Vamos iniciar uma série de matérias abordando os principais temas trazidos por Martin Puchner em seu livro o Mundo da Escrita. Nesta primeira parte, veremos como a escrita conquistou seu espaço na Antiguidade. Da Ilíada até a Bíblia, importantes personagens fazem a escrita se tornar fluida e viva.
O surgimento da escrita
No livro O Mundo da Escrita, o autor Martin Puchner procura mostrar como a literatura ajudou a moldar a nossa civilização. Em nossa série de matérias vamos descobrir como isso se deu, comentando um ponto aqui ou ali de forma a discutirmos algumas das afirmações do autor. Antes de mais nada só tenho a recomendar o livro por abordar um tema tão amplo de uma maneira simples, didática e bem informal. Ele mostra através de suas viagens, histórias e personagens que fizeram parte dessa longa evolução da literatura.
Logo de cara já vemos que o autor não segue uma lógica muito linear. Ele faz idas e vindas em seus capítulos podendo confundir vez ou outra o leitor. Nessa primeira parte estaremos discutindo até o quarto capítulo. No primeiro deles, ele se foca na influência de Homero para Alexandre, o Grande e a helenização do mundo antigo; no segundo, ele se debruça sobre a Epopeia de Gilgamesh para traçar a passagem da escrita cuneiforme e hieroglífica para a alfabética; no terceiro, ele destaca a importância dos textos sagrados a partir da pregação de Esdras entre os hebreus; e no quarto capítulo, os mestres do mundo antigo na forma de Buda, Confúcio, Sócrates e Jesus. Apesar destas idas e vindas, é possível compreender bem a sua linha de raciocínio e entender quais os temas tratados em cada capítulo.
Muitos dizem que Homero é o pai da História. Como podemos ver na narrativa de Puchner, há sérias dúvidas quanto à identidade dele: se ele existiu, se ele representaria uma coletividade de indivíduos ou se ele foi apenas alguém que registrou as histórias. Uma das teorias mais em voga na atualidade tem a ver com a própria forma original da Ilíada e da Odisseia. Ambas as narrativas existiam originalmente na forma de narrativas orais, levadas de cidade a cidade por bardos que a cantavam para imensas multidões. Sim, apesar de as obras serem enormes, os bardos as cantavam de forma integral. Isso porque existiam fórmulas narrativas e líricas na composição das duas grandes histórias. Não é somente a estrutura de versos e estrofes (o famoso hexâmetro datílico), mas as repetições, os refrãos, as passagens de atos. Para homens que viviam em uma sociedade de cultura oral, não era tão complicado replicar ambas as histórias.
A narrativa da Guerra de Tróia é uma das histórias mais famosas da humanidade. Os personagens que compunham o teatro que foi esta narrativa se tornaram gloriosos, muito além de sua importância em si. Se pensarmos que Troia era um pequeno pedaço de terra na Ásia Menor e que a civilização minóica representava uma extensa também pequena na península Balcânica veremos que se tratava de um conflito regional entre dois rivais. Mas, Aquiles, Páris, Heitor, Agamemnon, Menelau e Helena se tornaram imortais na pena de Homero. A busca de Menelau por sua princesa roubada, a relutância de Aquiles em entrar no combate, a morte de Heitor pelas mãos de um enfurecido Aquiles e o famoso cavalo traiçoeiro foram imagens que habitaram a mente de muitos homens por toda a História. Inclusive a de Alexandre. Em suas batalhas, o famoso conquistador entendia a si mesmo como um novo Aquiles e Puchner traça várias relações entre ambos.
Mas, a importância da Ilíada e da Odisseia é ainda maior porque, por ser um livro de cabeceira de Alexandre, ela esteve o tempo todo com ele. E em suas conquistas, Alexandre buscou fazer do grego uma língua falada por todo o território conquistado por ele. E a Ilíada foi um elemento que permitiu a alfabetização dos povos do Oriente. Não nos esqueçamos de que o próprio Alexandre era coberto de uma atmosfera mística, um campeão invencível e cioso dos costumes dos povos por onde passava. Oras, Alexandre prestou homenagem aos deuses do Egito, respeitou a cultura dos povos do vale do Indo. Em Alexandria, as bibliotecas se tornaram repositório de todo o conhecimento. O grego se espalhava pelo mundo na mesma velocidade do poderio militar de Alexandre. Essa ponte ligando Ocidente a Oriente chamamos de helenização e, mesmo após a morte do conquistador, foi um elemento importante até para o domínio de Roma no final da Antiguidade.
O mito e o sagrado
Muito antes das conquistas de Alexandre, na região conhecida como o Crescente Fértil, surgiam diversas civilizações cujo desenvolvimento da escrita foi importante para todos. Poucos conhecem a história de Gilgamesh e de Enkidu. O primeiro foi um governante poderoso de tempos imemoriais na Assíria, que acabou por fazer amizade com Enkidu, um homem que viveu na floresta por muito tempo e foi atraído para a cidade através de um estratagema de Gilgamesh. Depois de retornarem de uma expedição militar onde abateram o monstro Humbaba, Gilgamesh e Enkidu sofrem de uma tragédia quando o segundo tomba morto pelo monstro que acreditava-se ter sido derrotado. A tristeza de Gilgamesh é enorme e ele sai atrás de alguma forma de reviver seu amigo. O encontro com Ut-Napishtim e a descoberta de que não havia meios para isso serve como um conto de humildade, para mostrar que nem tudo é alcançável neste mundo e que devemos nos submeter aos fatos do destino.
