Um subgênero da ficção científica que vem ganhando cada vez mais espaço, o biopunk revela o que esperamos para a biologia da espécie humana no futuro.
Recentemente tive contato com um game de Xbox chamado Scorn. A história é bem confusa de explicar, mas tentemos. O jogador encarna uma criatura em um mundo estranho no qual ele precisa sobreviver a situações bizarras enquanto tem seu corpo invadido por uma espécie de parasita que permite a ele abrir portas, manusear armas bizarras e controlar máquinas dignas de filmes de terror. O cenário grita filme de terror com corpos espalhados por toda parte enquanto atravessamos túneis formados por vísceras e enfrentamos monstros disformes. Sem falar nas estranhas máquinas e sua relação com bebês (melhor nem mencionar o que acontece aqui).
Scorn é o exemplo de um cenário biopunk. Ele é um subgênero da literatura cyberpunk que tem como tema principal a biotecnologia. Em suas histórias nos deparamos com o hackeamento corporal, tecnologias de manipulação genética ou até histórias que lidam a indústria farmacêutica. As histórias mantém aquele clima sombrio e pessimista de romances como Neuromancer, de William Gibson. O gênero procura discutir as consequências do mau uso dos conhecimentos sobre a biologia ou até a ética do seu emprego. O leitor pode até se deparar com distopias onde governos de viés totalitário procuram realizar algum tipo de limpeza genética. Um bom exemplo disso é o filme Gattaca onde uma sociedade que valoriza pessoas cujas características genéticas perfeitas se vê infiltrada por um indivíduo que hackeia seu DNA para ter uma vida melhor. Mas, a todo momento ele vê diante do temor de ser descoberto pelas autoridades.
Não temos informações exatas sobre como o termo biopunk surgiu. Lawrence Person, um teórico do gênero, afirma que o termo possivelmente é oriundo de uma ressignificação do steampunk. Contudo, os paralelos com o cyberpunk estão aí: se o gênero popularizado por Gibson faz uma crítica política ao abuso tecnológico, o biopunk vai levar sua crítica para a ética da bioengenharia e as críticas sociais derivadas disso. No cyberpunk, acompanhamos normalmente a jornada de um personagem que é marginalizado e precisa adentrar nas frestas deixadas por um regime opressor. É um gênero ficcional de contracultura, por isso que a associação ao punk e ao grunge é tão comum de ser associado ao cyberpunk. A ideia aqui é como aplicar a tecnologia, usada para oprimir as camadas populares, de maneiras criativas que nunca foram pensadas pelos seus criadores. É como reduzir a desigualdade social. Como seus personagens são "lobos solitários", os autores preferem adotar a estética do noir ou dos romances investigativos para construir os cenários. Quando comparamos com a ficção científica tradicional, o cyberpunk é um choque às propostas mais utópicas do gênero. Basta comparar o clima de Neuromancer com um dos romances da primeira trilogia da Fundação, de Isaac Asimov.
Mas, o que isso tem a ver com o biopunk? Bem, o ponto está nas preocupações temáticas do gênero que são bastante parecidas. O cyberpunk nasce a partir de uma inquietação a respeito do desenvolvimento da civilização humana. No final dos anos 70 e início dos anos 80 havia muito pessimismo com os nossos próximos passos. Alguns cientistas políticos da época alertavam para o surgimento de governos controlados por grandes corporações e o quanto o capitalismo havia se metamorfoseado em um monstro incontrolável. A desigualdade social era cada vez maior e a ascensão de regimes de direita como o de Margareth Thatcher ou o liberalismo de Ronald Reagan apontavam para o pior. A sociedade desse período se preocupava com o aparecimento de múltiplas formas de vigilância na vida cotidiana das pessoas. É impossível não pensar imediatamente na sociedade de controle de 1984, escrito por George Orwell. Ou mesmo a diferença em uma sociedade alienada pelo controle de uma pequena elite. O biopunk vai atacar as frestas da sociedade. Algum tipo de revolução biotecnológica. Ou seja, o gênero volta às origens da palavra revolução, com aqueles que são vistos de baixo buscando maneiras de subverter os mecanismos de controle social. A sua rebeldia serve como uma resistência à opressão e até de lucrar em cima de uma exploração totalitária.
Frequentemente as narrativas biopunk lidam com modificações corporais. Não confundir com alterações cibernéticas; o biopunk é caracterizado pela manipulação genética. Um tipo de cenário comum nestas histórias é a do hospital ligado a cirurgias ilegais ou de compra de órgãos no mercado negro. Uma autora que trabalhou bem esse cenário do mercado de órgãos foi Annalee Newitz em seu livro Autonomous. Ela denuncia a maneira como as indústrias farmacêuticas são capazes de manipular grandes governos. Sejam medicamentos voltados para a cura de doenças ou compostos químicos capazes de engendrar transformações genéticas permanentes. A protagonista acaba envolvida acidentalmente em uma trama de espionagem industrial que revela terríveis contradições sociais.
