Nesta última parte de nossa longa jornada ao lado de Martin Puchner, vamos conversar sobre lugares distintos como a URSS, a literatura pós-colonial e como os livros são entendidos pelos jovens leitores do século XXI.
A literatura na clandestinidade
Começamos nossa jornada pelo século XX conhecendo a tradição poética na Rússia. Assim como no Japão da era Heian, a poesia era entendida como uma forma elevada de produção de escrita. Seu impacto era tamanho que chefes políticos costumavam favorecer determinados autores que lhes eram caros. Tal foi o caso da poetisa Akhmátova, que teve em Stálin um de seus maiores admiradores. Ao mesmo tempo em que isso era algo relevante, isso deu a ela algumas situações bem complicadas. Mais tarde ela vai ser considerada até uma espiã devido a um contato indesejado com o famoso Isaiah Berlin, em uma de suas visitas a ela no pós-Segunda Guerra.
A literatura soviética sofreu claramente com a censura estatal. Certos temas não agradavam aos políticos. E isso vai ser o reflexo em algumas nações não só sob o domínio socialista, mas sob o jugo de ditaduras. Posso me lembrar claramente da literatura cubana que apenas nos dias de hoje começa a ser explorada com mais afinco pelas editoras. Homens como Yoss que escrevem uma ficção científica muito reflexiva e criticam claramente a realidade onde vivem. Essas perseguições acabam fazendo da literatura uma forma de mostrar a tristeza, o medo e o desespero. Todas essas características estavam presentes nos belos versos de Akhmátova. Um exemplo disso é sua obra considerada mais importante, Requiem. Quando ela passou a ser mal vista pelo governo, ela não podia sequer colocá-la no papel, com medo de ter seu trabalho completamente queimado. Esta realidade cruel a fez adotar estratégias pouco convencionais, oriundas de um período anterior à imprensa de Gutenberg: memorizar os versos. Ela criou uma rede de mulheres que memorizavam os versos de sua obra para que estes não fossem perdidos. Isso exigia uma técnica incrível, ainda mais pelo fato de ela desejar ajustar seus versos por vezes, como toda artista perfeccionista.
O surgimento da autopublicação clandestina, o samizdat, ajudou a divulgar não apenas a obra de Akhmátova, mas a de vários outros autores como Soljenitsin. Este foi um dos responsáveis pela difusão da literatura de testemunho, ao divulgar a realidade por trás de um gulag soviético. A ideia não era criar julgamentos per se em uma escrita parcial, mas através da violência do relato provocar um ato de reflexão no leitor. O exemplo mais conhecido desse tipo de literatura é, sem dúvida alguma, Os Diários de Anne Frank. Quantos de nós já não se emocionaram ao ler a história dessa jovem judia que tem seu destino virado de cabeça para baixo diante da banalidade das ideias de um líder nazista e sua visão de superioridade racial? Essa provocação nos faz enxergar nossa realidade a partir de outros olhos; os silêncios são tão importantes quanto os fatos. Durante muito tempo, Akhmátova foi considerada uma autora ostracizada em seu próprio país de origem, onde sequer podia publicar oficialmente seus livros. Apenas no período de crise do Estado soviético é que ela teve seu reconhecimento como uma autora importante para a realidade cultural do país.
A África e o Caribe
Puchner traz sua lupa para lugares que não tiveram tanta atenção da parte dos grandes estudiosos: África e os países surgidos após o fim do imperialismo. Não é possível estudar o continente africano como um só como se costuma fazer. É um erro essa prática até porque temos múltiplas Áfricas neste rico continente. Segundo porque a cultura literária do povo africano é fruto sobretudo da narrativa oral. O europeu quando devastou o continente durante a Idade Moderna e o início do século XX, destruiu para sempre muitas culturas ricas em narrativas diferentes. As histórias de origem e de desenvolvimento de um povo eram dadas à figura do griot, o responsável por guardar na memória os relatos que tornaram aquele lugar único. Este repassava a seus companheiros estas histórias ao redor de uma fogueira sempre destacando algum elemento que diferenciava relatos para apresentar alguma lição ou virtude.
Uma das poucas histórias autênticas do interior da África é a Epopeia de Sundiata, que tem muitas similaridades a histórias de origem antigas. O mais interessante desta história é como ela foi capaz de sobreviver por tantos séculos e chegar até nós. Mesmo com um ou outro elemento alterado por conta da necessidade de manter a atenção dos espectadores na história contada, a Epopeia de Sundiata consegue nos mostrar a coexistência entre a escrita e a oralidade. Assim como o Popol Vuh dos maias, a história precisou sair em parte de suas origens para sobreviver. A chegada dos gravadores no século XX inclusive provocou uma mudança na dinâmica dos griots, ampliando seu alcance.
