final do vigésimo episódio deixa a gente querendo mais, mas teremos que esperar um pouquinho para sabermos o próximo destino de Fushi.
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