Nesta matéria veremos por que alguém nunca deve investigar o histórico de um tradutor (ou pode descobrir uma estranha fascinação por mamíferos proboscídeos). E o quanto a vida de freelancer pode ser maravilhosa ou aterrorizante.
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Parte 5 - Uma Linguagem Neutra
Traduzir é pesquisar. OU: espero que a polícia (ou minha mãe) nunca investigue o meu histórico de pesquisa do Google.
Tenho muita admiração por quem veio antes de mim nessa profissão, e uma das principais razões para isso é que fico arrepiada só de imaginar a pedreira que é traduzir sem ter a internet à disposição. Porque como comentei lá no ponto 1, traduzir é encontrar equivalentes linguísticos e culturais — e é virtualmente impossível conhecer de cabeça os equivalentes linguísticos e principalmente os culturais para todas as coisas.
Nunca fiz essa matemática, mas acharia razoável se descobrisse que, em um dia comum de trabalho, o número de usos da minha ferramenta de busca chega perto da casa das centenas. Muito frequentemente procuro o significado de expressões idiomáticas, e nesses casos nem me dou ao trabalho de procurar a tradução direta: vou atrás da explicação na língua de partida (às vezes quero beijar o Urban Dictionary na boca) e só depois pesco a equivalência em português do repertório que eu já tenho aqui dentro da minha cachola (olha aí a importância de dominar a língua de chegada).
Em muitos outros casos, você pode me encontrar em meu habitat natural buscando material para aprender mais sobre um determinado assunto antes de sequer saber como procurar o termo específico do que preciso traduzir. Nessa brincadeira, já passei horas vasculhando materiais sobre hierarquias e patentes das várias forças armadas do mundo, regras de jogos de carta que eu nem sabia que existiam, fisiologia de diversos animais e plantas, funcionamento e nomes de peças de armas e veículos, acidentes geográficos que não têm equivalente direto em português porque mal existem aqui… e coisas indizíveis a essa hora do dia (brincadeira, só estou fazendo um charminho, mas confesso que já simulei um movimento de luta aqui em casa para ver se a tradução das partes do corpo faziam sentido).
E claro, dá-lhe consulta ao dicionário para procurar a tradução direta de muitos termos. Mas, como um bônus desse ponto, vou te contar outra coisinha que eu descobri só depois que comecei a trabalhar com tradução: em vez de investir em um dicionário bilíngue, a melhor coisa que a gente faz é investir em um dicionário de sinônimos ou em um dicionário analógico. Eu preciso frequentemente descobrir outro jeito de falar em português determinada coisa cuja tradução direta não é muito usual do que descobrir o que exatamente significa uma determinada palavra em outra língua. E, com mais frequência ainda, preciso navegar por grupos de termos que não são exatamente sinônimos, mas sim palavras associadas por semelhança, pureza ou convergência. Meu dicionário analógico é meu melhor amigo na hora de criar nomes de criaturas fantásticas sem perder o trocadilho, se você quer saber.
E, agora que comecei a falar sobre essas coisas de dia-a-dia, acho que posso ir para o meu tópico mais prático de todos.
4. É muito raro alguém carimbar “responsável por tradução” na sua carteira de trabalho. OU: a maravilhosa e aterrorizante vida de frila.
Se você sonha em ter um emprego fixo — com carteira assinada com direito a todos os benefícios e a oportunidade de usar roupa social, ter um cartão corporativo para gastar no happy hour com o povo da firma e andar com um crachá bacanudo por aí —, entrar no mercado de tradução talvez não seja a melhor ideia. No mercado de tradução literária, então, nem se fale.
Aqui no Brasil (pelo menos nos dias de hoje, porque quem está há mais tempo na estrada diz que já foi muito diferente no passado), a pessoa que traduz é, na maioria esmagadora das vezes, frila — a versão carinhosa e amorosamente abrasileirada de freelancer, a pessoa autônoma que lida diretamente com vários clientes e gerencia a própria carteira de trabalhos como se fosse chefe dela mesma. E digo mais: a pessoa que traduz aqui no Brasil nos dias de hoje não só é frila como também é frila que trabalha em casa.
E assim, ser frila e trabalhar em casa é a epítome da faca de dois (le)gumes (há boatos de que usar essa expressão sem fazer a piadinha dá sete anos de azar). Na lista de coisas positivas, estão poder passar o dia de pijama, ter o privilégio de trabalhar com seu bichinho de estimação debaixo dos pés ou deitado no colo (qualquer semelhança com a minha realidade é mera coincidência), poder jogar um pouco de videogame depois do almoço e fazer seu próprio horário. Na lista das desgraças, está o fato de que você é seu próprio chefe/departamento do financeiro/departamento de marketing e afins (e gerenciar cronogramas, abrir empresa, emitir notas, divulgar seu trabalho por aí e etecetera [dá um baita trabalho), não tem benefício nenhum (faça o possível para pagar um plano de saúde, contribuir com o INSS ou pagar um plano de aposentadoria privado), trabalhar e viver no mesmo espaço às vezes dá um siricutico na nossa cabeça e, se por algum acaso os trabalhos rarearem em um determinado mês, o dinheirinho não vai continuar caindo na sua conta bancária como acontece com quem trabalha em regime de CLT.
Eu poderia escrever um artigo inteiro sobre trabalhar de casa, mas já tem muita coisa legal publicada por aí e a grande verdade é que, de forma bem objetiva, há vantagens e desvantagens em todos os regimes de trabalho, e você só vai descobrir qual ou quais deles funcionam para você experimentando por algum tempo (de preferência um bom tempo, pelo menos um ano).
(Alternativamente: em tempos de pandemia mundial todo mundo está trabalhando de casa, então talvez esse tópico seja um pouco inútil se você está vivendo 2020 ao vivo. Mas se você está lendo isso do futuro, espero que meus comentários sirvam de alguma coisa. E fico feliz porque você estar lendo isso do futuro provavelmente significa que ainda há livros no mundo — ou que existe mundo, para começo de conversa —, e que ninguém conseguiu inventar um bom Peixe Babel. E antes que essa divagação parta para outras possibilidades de futuro malucas, vamos para a última parte deste artigo.)
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*Jana Bianchi é escritora, tradutora de livros, quadrinhos e jogos de tabuleiro, editora-chefe da Revista Mafagafo, cohostess do podcast Curta Ficção e passeadora de lobisomens. Entre outros, publicou a novela Lobo de Rua (2016, Dame Blanche) e contos em antologias e revistas como Trasgo, Somnium e Dragão Brasil. Pode ser encontrada no site janabianchi.com.br e no Twitter e no Instagram como @janapbianchi.
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