Muito antes de nossos momentos a sós com nossos livros e nossa fuga do mundo real era comum o compartilhamento de leituras. Ler de forma silenciosa foi uma inovação que data de séculos antes. Mas como se dava essa leitura? E no que ela difere da leitura silenciosa?
Antes de começar os trabalhos, quero destacar mais uma vez o quanto a leitura de Uma História da Leitura, do autor Alberto Manguel foi importante para ajudar a compor este conteúdo ao lado de outras referências que tenho. Se tem alguém que me faz viajar a outros lugares quando fala sobre esse assunto é Manguel. Além de aprendermos com um homem que passou décadas escrevendo sobre livros e leitores, ainda somos presenteados com uma escrita gostosa e reflexiva que mescla experiências pessoas com o mais puro sumo da boa história. Como historiador só tenho a ficar feliz toda vez que leio algo escrito por ele. Queria fazer esse parêntese porque tenho tirado tantos temas legais para matérias que acho que vou passar o ano todo escrevendo sobre algo que Manguel me instigou a desenvolver.
Uma tarde de sábado com um clima ameno e gostoso sentado em uma rede ou cadeira, com um bom chá ou café ao lado e um bom livro na mão. Uma fuga agradável a outro mundo onde histórias acontecem, personagens vivem suas vidas intensamente. Aquele momento em que nossas mentes viajam e fogem da realidade por alguns momentos e se regozijam de algo bem contado. Anseio por esses momentos todas as semanas, mas a verdade é que leio aonde posso e quando posso. E mesmo assim meus sentimentos são os mesmos. Só que nem sempre foi assim. Em tempos mais antigos, ler para si mesmo era falta de educação. A leitura envolvia a participação de outras pessoas a quem consultamos para discutir os temas e as cenas de uma leitura. Parece curioso o quanto nosso hábito silencioso é mais recente do que o formato original das leituras. A própria concepção da palavra ler (legere, em latim) vem de reunir, colher. Envolve justamente o ato de unir informações, termo esse que vem da agricultura. É como se estivéssemos distribuindo os frutos de nosso plantio. Nos dias de hoje a situação se inverteu com a leitura em voz alta sendo menos comum e até entendida de forma exótica e curiosa no papel dos contadores de histórias.
No passado, havia uma necessidade vital dos agregados humanos de deixar conhecimentos para outras gerações. Era comum a existência de um indivíduo dentro do grupo que tinha os conhecimentos antigos, sabia a história da origem deles. A figura do ancião era fundamental para a sobrevivência com ele ensinando a todos dentro de um grupo as suas funções. As pinturas rupestres nas cavernas eram lidas pelo ancião em voz alta para que todos ficassem conhecendo de onde vinham e como lidar com os inimigos deles. Fazer o fogo, montar armadilhas, melhores lugares de caça. Todas essas informações eram decodificadas por aquele que sabia interpretá-las. O ancião funcionava como o mediador para elas. Quando surgem os primeiros agregados humanos na região conhecida como o Crescente Fértil (que hoje engloba países como Irã, Iraque e outros países que ficam às margens do rio Tigre e do Eufrates), as informações sobre cultura e habilidades eram deixados em estelas, que poderiam ser votivas (ligadas à religião) ou de registros (que poderiam versar sobre história ou conhecimentos comuns). As estelas não haviam sido pensadas inicialmente como algo para ser lido silenciosamente, mas um objeto cerimonial. Um monumento a ser lido por gerações e compartilhar as glórias de cada cidade-estado. Lembremos que o alfabeto ainda estava em desenvolvimento e o cuneiforme era ainda mais simbólico do que algo homogêneo. Os escribas conheciam seus significados.
Essa é a era dos escribas onde eles tinham um enorme poder e status pessoal apenas por dominarem a habilidade de ler. Já mencionei isso em outra matéria, mas alguns deles eram conselheiros de senhores da guerra ou de faraós. O domínio das letras se mesclava com uma esfera mágica, então sacerdotes e escribas compartilhavam características em comum. Isso embora os escribas fossem mais da área civil ou ligados à economia. O chefe de Estado precisava que o escriba lesse para ele e para sua corte as dívidas, as demandas e outras informações necessárias para a prosperidade do reino. Vejam como a leitura em voz alta se confundia com a política nessa época. Outros tipos de escritos poderiam ser rituais a alguma divindade ou celebrações específicas. Todas dominadas por um pequeno grupo de pessoas que eram consultadas quando necessário para que repassassem tais informações. O próprio códice de Assurbanipal, registrado em diversas placas de pedra, era lido por pessoas que entendiam das leis e conheciam os símbolos. Isso, embora o rei tivesse tido a visão política de tentar escrever em símbolos que haviam se tornado comuns em todo o Oriente Médio. Assurbanipal desejava ser o rei dos quatro cantos dos universo e para isso ele precisava encontrar uma forma para que estes lugares pudessem entender uns aos outros. Ou seja, era preciso criar uma escrita homogênea.
