Reflexões necessárias sobre o papel da literatura no registro histórico e memorial e sua contribuição para as discussões atuais.
Literatura é entretenimento, sim, e não há nada de errado com isso. Mas a literatura também apresenta, agrega, constrói, educa e sensibiliza: é o relato, ficcional ou não, das vidas, histórias e locais que marcaram o mundo. Muitas vezes, mesmo em uma high fantasy clássica ou na mais surreal das ficções científicas, ainda é possível encontrar vestígios e referências que devolvem ao público uma história já contada há eras pelas civilizações, tamanha a importância dessas narrativas. Afinal, contar é relembrar e reinventar, mantendo viva a memória.
Quando a literatura, no entanto, assume para si ares de maior comprometimento com a realidade que transcorreu, é necessário que façamos, então, algumas reflexões mais sérias do que aquelas de quando somos levados pelo prazer da leitura. Não está mais em jogo apenas contar uma história divertida, que fisgue o leitor do começo ao fim para ler em uma sentada; são os próprios ecos da história que saem das páginas para falar de temas pretéritos e, infelizmente, muito atuais também.
The Underground Railroad - O que é?
Livro vencedor do prêmio Pulitzer de 2017, The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade, de Colson Whitehead, já nasceu um clássico. Escrito como uma "railroad" trip, narra a jornada da protagonista Cora cruzando os Estados Unidos em fuga. Ocorre que Cora é uma negra escravizada pertencente a uma fazenda de algodão da Geórgia, muito antes de sequer se discutir qualquer possibilidade de libertação no sul escravagista. Procurada por outro escravizado, Caesar, ambos decidem fugir pela legendária estrada de ferro subterrânea, que cortaria todo o país bem debaixo dos olhos dos brancos, impossível de ser precisamente localizada, abrigando o destino de tantos escravos quanto pudesse rumo à liberdade.
Para falar de fuga e liberdade, primeiro precisamos nos remeter um pouco à história que inspirou o livro: a incrível missão de vida de Harriet Tubman. Harriet, assim como Cora, também nasceu escravizada, em 1822, e fugiu. Em sua luta, desenvolveu um sistema de rotas e métodos para conseguir resgatar familiares e amigos. Posteriormente, Harriet estendeu suas atividades para atingir uma gama de dezenas de libertos.
Harriet operou em um sistema conhecido precisamente como Underground Railroad, composto por rotas, estradas e esconderijos que escapavam ao conhecimento dos brancos escravagistas e permitiam a locomoção por extensos quilômetros, atravessando estados em busca de locais seguros, geralmente apoiados por Quakers e simpatizantes do movimento abolicionista, mais ao norte dos Estados Unidos. Muitas vezes, o destino era o livre Canadá. Em um apontamento, Harriet chegou a afirmar: "Eu fui a condutora da Underground Railroad por oito anos, e posso dizer o que a maioria dos condutores não podem – jamais descarrilhei meu trem e nunca perdi um passageiro" (CLINTON, 2004. Harriet Tubman: The Road to Freedom).
A partir daí, não é preciso fazer esforço para reconhecer a seriedade do trabalho de Colson Whitehead em deslindar uma trama com bases tão sólidas como o trabalho de vida da própria Harriet Tubman. Cora não é e não pretende ser Harriet - ela só precisa fugir e sobreviver; Caesar também não é um herói abolicionista. Os personagens estão mais preocupados em passar mais um dia que seja em liberdade, vivos, esperançosos, e não há tempo nem recursos para pensar em outros. É o retrato de uma batalha colossal empreendida por incontáveis vidas escravizadas por séculos em todo o mundo, e um retrato extremamente vívido nas páginas do livro.
Traçados os paralelos, então, entre a verdadeira underground railroad operada por Tubman e a legendária estrada de ferro de Colson Whitehead e determinada a natureza dessa discussão, vamos falar do porquê ser tão importante conversarmos sobre tudo isso.
Ecos do passado e suas consequências no presente
Quando nos deparamos com movimentos supremacistas brancos, em pleno ano de 2020, em resposta radical a ações de protesto de grupos ativistas pelos direitos civis negros, como o Black Lives Matter, face à toda a barbárie que estamos observando dia após dia na tentativa óbvia de continuar subalternizando e extinguindo consciências e corpos negros, precisamos recorrer aos eventos históricos para não perdermos de vista os desfechos que a humanidade já presenciou. A colonização, a escravidão, a perseguição às etnias negras e o próprio Holocausto, que dizimou judeus, negros, LGBTs e todos aqueles não pertencentes ao padrão ariano, todos esses momentos vergonhosos promovidos pelo homem imperialista continuam a refletir gravíssimas consequências até hoje.
Entre as variadas formas de resistência de um povo oprimido, está a memória. Não a História, necessariamente, porque esta é escrita por homens sob interesses diversos e muitas vezes questionáveis, mas a memória passada por gerações, a oralidade, a escrita, os versos, as cartas, os causos contados em família. Nas memórias são guardadas a essência das vidas que só conheceram a resistência como ferramenta para sobreviver; hoje, elas reverberam ensinamentos às novas gerações, que provocam e desafiam as imposições racistas em prol da liberdade de existir.
A memória, em forma de registro, é também o fio condutor da narrativa de Colson Whitehead, demarcando cada trecho da viagem de Cora com acontecimentos traumáticos, ficcionais, mas claramente inspirados em momentos terríveis da história negra estadunidense, como os enforcamentos de escravos fugidos em praça pública, estupros cometidos por senhores brancos e a violência perpetrada dentro das plantações pelos capatazes e escravos privilegiados pela força bruta e dominação de seus pares.
Cada pedaço da jornada prova-se um desafio para uma Cora assustada, traumatizada e mutilada pela escravidão, assombrada, ainda, pelo destino de seus companheiros de fazenda e de seus familiares. Nessa mágica Underground Railroad, podem escapar elementos de veracidade, mas o conteúdo fala mais forte e torna-se impossível considerar a metáfora utilizada por Colson como mera ficção - a releitura é, em verdade, uma expressão mais palatável da realidade.
Assim como contamos versões mais bonitas ou mais hediondas das histórias com as quais temos contato, posto o nosso discurso imparcial, adequado a cada público, a memória não se perde nem se diminui por encontrar variações. Acredito, inclusive, que se enriqueça a cada nova experiência produzida, abraçando uma nova contribuição, uma nova visão dos fatos. Afinal, a memória é viva e coletiva, elástica, resiliente, assim como o povo oprimido.
Se não é possível mudar e interferir diretamente nos pensamentos e ideias de pessoas mal-intencionadas que perseguem a manutenção doentia de um status quo retrógrado e excludente, ao menos que se registre a existência dessas narrativas marginalizadas e subalternizadas pela História e que se possa afirmar: elas resistiram ao tempo e à humanidade.
No Brasil, o livro The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade, de Colson Whitehead, foi publicado pela editora Harper Collins em uma edição lindíssima. Fica a minha forte recomendação pela leitura e reflexão.
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