O gênero biopunk não está alheio a interações com outros subgêneros; Autonomous é um livro de espionagem. Já Scorn, que inspirou esta matéria, é um game cujas inspirações no horror cósmicos de H.P. Lovecraft ou no terror religioso de Clive Barker são bem claros. Vale destacar que Scorn não tem diálogo algum, informação alguma sobre seus arredores. O jogador deduz informações tendo como parâmetro apenas o cenário ao seu redor. Logo no começo vemos o quanto as transformações corporais são importantes para a condução da mesma. O braço do personagem é alterado para receber uma agulha retrátil que serve como uma chave para abrir portas ou manusear mecanismos; o ventre do personagem é invadido por um parasita que parece estar nos devorando ao longo de todo o game. Mas, se falamos em games, é impossível não se lembrar da franquia Bioshock, mais precisamente os dois primeiros jogos. O cenário é uma utopia que se situa abaixo do oceano onde as pessoas teriam uma vida confortável. Só que experimentos biotecnológicos são realizados nas sombras e fazem com que o que seria um mundo radiante se transforme em escombros atacados por seres que são a mescla de corpos disformes e tecnologia de alta performance. O que faz de Bioshock tão diferente é que ele se passa na década de 1960 e dá pistas de situações originadas da Guerra Fria. Lembrar que esta década específica foi o período dos experimentos mais insanos da humanidade com bombas sendo explodidas no Pacífico, relatos de pesquisas que fugiam aos padrões éticos. É o momento mais complicado do confronto entre EUA e URSS.
Se formos tentar buscar os primórdios do gênero vamos nos deparar com um nome bastante conhecido: H.G. Wells. Seu clássico A Ilha do Doutor Moreau foi escrito décadas antes de pensarmos em manipulação genética. No romance, o protagonista estava a bordo de um navio que acaba naufragando. Prendick, a quem seguimos nesta terrível história, vai parar em uma ilha fora do mapa onde um cientista realiza manipulações corporais misturando animais em combinações apavorantes. Os experimentos que começam sendo peculiares, acabam tomando outro rumo quando Prendick descobre que algumas destas criaturas ganharam consciência ou passaram a se organizar em sociedade. O que nem Prendick e nem Moreau poderiam acreditar era que os animais mesclados se voltassem contra seus criadores. Ou seja, uma discussão bastante comum nestas histórias também é a do homem querendo brincar de ser um Criador. O quanto temos o direito de manipular ou criar formas de vida já que somos seres tão imperfeitos. Ao final temos um cientista que é assombrado pelas criaturas que ele gerou.
Por falar em criaturas que se voltam contra o criador, algo semelhante é visto no romance Jurassic Park, escrito por Michael Crichton. Para variar um pouco, vou comentar o filme de Steven Spielberg que toma várias liberdades em relação ao material original. No filme, temos o doutor Hammond liderando uma equipe de pesquisadores para tentar criar um parque de diversões dos sonhos contendo dinossauros renascidos através da manipulação de seu DNA. Basicamente se trata de uma releitura da obra de Wells. Jurassic Park vai novamente debater a arrogância do homem ao tentar agir como criador. Percebam que no biopunk há uma necessidade sempre premente de que o desastre precisa acontecer para que então possamos aprender com nossos erros. Contudo, isso nem sempre significa um final feliz. Em boa parte das histórias, o ser humano precisa deixar o local onde a tragédia aconteceu para recomeçar em outro lugar.
Uma outra forma de abordar o tema foi feita por Octavia E. Butler. No livro Despertar, a autora nos coloca em um planeta Terra afetado por terríveis desastres ambientais que fizeram a civilização entrar em decadência. É então que temos contato com os Oankali, uma raça alienígena disposta a nos ajudar em troca de usar a fisiologia humana para se aprimorar. Ao longo dos três volumes da série Xenogenesis vemos a humanidade seguir outros caminhos evolutivos. Alguns são becos sem saída e levam a uma espécie de seleção natural enquanto outros despertam habilidades incríveis ao lado das criaturas que se tornam seus hospedeiros. O grande debate do biopunk de Butler segue em duas direções distintas, porém complementares: abandonar nossos preconceitos em prol de um bem comum e a manutenção de nossa identidade, mesmo após tantas mudanças. Em última análise, o que nos faz humanos é nossa fisiologia ou nossa capacidade adaptativa?
A série de games Resident Evil também são um belo biopunk que vai lidar com outro aspecto do gênero: transformar espécies humanas ou animais em algum tipo de arma biológica. O primeiro game tem uma investigação da equipe STARS a denúncias de estranhos acontecimentos ocorrendo em uma mansão próxima a Raccoon City. No segundo game um vírus se espalha pela cidade transformando as pessoas em aberrações biológicas ou monstros ainda mais perigosos. Deixando o estilo de ação de lado, a história se concentra nos interesses escusos de uma empresa multinacional chamada Umbrella Corporation. Experimentos com cobaias humanas, não se importando com princípios éticos e usando seus vastos recursos financeiros para acobertar o que é feito de errado. Pessoas inocentes acabam sendo arrastadas para um turbilhão de desastres que vão se empilhando um após o outro. E diante disso tudo, a Umbrella só quer saber de apagar as provas e jogar tudo para debaixo do tapete.
O biopunk é um gênero bastante rico em temáticas e ele vem crescendo lentamente nos últimos anos sem nos darmos conta disso. Ele está aí há mais de um século, mas somente de trinta anos para cá é que a tecnologia de manipulação genética se desenvolveu e atingiu outro estágio. As histórias hoje acabam se debruçando bastante sobre qual é a próxima etapa da evolução humana.