Em O Livro do Juízo Final, clássico sobre viagem no tempo de Connie Willis, a autora faz duras críticas à maneira como enxergamos a Idade Média. Será que o período era tão fantástico como estamos acostumados a pensar?
Atenção: Postagem recheada de muitos spoilers. Voltada para aqueles que já leram.
CUIDADO!!!! TEM GRANDES SPOILERS ABAIXO
O Livro do Juízo Final é um clássico de ficção científica escrito por uma autora que tem uma enorme habilidade para construir boas ambientações. Através de uma extensa pesquisa ela foi capaz de criar uma narrativa que não romantiza o período e nos mostra o quanto ele foi um lugar difícil de viver.
No núcleo narrativo de Kivrin, temos alguns personagens bem interessantes: Eliwys é a "dona da casa" enquanto seu marido está em um tribunal por conta de algumas situações que aconteceram na vila; Agnes e Rosemund são suas filhas (a mais nova e a primogênita, respectivamente); Imeyne é a sogra de Eliwys e Gawyn é o cavaleiro a serviço do lorde e marido de Eliwys. Além deles, podemos destaca Sir Blouet, outro lorde local, a quem Rosemund fora prometida e se casaria aos 13 anos para unir duas boas famílias e estabelecer laços; e o Padre Roche, um homem humilde e analfabeto que toma conta da diocese local. Estamos diante de um núcleo narrativo que vai nos ajudar a contar a história de um período marcado por uma epidemia fatal.
O gênero de fantasia ajudou a romantizar a Idade Média. Estamos acostumados a ouvir falar de grandes cavaleiros realizando nobres feitos, salvando princesas, matando dragões e se tornando reis. A Idade Média é um longo período histórico que se estende, segundo uma divisão completamente eurocêntrica, do ano 476, com a queda de Roma através das tropas de Odoacro até a tomada de Constantinopla, em 1453, pelos turcos otomanos. São quase mil anos de história ocidental marcada pelo domínio da Igreja sobre a vida das pessoas. E isso é estabelecido logo de cara por Willis. O cristianismo está presente em cada ação e pensamento dos personagens. A religião funciona como um código de conduta que tem na Bíblia e no Livro das Horas o seu representante máximo e aquele que dita como é o bem viver. Em alguns momentos, essa crença estrita (muito diferente do cristianismo aberto do século XXI) é claustrofóbica, e a personagem se sente perdida porque muitas coisas encaradas como leis entre as pessoas que ali viviam eram vistas até com certa flexibilidade por ela. A observância das orações, a forma de se vestir, os cânticos entoados durante a missa, o tocar os sinos, os horários entre as refeições. Tudo segue um padrão básico que, caso não fosse seguido, poderia transformar o indivíduo em um transgressor. E, vamos lembrar, qualquer transgressão religiosa no período podia levar à excomunhão ou à fogueira.
Se vocês acham isso um exagero, considerem que a observância religiosa era o objetivo de vida da maioria dos homens medievais. A Europa foi marcada por guerras no final da Antiguidade e a devastação da maior parte dos centros urbanos pelos povos germânicos. Foi um momento apocalíptico para aquelas pessoas que viram tudo destruído e as relações sociais viradas de cabeça para baixo. O refúgio da maioria das pessoas esteve na expansão do cristianismo que serviu de cola para unir os diferentes povos que ali viviam. A religião deu a estes povos uma justificativa para tudo o que aconteceu e a cúpula cristã se aproveitou disso para eliminar os rivais. Com isso, eles estavam livres para determinar como as pessoas deveriam tocar suas vidas. A observância religiosa estrita dava um motivo para as pessoas acreditarem que mesmo diante de uma vida miserável no plano terreno, havia algo bom e puro a ser aguardado após a morte. O pecado era visto como a perdição; ir ao inferno era algo temível. Por essa razão, os indivíduos faziam qualquer coisa para obterem a benção dos padres: doar terras, dinheiro ou bens para "comprar o seu pedacinho no céu". Ser excomungado era o mesmo que ser condenado à perdição eterna, e, por isso, aqueles que eram excomungados viviam em desgraça porque realmente acreditavam que suas vidas tinham sido condenadas ao vazio eterno.