Frequentemente nos referimos à Ilíada e à Odisseia de Homero como alguns dos primeiros trabalhos literários do mundo. Mesmo que eles sejam registros históricos (ou quase isso) de uma guerra entre duas cidades-estado envolvendo deuses e homens. Só tem um pequeno detalhe: ambas as obras não foram concebidas para serem escritas, e sim cantadas. Ou entoadas. Os rapsodos, homens da música e da poesia, levavam os feitos de Aquiles, Ulisses e a tragédia de Troia para toda a parte onde encantavam suas plateias. Estudiosos das duas obras apontam a existência de fórmulas mnemônicas espalhadas pelos versos que facilitavam a vida dos rapsodos para memorizar cantos da Ilíada e da Odisseia. Existem inúmeras discussões quanto à identidade de Homero. Se ele existiu de verdade; quem ele era; ou se ele na verdade é um avatar coletivo representando inúmeros rapsodos. Fato é que ambas as histórias são compilações desses cânticos que visavam criar uma versão única de uma história clássica e que ganhara toda a extensão do mundo antigo. Mais tarde quando chegarmos a uma Atena clássica, as discussões feitas na academia de Platão eram feitas oralmente. Mesmo as leituras eram compartilhadas e então discutidas entre os seus pares. Aristóteles vai dar as primeiras pistas para uma futura leitura silenciosa. Em sua visão as informações chegavam ao nosso organismo ao passar por diversos órgãos que formavam um grande complexo comum, as entranhas (ou splanchna). Esse complexo controlava nossa respiração e sentidos.
Muitos de vocês podem argumentar sobre a existência dos papiros como algo que ajudava a difundir a leitura. Só que isso não era necessariamente verdade. O papiro em si era algo quase ritualístico e passava pela enunciação do conteúdo pelo mensageiro que o estivesse carregando. Ou pelo escriba que tivesse recebido o papiro e fosse incumbido de repassar a informação. Quando surge o cristianismo, o aramaico, sua linguagem original, não tinha palavras separadas para leitura em voz alta e leitura silenciosa. Os antigos cristãos, ainda perseguidos pelo império Romano, passaram a adotar os códices, versões mais portáteis dos papiros. A divisão em capítulos surge aí por conta até do tamanho deles. Essa necessidade de separar o conteúdo em versões mais compactas chegou até a ajudar os antigos pregadores principalmente aqueles ligados ao Novo Testamento que permitiam separar os evangelhos ou as cartas epistolares de Paulo. A figura do pregador ainda era importante para trazer novos fieis. Este fazia seu sermão e lia os escritos bíblicos enquanto inseria seus ensinamentos em sua homilia. O pregador era o mediador entre o mundo humano e o divino.
Curiosamente é na própria Igreja que veremos um movimento de mudança no método de leitura. E conseguimos esse relato vindo de Agostinho de Hipona em seu Confissões. Uma das pessoas mais importantes para a vida religiosa de um dos principais Pais da Igreja foi o seu contato com Ambrósio de Milão, um pregador que ganhou bastante notoriedade na época em que ele começava a sua trajetória. Uma característica fundamental na figura de Ambrósio era sua exegese, seu cuidado com a doutrina e sua habilidade em encantar multidões. Mas, Ambrósio era um homem reflexivo, preocupado com discussões internas e dogmáticas. Um dos primeiros contatos de Agostinho foi uma imagem do milanês lendo a Bíblia apenas para si. Algo que ele descreve como sendo uma bela imagem que refletia o quanto Ambrosio era um homem pio. Agostinho também elogiava o vasto conhecimento dele, que memoriza trechos inteiros da Bíblia com enorme facilidade. Segundo uma das conversas que ele teve com Ambrosio, este lia para si de forma a compreender melhor a mensagem do Criador e abrir portas em sua mente para que a mensagem de Deus entrasse em seu coração. Lógico que as técnicas de Ambrosio eram questionadas por seus pares que enxergavam em sua prática uma blasfêmia por ele estar seguindo em um sentido inverso ao dos pregadores que compartilhavam seu conhecimento.
