A série Mestres do Universo estreou na Netflix no início do mês de julho e arrasou com sua proposta inovadora e seu desenvolvimento de personagens. Mas, despertou também a ira de uma geração de puristas que sentiram a falta de He-Man, demonstrando posturas preocupantes em pautas progressistas. Será isto um culto a uma "era de ouro" de outrora?
Alguns assuntos parecem que ganham novos episódios de lapso momentâneo nas mentes das pessoas. Volta e meia eles retornam com força e ganham as mesmas camadas de antes. No início de julho estreou na Netflix a série Mestres do Universo, uma série que retoma os personagens da antiga série do He-Man da década de 1980 e cria novas histórias. Nesse reboot, começamos com um confronto entre He-Man e o Esqueleto pelo controle do palácio de Grey-Skull. Através de suas artimanhas, o Esqueleto consegue chegar ao núcleo do castelo onde se encontra um objeto que contém em si a essência da magia de Eternia. O que o vilão queria era o controle desse objeto para torná-lo poderoso o suficiente para derrotar seus inimigos. Após um árduo confronto, He-Man e Teela parecem tê-lo derrota, quando o vilão dá a sua cartada final fazendo com que o herói dê um golpe mortal nele e acertando o objeto ao mesmo tempo. Isso desencadeia uma enorme explosão que mata o herói, não antes de Teela descobrir sua verdadeira identidade. Retornando ao castelo, Teela relata o ocorrido e as relações que existem entre a família real, Duncan e Teela se rompem de uma vez, criando toda uma separação. O confronto entre o Esqueleto e He-Man, que causa a morte de ambos tem uma consequência terrível: a magia desaparece de uma vez por todas de Eternia. Alguns anos mais tarde, vemos um reino que buscou na tecnologia a forma de continuar evoluindo e Teela agora é uma mercenária. Ao lado de Andra, elas realizam uma série de missões até que o pedido de uma velha colocará Teela em contato com um passado que ela gostaria de ter esquecido.
Vou começar esta matéria dando minha opinião rápida a respeito da série (até porque quero deixar para comentar sobre ela quando a segunda parte tiver sido lançada). Até este momento, com cinco episódios exibidos, a série é anos-luz à frente do que foi mostrado lá na década de 1980. Não digo só pela animação porque seria covardia tecer comparações. Digo no sentido da própria narrativa e dos personagens envolvidos. Na série antiga, os personagens secundários eram bem isso mesmo; secundários. Eles funcionavam como escadas para que o protagonista pudesse brilhar. A série não se debruçou bem sobre a organização de Eternia, suas cidades, seu sistema econômico e como havia uma relação entre magia e tecnologia. O que tínhamos eram flashes aqui ou ali com informações desencontradas e que se contradiziam algumas vezes. O foco estava no confronto entre He-Man e o Esqueleto e os personagens que os circundavam não tinham camadas. Teela era a donzela em perigo, apesar de ser a capitã da guarda; Duncan era o amigo confiável, apesar de rabugento; Gorpo era o bobo da corte que fazia suas trapalhadas divertidas. Quanto aos vilões, a Maligna era o estereótipo da vilã sedutora; o Homem-Fera era o bárbaro desmiolado e o Homem-Máquina era o cara da tecnologia. Tinham outros personagens que aparecem com o tempo, mas nenhum ganhou espaço o suficiente. Afinal, era uma série voltada para vender brinquedos. E vendiam muito bem, obrigado (eu tive um castelo de Grey-Skull, um He-Man e um Esqueleto... além de um gato guerreiro).
Nessa primeira parte, a série vai ter como protagonista a Teela. Vai demonstrar o quanto ela ficou fragilizada pela descoberta da identidade do He-Man e a perda do herói. E se foca também em sua jornada como alguém que precisa resgatar a espada do poder para que a magia possa voltar a fluir em Eternia. Podemos aqui discutir a respeito do jeito teimoso e até meio bobo da Teela de se enfurecer com isso e eu até acho exagerado em alguns momentos, mas a jornada da personagem vai servir para amadurecê-la melhor. Temos a Maligna que ganha uma série de camadas, provando que ela não é apenas a bruxa que tem tantos poderes quanto o Esqueleto. Ou o Gorpo que se torna uma grata surpresa na série se transformando em um personagem sábio e que sempre tem palavras adequadas para os personagens. E até mostra um lado heroico. Além disso, o diretor Kevin Smith conseguiu dar muito mais profundidade ao reino de Eternia trabalhando seus mitos e lendas e até mexendo com a organização social em um mundo que perdeu sua magia. E isso porque os episódios eram focados na missão de Teela. E estamos falando de cinco episódios.
