Num cenário de conscientização social e luta de minorias, será que os clássicos ainda têm vez?
O mundo mudou. A passos lentos, tímidos e vacilantes, num ritmo muito mais temeroso do que deveria, mas mudou. Houve uma época em que os grandes clássicos traziam verdades inquestionáveis, provas irrefutáveis cheias de qualidade autoral. Grandes nomes surgiram aqui e ali carregando palavras de autoridade: Dickens, Victor Hugo, Orwell, Asimov, Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft, Tolkien, C. S. Lewis... No Brasil não foi diferente com José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, entre tantos outros. Até hoje olhamos para trás em busca de uma direção mais assertiva, mais confiável, e embarcamos nas palavras dos mestres da literatura. Mas, continuamente temos esbarrados em questões até então nunca pensadas: Onde estão representadas as minorias? De que forma são descritas? Será que essa abordagem é correta?
A Crítica Descontextualizada
É muito comum nos depararmos com situações descritas nos livros canônicos impraticáveis nos dias de hoje. A posição social da mulher era outra, a escravidão ainda era uma realidade ou, no mínimo, não causava choque moral, não se pensava em termos de racismo, machismo ou homofobia. O mundo era, basicamente, preto e branco, homem e mulher, sem qualquer tipo de diversidade.
Julgar a sociedade de antigamente sob os padrões atuais pode ser, sim, um tiro no pé. Não podemos querer os autores levantando bandeiras de causas ainda não discutidas, que pensassem de forma atípica e representativa. Eles eram, afinal, homens de seu tempo, produtos daquela sociedade e seus pensamentos refletiam a cultura condizente com a época.
Entretanto, a mesma sociedade produtora de homens e mulheres condenados à sua bolha, também foi o berço de pessoas que fizeram a diferença. Ou que, pelo menos, não cometeram os mesmos erros. Então é de se pensar: é perdoável o excesso de narrativas brancas, heteronormativas e predominantemente masculinas nos séculos passados, mas iremos continuar a tentar encontrar justificativas para o injustificável (o famoso "passar pano") para discursos hostis às minorias?
Por que essa discussão é importante?
A literatura, assim como todas as formas de arte, entre tantas qualidades e atribuições, promove a representação do Eu, seja ele o Eu-social ou individual. Ela é um retrato da condição humana e busca o apelo do leitor para ganhar vida. É o leitor quem constrói seu sentido final. Em uma sociedade tão diversa e globalizada, é impossível insistir no padrão eurocêntrico e privilegiado e esperar bons resultados da opinião pública. Quem lê quer se enxergar na história, sentir aquelas emoções, vivenciar a narrativa de forma honesta, verdadeira.
Quando o escritor fecha os olhos às minorias, automaticamente está criando uma história estéril, impossível, irreal e, sim, preconceituosa. E isso nos leva de volta aos clássicos: grande parte das narrativas mais conceituadas estão cada vez mais sendo ignoradas pelo público jovem e consciente de si. A crítica já não consegue mais ser tão unânime em proclamar antigos autores como os heróis intocáveis que costumavam ser. É o caso de Monteiro Lobato, assumidamente racista, adepto da eugenia e o maior nome da literatura infanto-juvenil no Brasil. É meio chocante um autor com ideias tão discriminatórias sendo reverenciado e largamente utilizado na formação de jovens leitores.
A polêmica em torno de Lobato se acendeu na última década, e, assim como ele, vários outros autores ganharam a atenção do público mais crítico, que não consegue mais aceitar certos conteúdos e temáticas. Os defensores do cânone lançam mão de argumentos como o anacronismo. O anacronismo é o ás na manga do conservadorismo literário, que, basicamente, afirma não podermos interpretar obras antigas com o viés contemporâneo. Mas, vejam, uma coisa é querer julgar uma mulher da década de 30 por ansiar pelo casamento e pela vida doméstica ou querer representatividade lgbtq+ em um romance do século XIX; outra, completamente diferente, é aceitar um discurso claramente racista, homofóbico ou misógino. Não há mais espaço para isso.
Quando olhamos para os pilares da fantasia e da ficção científica moderna e contemporânea, nos deparamos com um cenário muito parecido. Além de metáforas intolerantes com a diversidade, a total falta de representatividade, na maioria dos casos, foi e ainda é um dos maiores problemas de ambos os gêneros. A ausência de protagonismo ou de papéis femininos relevantes, por exemplo, ocorre em quase todos os principais livros que hoje são referência para leitores e novos autores. Não preciso nem comentar sobre personagens lgbtq+, então. E quais são as principais consequências disso?
Além da óbvia falta de representatividade e alteridade, convenciona-se um padrão excludente para as minorias do processo participativo de criação, construção e compartilhamento dessas literaturas de gênero; cria-se uma barreira que seleciona apenas determinado tipo de leitor - e pior ainda, de autor - e marginaliza e discrimina, mesmo de forma não explícita ou completamente intencional. Ao não se enxergar na leitura, ocorre o distanciamento ou até mesmo a descaracterização do leitor. Este, muitas vezes, tenta se encaixar naquele padrão e acaba por suprimir sua própria identidade. Em menor escala, ocorre o mesmo com revistas de beleza e perfis de celebridades no Instagram: ao nos percebermos fora do padrão, ou buscamos outros modelos ou negamos a nossa própria essência na tentativa de nos encaixarmos.
E assim temos - ainda - poucas escritoras de fantasia e menos ainda de ficção científica (e as que se sobressaem logo são abertamente criticadas pela comunidade conservadora), pouquíssimos escritores lgbtq+, poucos autores negros, e por aí vai. É uma reação em cadeia.
Repudiar discursos intolerantes presentes nos clássicos não significa negar o valor deles, mas sim buscar aqueles que possam realmente acrescentar valor à sociedade contemporânea; questionar sempre foi o caminho mais sábio para filtrar o que se consome, especialmente em tempos em que a oferta ultrapassa muito o tempo e a disponibilidade para a leitura de qualidade. Os clássicos precisam, sim, ser lidos, mas com viés crítico, socialmente relevante e, principalmente, atualizado às necessidades de pessoas que não vivem mais em um mundo monocromático.
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