É nos scriptoriums medievais que a leitura silenciosa vai ganhar mais e mais adeptos. A necessidade de gravar trechos bíblicos para a pregação em locais distantes (principalmente nos reinos germânicos e nórdicos) vai fazer com que os aprendizes desenvolvam fórmula que os permitam memorizar trechos da Bíblia e evitar uma necessidade intensa de consultar seus livros. Neste momento aqui, leitura em voz alta e leitura silenciosa compartilham da mesma temporalidade. Se antes a primeira era óbvia e a segunda era vista com maus olhos, agora temos uma preocupação em passar corretamente a mensagem da cristianização. No mundo islâmico, isso era algo essencial para o ímã. Principalmente porque o Corão era escrito como a Odisseia: para ser entoado ou cantado. Seu versos claramente possuem ritmo e cadência e para os muçulmanos a palavra corânica é divina mesmo na sua escrita. Na religião muçulmana são as letras em si o objeto de decoração das mesquitas. Seu desenho é sagrado e existe um padrão que as embeleza e as faz se mesclar com a arquitetura do local onde estão inseridas (sou suspeito para falar o quanto admiro a beleza da caligrafia e da arquitetura já que me casei em uma igreja mourisca, que tinha sua arquitetura metade cristã e metade islâmica).
O analfabetismo gritante dos camponeses na Idade Moderna europeia ainda vai fazer a leitura em voz alta ser comum nos clubes de leitura. Mas, esta vai começando a perder cada vez mais espaço para a leitura silenciosa. O ato de ler para si se torna um hábito nobre e "civilizado" rechaçando assim aqueles que a compartilhavam. O desenvolvimento da imprensa vai ajudar a difundir o livro por mais moradias. Pregadores protestantes vão passar a estudar os escritos bíblicos e incentivar seus fieis acerca da necessidade de não mais se ver nas mãos de um catolicismo corrupto e corrompido que não ensinava corretamente os ensinamentos. É chegada a época da livre interpretação bíblica e poder contar com um exemplar do livro sagrado era essencial para esse objetivo das religiões de matriz protestante. Claro que esse objetivo esbarrava ainda no alto índice de analfabetos, mas era um incentivo para que os camponeses passassem a buscar informações sobre os livros sagrados. Talvez o maior símbolo de que a leitura silenciosa tenha vencido essa "batalha" tenha sido a escrita de Frankenstein, por Mary Shelley. Em um retiro onde vários escritores e Mary Shelley, eles fizeram uma competição amigável onde o objetivo era escrever um romance em um curto espaço de tempo. Eles seriam lidos por seus pares que, após a leitura, faria uma discussão sobre os temas que cada um se debruçou. Isso nada mais era do que uma leitura silenciosa e atenta ao que cada um produziu.
Mas, preciso fazer um desvio rápido para falar dos clubes da leitura surgidos na época da Revolução Francesa. Estes eram destinados àqueles que não conseguiam ler escritos polêmicos ou proibidos pelo absolutismo francês. Os revolucionários compartilhavam a leitura de livros de Locke, Rousseau, Montesquieu e tantos outros que serão as fagulhas iniciais para o acirramento dos ânimos contra aqueles que defendiam a manutenção do Antigo Regime. Robert Darnton faz uma belíssima discussão sobre estes locais, pouco conhecidos até hoje dentro da história europeia, no livro O Grande Massacre de Gatos. Sem essa atuação ativa dos clubes de leitura, os panfletos revolucionários não teriam se espalhado quase como uma praga para os antigos conservadores que se viam diante de uma população que agora reclamava por seus direitos. Membros desses clubes de leitura iam a diversos pontos na Europa para insuflar a revolução e as greves operárias tão comuns no século XIX, lendo em voz alta os grandes autores iluministas que forneciam o aporte conceitual para estas lutas de classe. À medida em que a população foi se alfabetizando esses clubes perderam a necessidade de existir, mas por muito tempo eles foram essenciais para o que veio por quase trezentos anos.
Por hoje ficamos por aqui e em uma outra oportunidade vamos conversar mais sobre os contadores de histórias. Sua origem, suas técnicas e sua longa história em diversas cultura diferentes. Por ora, continuo a indicar a todos a leitura do ótimo livro de Alberto Manguel que, além de ter uma belíssima escrita, ainda vai aprofundar e muito as discussões que fizemos aqui nesta matéria, E até a próxima.
Leitura indicada:
Ficha Técnica:
Nome: Uma História da Leitura
Autor: Alberto Manguel
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Não-Ficção
Tradutor: Pedro Maia Soares
Número de Páginas: 449
Ano de Publicação: 2021
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