A alegação dos detratores da série vai em algumas linhas: a ausência do He-Man que seria o protagonista; o foco na personagem Teela que desvirtuou de sua personalidade mais feminina na série original; e o design do Adam que está muito estranho em relação à sua contra-parte. Tem outras reclamações, mas vou me concentrar nestas três. Em primeiro lugar estamos falando de uma série que tem como título Mestres do Universo. Não estamos falando de uma série que tem o nome do protagonista no título, mas uma série deles. Sim, a Netflix foi malandra e fez vários teasers em que apareciam o personagem. Só que essas cenas ou eram do primeiro episódio ou pertenciam aos flashbacks da Teela. Kevin Smith decidiu se focar nos mestres do universo em si, mostrando mais e mais camadas dos outros personagens da série. O personagem do He-Man é mais um entre vários personagens da série. Levanta-se até a teoria de que irá surgir um novo campeão para Eternia. Ou mais de um. Ou seja, a série não tem o foco no He-Man, mas no reino de Eternia em si e em sua luta para manter a paz.
Usa-se muito a expressão de "lacração" para tudo aquilo que não agrada a ala conservadora. E pensar que a expressão surgiu do lado LGBT para tratar de temas que representassem uma busca por direitos iguais ou mais representatividade. E hoje se tornou uma expressão pejorativa e que carrega muitos ranços negativos. A questão é que a série não é panfletária. É engraçado dizer isso sobre uma série do He-Man porque a versão dos anos 1980 era carregado de moralismos tolos. Todo o final do episódio tinha uma vinhetinha com o He-Man apresentado a moral do dia. Ou seja, mais "lacradora" que a série dos anos 80 é impossível. O que incomoda uma ala dos fãs é esse protagonismo da Teela e ao dar voz a ela, a série estaria buscando ser panfletária. Se adequar a temas "vermelhos", como se costuma dizer. E isso é fonte de um debate constante e vários movimentos contestatórios em relação à Netflix e à direção da série.
Essa é a mesma ala que refuta quadrinhos mais libertários. É uma geração que está acostumada a entender a sociedade a partir de outro prisma. Uma geração coca-cola com um pensamento machista e paternalista. Em que mulheres não devem ocupar o espaço que já está há décadas entre homens. Isso estraga uma visão de um mundinho seguro onde eles podem se abrigar. Um lugar fantástico onde mulheres ou são completamente submissas ou são sedutoras selvagens. Tratar de representatividade, diversidade, preconceito, tolerância e outros temas é uma invasão a esse pequeno espaço. E a maioria dos críticos está preso a esse conjunto de valores e reage de maneira selvagem a mudanças. Aliás, eles desejam uma permanência. Mudanças são ruins porque demonstram o quanto eles ficaram para trás no status quo. Chega a ser espantoso que pessoas que possuem habilidades de leitura avançadas o suficiente para curtirem quadrinhos, não sejam mais críticas. Isso derruba aquela teoria de quanto mais leitura uma pessoa faz, mais crítica ela se torna. Não basta só ter quantidade de textos lidos, mas interpretar o que foi lido. Entender criticamente os temas trabalhados é essencial para encontrarmos uma solução para os nossos dilemas atuais.
Infelizmente os críticos da série são estridentes demais. Acabam usando de táticas rasteiras para desmerecer a produção, diminuindo as notas em sites de críticas através do emprego de bots, atacando a vida pessoal daqueles envolvidos. Ou seja, são táticas já conhecidas. Os produtores da série foram bem explícitos nas entrevistas com os rumos que eles estariam dando. Não podemos esquecer de que Mestres do Universo é uma série feita pela Mattel e voltada para a venda de brinquedos. Ter um diretor talentoso como Kevin Smith é um plus. E a empresa de brinquedos foi perceptiva o suficiente para entender a necessidade de incluir o maior público possível. Estamos falando da empresa de brinquedos... E no entanto o lado complicado da situação é o público receptor. Existe em História uma teoria que se chama a "Era de Ouro". Quando parte da sociedade se remete a um passado glorioso onde tudo era mais adequado e melhor. Trata-se de uma maneira de criticar o presente usando um período considerado de estabilidade. Só que isso é um falso axioma; mesmo no passado os problemas e inseguranças estavam presentes. Fora que nem sempre aquilo que se passou é melhor. Sociedades que se situam em uma conjuntura progressista tendem a ter deixado questões mais tradicionais e conservadoras de lado em prol de pautas mais diversificadas.
Após todo esse fervor crítico de uma ala incomodada com a série, aqueles que gostaram da produção saíram em defesa. E conseguiram realizar um belo trabalho de divulgação. Tenho certeza que a confusão causada por tudo o que foi dito de ruim significou ainda mais visibilidade para Mestres do Universo. O que posso dizer é que desde a produção de She-Ra que também teve suas doses de polêmica, fico feliz em constatar o quanto obras infanto-juvenis tem se tornado mais complexas e interessantes. Certamente eu indicaria um desenho desses a um sobrinho ou a um filho (se eu tivesse um). Porque o foco da série não é em um público masculino, mas em um público em geral. E isso é o mais importante. Compreender que a sociedade não é formado apenas por uma parcela da população. Não existe um clube do bolinha ou da luluzinha. Existe um clube onde todos podem participar. Onde cabem mais pessoas e todos podem se divertir. E isso é o mais importante para alcançarmos um futuro melhor.
Comments