É importante destacar também a literatura de viagem de homens como Ibn Battuta. Durante o medievo eles foram essenciais para conhecermos o cotidiano dos povos destas regiões. Através de suas descrições hoje temos um largo conhecimento sobre o funcionamento de lugares como Tumbuctu, sobre a rainha Nzinga e tantas outras particularidades das sociedades africanas. Escritos que os europeus do período moderno preferiram ignorar por preconceito ou falta de informação. Lembrando sempre que o Islã é uma pedra angular de formação e contato de inúmeras sociedades africanas. Sem as rotas criadas pelos homens de caravanas não haveria contato entre elas. A troca cultural e a economia foi favorecida pelos viajantes e desbravadores muçulmanos. O espírito de solidariedade do deserto destes homens também foi um fator essencial para isso.
Já do outro lado do Oceano Atlântico, Puchner nos leva a conhecer Derek Walcott, importante escritor caribenho que foi capaz de nos agraciar com Omeros, uma obra que fala muito do povo de Santa Lúcia. Depois da saída dos colonizadores, aqueles que permaneceram se viram na tarefa complexa de dar uma identidade a seu povo. Algo que não foi pensado pelas grandes metrópoles modernas porque não era de seu interesse. É nesse espírito que nasce o movimento pós-colonial, com uma literatura que, inspirada por obras como Ilíada e A Epopeia de Gilgamesh, busca criar algo particular. Algo que possa ser identificado como parte daquela cultura em especial.
Walcott vai então se basear em modelos do Velho Mundo para escrever uma história do Novo Mundo, sobre o Novo Mundo. Omeros não é uma reencenação da Ilíada. Longe disso. É um poema que tenta dar sentido à história de Santa Lúcia. Buscar inscrever o lugar em algum tipo de tradição literária. Isso faz de sua existência algo tão curioso e que foi capaz de chamar a atenção da crítica internacional. Puchner dedica um belo capítulo à maneira como ele foi atrás do autor e de algumas cenas do livro. Mas, sua jornada vai revelar que talvez suas impressões tenham sido romantizadas demais.
A literatura de entretenimento
É inegável a importância de J.K. Rowling para a difusão da literatura fantástica entre os mais jovens. Goste você ou não. É um fato concreto que a autora foi responsável pela vida literária de milhões quando ela escreveu sobre um jovem mago atormentado pelos seus demônios e seus medos diante de um novo e mágico mundo que revelava perigos inimagináveis. Pessoas cresceram acompanharam lado a lado com o lançamento dos livros essa jornada impressionante. Essa nova (velha) forma de encarar a literatura vem com o surgimento de uma geração mais veloz e dinâmica do que as anteriores. A internet e os computadores fizeram o mundo se tornar menor. Tudo hoje é mais dinâmico.
Mesmo o suporte dos livros tem passado por uma mudança sistêmica. O nascimento dos ebooks colocou em pauta uma discussão onde se é ou não necessário que o livro esteja impresso. Ele seria menos válido se existisse apenas de forma digital, em uma nuvem de informações? O que é o livro hoje? É o suporte ou as informações e mundos neles contidos? Esse dilema do futuro não tem data para chegar a um momento final tão cedo, mas caminhamos para uma ampliação do que significa ser autor. Os processadores de texto presentes nos computadores, tablets e smartphones fez surgirem milhões de novos escritores que todos os dias escrevem novas histórias. Este artigo mesmo é fruto de um processador de texto, possibilitado por um computador e publicado em uma rede mundial de informações.
Até mesmo o conceito de autoria pode ser colocado em xeque. Através da wikipedia e do crowdsourcing podemos ter textos compartilhados a muitas mãos. É o exemplo máximo da democratização do livro e da escrita. E essa é uma revolução boa. Temos muito mais acesso a literatura e a livros do que nossos antepassados jamais tiveram. Acesso este a uma enorme quantidade e variedade de coisas vindas de muitos lugares diferentes. Não importa o formato ou o suporte que seja, a cada dia a literatura prova a sua capacidade de projetar o discurso no espaço e no tempo.
E é com essa frase que eu encerro essa série de matérias. Sei que eu fiquei com vontade de abrir um novo livro hoje. Poder conhecer outras pessoas, adentrar em um mundo novo, refletir sobre velhos dilemas ou novos conflitos. E eu convido você, leitor, a fazer o mesmo. Não importa se é na São Paulo dos dias de hoje, atrás de um armário em um outro mundo, em uma distopia dominada por corporações, no velho oeste. Não importa. Importa o poder que a literatura tem de nos fazer sonhar, de nos fazer pensar, de nos levar além de nossas realidades. Esse é o encantamento que Puchner me trouxe de volta e me fez relembrar.
Livro citado:
Ficha Técnica:
Nome: O Mundo da Escrita - Como a Literatura Transformou a Civilização
Autor: Martin Puchner
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Não Ficção
Tradutor: Pedro Maia Soares
Número de Páginas: 488
Ano de Publicação: 2019
Link de compra:
*Material enviado pela Companhia das Letras
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