A Epopeia de Gilgamesh desapareceu por muitos séculos após a queda de Nínive e somente no século XIX fora encontrada novamente. Na época a tradução da história do famoso governante foi uma tarefa difícil por conta do desaparecimento destas línguas antigas. Mas, dois fatos corroboraram para isso: o achado de documentos mais recentes que possuíam textos em vários idiomas (como a pedra de Rosetta) e o fato de a Epopeia ter sido gravada em tabuletas de pedra. Ou seja, os povos da Mesopotâmia viram a importância de guardar determinadas histórias para a posteridade. Sair do simples relato oral para que uma história pudesse resistir aos rigores do tempo.
Assurbanipal, um dos últimos governantes de Nínive, viu a importância de guardar o conhecimento. Ele tinha o hábito de buscar tabuletas de pedra em terras vizinhas e acumulá-la na biblioteca de Nínive. Acreditava que ter o conhecimento sobre algo significava deter o poder sobre outros seres. Na época, a dita biblioteca era um dos maiores repositórios de conhecimento antigo. Quando as tabuletas foram encontradas muitos séculos mais tarde, o fato de elas estarem em um só lugar e bem preservadas auxiliou os pesquisadores. As sociedades da antiga Mesopotâmia tinham também um grande apreço pela figura do escriba, aquele que era capaz de escrever o alfabeto e registrar histórias. O escriba era uma das classes sociais mais elevadas em lugares como Nínive e a Babilônia. Era um cargo disputado a faca por membros da elite local. A arte da escrita possuía uma aura mágica ao seu redor.
A chegada dos mestres
Com Esdras vamos ver a importância dos textos sagrados. Isso porque o texto vai ganhar uma nova aura onde a enunciação deste causa alguma emoção no ouvinte. Observemos que quando o juiz inicia sua vocação, os hebreus eram cativeiros. Haviam sido conquistados séculos antes pelos egípcios e deslocados de sua terra natal. Registrar sua cultura era uma forma de mantê-la viva. O cristianismo adota um caráter sagrado e até nacionalista, representando toda a história daquele povo. O texto escrito passa a ser vinculado com as pessoas.
Quando surgem os mestres, vale dizer que nenhum deles era favorável ao relato escrito. Nem Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus desejavam escrever nada. Foram seus discípulos que registraram suas ações. A única vez que Jesus escreveu algo foi quando Maria Madalena foi apedrejada e ele estava lá para deter seus detratores. Ele escreveu algo na areia que não sabemos o que foi até hoje. Já Buda era um homem que privilegiava a simplicidade e o engrandecimento. Não havia necessidade de gravar suas lições no Diamante Perfeito, seu conjunto de ideias. Ele gostava de conversar com as pessoas, e passar seus relatos de forma simples e pessoal a cada um. Sua maneira desprendida de viver a vida e apreciar o mundo pela sua beleza é o que inspirou diversas pessoas a seguirem seus ideais. O budismo é mais um conjunto de padrões criados pelos seus pupilos a partir daquilo que acreditava seu mestre.
Mas, e quando o texto suscita múltiplas interpretações? Essa é a lição deixada por Confúcio. Seus textos são poemas simples que escondem reflexões profundas. Cada pessoa vai observar estes poemas e retirar deles a sua própria interpretação. O pensamento chinês tem muito dessa profundida em espaços pequenos. Se formos tentar traçar um paralelo seria como observar um haiku japonês (mas, obviamente, é uma relação bem grosseira diante do grau de complexidade escondido na simplicidade dos poemas confucianos). A literatura de Mestre Kong é um ensino para a vida. E isto está presente até na escolha de palavras. Para que um discurso eloquente se a vida pode ser resumida em poucas palavras? A escrita é preciosa demais para ser gasta de uma forma tão abominável. Sai dessa mentalidade hermética a importância do escriba chinês, alguém que precisa gravar com precisão as palavras de Mestre Kong.
Indo em uma direção contrária, Sócrates acreditava que a escrita era uma muleta para o tolo. Ao colocar as palavras em um suporte fixo (papiro, pedra, tabuleta), Sócrates acreditava que as pessoas paravam de pensar por si só para acreditar naquilo que estava registrado. O filósofo era um profundo crítico do meio escrito e, quando Platão registrou as palavras de seu mestre, ele optou por registrar os diálogos exatamente como aconteceram. Era importante até mesmo apontar as condições em que os diálogos aconteceram. Segundo Sócrates, quando algo era registrado, perdia-se a informalidade do diálogo. Portanto, Platão criou uma espécie de teatro das ideias.
A diferença de Jesus para os demais mestres é que ele era a realização viva da Bíblia hebraica. Ele não buscou escrever sua própria Bíblia, mas realizar aquilo que havia sido previsto pelos profetas anteriores. De uma forma completamente lúdica e didática, ele ensinava através de metáforas e exemplos simples de serem compreendidos por um grande público. Seja na parábola do leproso ou no sermão da montanha, sua mensagem universal era fácil de ser propagada. Foram seus discípulos quem se ocuparam de registrar suas lições. Mas, a mensagem do homem da Galileia foi responsável ainda por estreitar laços entre diversas civilizações e provocar trocas culturais importantes em um período dominado pelas guerras entre romanos e povo germânicos.
Mas, e como lugares como a Índia e o Oriente se portaram? Como se deram as evoluções culturais após a chegada de Alexandre? Isso é o que veremos na segunda parte de nossa matéria.
Livro citado:
Ficha Técnica:
Nome: O Mundo da Escrita - Como a Literatura Transformou a Civilização
Autor: Martin Puchner
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Não Ficção
Tradutor: Pedro Maia Soares
Número de Páginas: 488
Ano de Publicação: 2019
Link de compra:
*Material enviado pela Companhia das Letras
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