Outra quebra de expectativa que a autora faz se dá a respeito de Rosemund. Estamos acostumados a ver mulheres que acabam se casando por amor com os heróis pelos quais elas se apaixonam. Ou então encarando os desafios que o período as marcava com coragem e destemor. Willis nos mostra que as coisas não caminhavam bem assim. Rosemund fora prometida a Sir Blouet e o lorde segue para a casa onde os personagens se encontram, próximo ao Natal para acelerar o processo de casamento. Blouet não é nenhum príncipe: um homem rico, gordo e com seus desejos masculinos claros em relação à jovem Rosemund. A autora não economiza em descrever o lorde como um homem caricato mesmo, mas detentor de muita influência diante da família. Por outro lado, Rosemund é apresentada como uma mulher forte, porém pertencente à sua época. Mesmo ela ajudando sua mãe Eliwys em todas as coisas na casa, ela não gostaria de casar com um homem como Blouet. Não porque ela ama outra pessoa, nem nada do gênero (já, já chego lá), mas por se ver precisando agradar uma pessoa muito nojenta e repulsiva.
Para essa situação não havia escapatória. Os casamentos entre famílias eram muito comuns e representavam uma excelente oportunidade para buscar alterar o status da noiva ou do noivo. O dote também era importante porque podia representar um ponto de virada. Se uma família tivesse uma menina, esta já era preparada desde cedo para se tornar uma esposa assim que tivesse sua primeira menstruação. Às vezes até antes disso. Não era nem um pouco incomum ocorrerem contratos de casamento bem cedo, com as meninas na faixa de 5 a 8 anos e o noivo apenas aguardasse para cumprir seu contrato. Rosemund sabia muito bem o que a aguardava. O problema da personagem não era um casamento arranjado. Como uma boa filha, ela sabia que seu dever familiar era exercer seu papel como mediadora entre famílias. O problema era o próprio Blouet.
Outra que passa uma situação romântica semelhante é Eliwys que parece ter uma atração por Gawyn. Não acredito que a relação entre ambos seja amor propriamente dito (e no parágrafo embaixo eu explico o motivo), mas a necessidade de se sentir protegida. Com o marido fora de casa, Eliwys se sentia frágil diante das adversidades. A ausência total de uma figura masculina dentro da casa deixava um vácuo tremendo que mesmo Imeyne e sua dureza eram incapazes de suprir. Não se confundam achando que Eliwys era apaixonada. É a proteção fornecida por um homem e um homem capaz de derrotar os inimigos. Com o lorde da casa sempre fora (ao longo de toda a narrativa), aquele micro ambiente corria sérios apuros. A sociedade medieval era altamente patriarcal. O homem resolvia os problemas; o homem fazia a guerra; o homem era o proprietário de terras. Cabia à mulher cuidar da casa, ter filhos e suprir às necessidades do homem. Podiam existir casos de mulheres independentes e que cuidavam de propriedades. Mas, estas viviam em uma linha muito tênue. Um estranho podia chegar e reclamar a autoridade da propriedade e tudo o que estivesse dentro para si. Sim, os estupros eram bem comuns, como Dunworthy bem apontou para Kivrin antes da viagem ao passado.
O amor como o conhecemos é uma invenção do período romântico no século XIX. O morrer por amor, os desejos do coração, os sentimentos aflorados. Antes disso, estar com uma pessoa era algo ou mais carnal ou era um negócio. Por essa razão é muito complicado estabelecer que uma pessoa se apaixonou por outra na Idade Média. Claro, temos as cantigas de amor e as aventuras de Chaucer para nos fazer duvidar dessa afirmação e até mesmo Don Quixote, mas se formos analisar com cuidado o que estas cantigas e poesias faziam era tratar o amor como algo à distância. O homem podia sofrer por amor, mas realizá-lo era algo completamente diferente. As convenções sociais eram muito pesadas e os casos de "amor verdadeiro" eram muito incomuns.
Outro ponto muito importante tem a ver com a medicina. Como vimos, Kivrin ficou impassível diante de uma Peste Negra que se espalho rapidamente pela Europa. Quando falamos aos nossos alunos que mais de um terço da Europa morreu por conta dessa doença, parece que o número é baixo. Vamos nos conscientizar de que nem todos os lugares da Europa foram capazes de contabilizar quantos foram mortos. O número de vítimas da peste é bem modesto porque cidades inteiras desapareceram da noite para o dia. Não havia cura para a peste. Kivrin não teve o que fazer além de presenciar uma sociedade se esfacelando. Aqueles que sobreviveram ao genocídio causado por uma bactéria ficaram loucos. Para os habitantes da época, realmente se tratava do juízo final.
O curioso é que a doença foi encarada realmente como a vontade de Deus diante dos homens pecadores. Os homens medievais buscaram aplacar a fúria divina de todas as formas possíveis: morte de todos aqueles que cometeram os menores pecados possíveis, perseguição a judeus, ciganos e outras minorias e punições severas aos desviantes. Nada disso foi capaz de conter o avanço da doença. Para aqueles que acreditam no assassinato generalizado oriundo de uma guerra, uma epidemia é tão mortal quanto. A fúria da peste só foi contida porque ela criou enormes distâncias entre os grupos sociais. Locais mais afastados não foram tão afetados apenas porque não tinham contato com os centros urbanos. Lembrando que os ratos se espalharam rapidamente por causa da ausência total de saneamento básico nas cidades e da falta de cuidados com o corpo dos europeus.
A medicina não foi capaz de conter o avanço da peste porque era muito rudimentar. A maior parte das doenças era tratada com orações ou sangrias. Os "médicos" medievais acreditavam na ciência dos "humores". Se uma pessoa estava doente, isso significava que o mal havia se apossado de seu corpo. Cabia a um padre ir até a casa do doente e tirar o mal do corpo dele. Isso se dava através da extração do sangue "maldito". Todo o líquido tomado pelo mal deveria ser retirado e purificado; o doente deveria se confessar para expiar seus pecados e só então descansar para se recuperar do que lhe havia acometido. Só que sabemos hoje que as bactérias são micro organismos oportunistas; se o corpo enfraquece, a produção de plaquetas e anticorpos é reduzida, dando margem para que as bactérias fossem capazes de se multiplicar. Doenças hoje totalmente tratáveis como febre amarela, caxumba, cólera e outras relacionadas à disenteria e à desidratação eram comumente fatais. Não vamos confundir a medicina europeia com a árabe que era anos-luz mais avançada. No Oriente, a arte da cirurgia já existia desde o século X, mas por conta do conflito entre cristianismo e islamismo, ela demorou para chegar nas cortes europeias.
A relação entre Roche e Imeyne nos demonstra o peso que o status tinha na Idade Média e o quanto tudo dependia do que você era capaz de conquistar no espaço em que se encontrava. Roche é claramente um homem simples, porém devoto. Por conta de sua falta de contatos e de habilidade em se embrenhar no mundo do clero medieval, ele era considerado como um incapaz entre seus pares. Imeyne queria alguém importante tomando conta de sua diocese. Somente assim ela poderia receber um apoio maior do senhor feudal que controlava aquela região. Isso demonstrava como as relações sociais eram voláteis. Podemos até perceber no padre que estava no grupo de Blouet e que Imeyne queria a permanência dele na Igreja o quanto os membros do clero eram fúteis e corruptos. A Igreja do século XIV é uma igreja marcada pela corrupção e pela descrença. Um lugar onde padres se envolviam na política e demarcavam seu território facilmente. Onde o dinheiro poderia salvar ou condenar alguém.
O que eu quis destacar nesta matéria é o quanto temos uma visão enviesada e errada sobre o Medievo. Chamo de medievologia esse amor excessivo pelos cavaleiros, pelos reis e pela magia. Entendo toda a questão da ficção ser simplesmente isto: ficcional. Mas, muitas pessoas começaram a analisar o período através dessa falsa visão construída pelas séries de TV e pelo cinema. Onde tudo é romantizado e nada corresponde com aquilo que realmente se sucedeu. Um autor de ficção que consegue, assim como Connie Willis, fornecer uma visão bem próxima do período é Bernard Cornwell. Ele não esconde a sujeira da Idade das Trevas para debaixo do tapete e nos apresenta determinadas cenas bem fiéis.
Connie Willis desencanta leitores com O Livro do Juízo Final. A abordagem que ela faz, embora com informações demais para um livro de ficção, é incrível. Sugiro que aqueles que já leram, releiam e se atentem às informações que ele fornece a cada novo capítulo de Kivrin. Ela forneceu detalhes como hábitos de alimentação, afazeres domésticos, os cuidados com a casa, a maneira como as pessoas empregavam a medicina, e até costumes simples como o de cozer e permanecer com a família durante o dia estão detalhados no romance. Para aqueles que querem conhecer mais sobre este longo período de nossa história, o livro vale demais a pena.
Livro citado:
Ficha Técnica:
Nome: O Livro do Juízo Final
Autora: Connie Willis
Editora: Suma
Gênero: Ficção Científica
Tradutor: Bráulio Tavares
Número de Páginas: 576
Ano de Publicação: 2017
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