A tripulação da Andarilha recebe uma nova tripulante na forma de Rosemary Harper, contratada para pôr a papelada do capitão Ashby em ordem. Ao lado de Sissix, Dr. Chef, Kizzy, Jenks e Lovey eles perfuram caminhos para chegar em lugares distantes no espaço. E agora eles foram contratados para uma perigosa missão.
Sinopse: O livro de Becky Chambers é um marco recente no universo da ficção científica. Lançado originalmente através de financiamento coletivo pela plataforma Kickstarter, ele conquistou a crítica especializada e os ainda mais exigentes fãs do gênero, sendo indicado para prêmios respeitados, como o Arthur C. Clarke Award e o Hugo Award.
Um dos motivos do sucesso de A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil é a abordagem da história. Elementos essenciais em qualquer narrativa sci-fi estão muito bem representados, como a precisão científica e suas possíveis implicações políticas. O gatilho principal é a construção de um túnel espacial que permitirá ao pequeno planeta do título participar de uma aliança galáctica.
Mas o que realmente torna único esse romance on the road futurístico e muito divertido são seus personagens. Instigantes, complexos, tridimensionais. A autora optou por contar a história de gente como a gente — ainda que nem todos sejam terráqueos, ou mesmo humanos. A tripulação da nave espacial Andarilha é composta por indivíduos de planetas, espécies e gêneros diferentes, incluindo uma piloto reptiliana, uma estagiária nascida nas colônias de Marte e um médico de gênero fluido, que transita entre o masculino e o feminino ao longo da vida. Temas como amizade, racismo, poliamor, força feminina e novos conceitos de família fazem parte do universo do livro, assim como cada vez mais fazem parte do nosso mundo.
Um grupo de viajantes do espaço que se encarregam de criar buracos que servem de wormholes para naves espaciais de toda a Confederação. Basicamente esta é a história do livro. Vamos vendo o dia-a-dia dessas pessoas e seus problemas. Parece um negócio chato, né? Pois, vou dizer a vocês que essa foi uma das melhores histórias que eu li até o presente momento em 2019. Becky Chambers coloca vida nestas aventuras e nos apresenta personagens que nós desejamos estar com eles. Ao acompanhar a jornada deles, vivenciamos as alegrias e as tristezas da tripulação. Ao longo da narrativa, a autora consegue dar toda uma profundidade ao que eles estão passando a ponto de ser capaz de trabalhar todo o tipo de temas.
A busca por um novo caminho
O plot principal da narrativa é o estabelecimento de uma ponte entre o Núcleo da Confederação e o planeta Hedra Ka. Os povos da confederação estão entrando em contato com os toremi ka, alienígenas que nunca haviam feito parte da aliança entre os povos e agora precisam de ajuda para lidar com outros clãs toremi. Para Ashby é uma boa oportunidade para pegar um trabalho que pague melhor. Até então ele havia pego apenas trabalhos mais simples devido à sua nave não ser tão sofisticada. Mas, a missão pode acabar se tornando perigosa devido ao espaço dos toremi ser muito disputado. Aparentemente, os contratantes de Ashby fornecem total segurança e respaldo em sua tarefa. Aliado a isso, a Andarilha recebe mais uma tripulante: Rosemary Harper, uma guarda-livros contratada para organizar a papelada da nave. Rosemary acaba servindo como os nossos olhos e ouvidos ao nos apresentar toda a dinâmica de convivência entre todos.
A construção do mundo na narrativa é muito bem feito. A autora não faz info dumping. Pelo menos não com aquela fome que vemos em outras narrativas. As coisas são apresentadas calma e paulatinamente para os leitores a ponto de considerarmos tudo como um status quo. Toda a história se passa dentro da Andarilha e em alguns portos onde ela desembarca. Os alienígenas também são apresentados em suas características e especificidades. E nesse sentido Becky cria tipos de alienígenas bem diferenciados. Dá para citar os Sienat Par, que funcionam em pares e estão conectados ao Sussurro, que os permite enxergar mistérios do Universo insondáveis aos outros alienígenas; ou os aandriskanos e suas características reptilianas, com concepções distintas sobre família e sobre relações afetivas e sexuais; os toremi, que enxergam tudo em padrões. Existe uma enorme riqueza de detalhes na narrativa da autora. Coisas que vamos sendo apresentados aos poucos e vai compondo uma ampla variedade de informações.
"Ashby começou a se perguntar por que os colonizadores se deram ao trabalho de reconstruir, mas já sabia a resposta. Para alguns humanos, a promessa de um pedaço de terra valia qualquer esforço. Era um comportamento estranhamente previsível. A longa história da humanidade era muito rica em momentos em que humanos se enfiavam em lugares onde não tinham o direito de estar"
Os dramas e dilemas de uma tripulação
Um ponto que cabe apontar é o quanto os seres humanos evoluíram em relação a tempos passados. Ao invés de termos humanos sendo humanos, ou seja, guerreando, explorando, matando e conquistando, temos uma humanidade buscando um novo caminho para si mesmos. Tendo sofrido a perda de seu mundo natal que agora se tornou muito hostil à humanidade (abuso dos recursos naturais), agora temos seres humanos vivendo como nômades ou humanos vivendo em Marte. Esta nova versão de nós mesmos se preocupa em se redimir pelos seus antepassados, pregando uma filosofia pacifista. O próprio Ashby não gosta de pôr a mão em uma arma ou sequer usou. Em determinado momento da trama, quando ele podia ter usado de violência, ele preferiu dialogar. Gostei demais dessa abordagem da autora, diferindo muito de como a humanidade aparece na ficção científica. Chega a ser até uma visão bem otimista sobre nosso futuro, apesar das tragédias.
A escrita da Becky é gostosa e relaxante. Chega a ser incrível como um romance onde acontece tão pouca coisa consegue ser tão viciante. A autora domina a arte de contar uma boa história, e mesmo a narrativa sendo um bom e velho slice of life, ou seja, uma aventura sobre o cotidiano, ela consegue encontrar formas de contar uma narrativa atrativa, despertando o interesse do leitor para sempre se focar no que vai acontecer a seguir. Becky vai inserindo pequenos detalhes de plots ao longo dos capítulos que vão sendo resolvidos pouco a pouco. Nada, repito, nada é colocado à toa na história. Tudo tem alguma consequência em algum momento da história. E devido a isso, os personagens que a autora cria são muito empáticos e passamos a nos relacionar diretamente com eles. Seja as estranhices da Kizzy, o amor platônico de Jenks, o carisma de Ashby ou a curiosidade de Rosemary. Todos são relacionáveis.
"Sempre pensara que a graça de ter filhos estava no prazer de trazer algo novo ao universo, transmitir o seu conhecimento e ver uma parte de si perdurar. No entanto, percebera que a vida no espaço preenchia essa necessidade. Tinha uma tripulação que precisava dele, uma nave que continuava a crescer, túneis que durariam por gerações. Para ele, já bastava."
E isso porque eu nem comecei a falar das relações entre os personagens e outros personagens do universo. Vou apenas me focar em dois porque daria para escrever parágrafos e mais parágrafos sobre eles. Lovelace (ou Lovey) é uma personagem incrível, e ela é apenas mais uma entre vários da tripulação de Ashby. É possível uma IA e um ser humano desenvolverem uma relação afetiva? Jenks e Lovey se amam um ao outro, mas Lovey é apenas um sistema autônomo que controla a nave. Ela não tem um corpo físico. É uma voz que percorre toda a nave auxiliando a todos nas mais diversas tarefas. Mas, vamos percebendo o quanto Lovey é doce e gentil. Desde o começo isso causa um choque nos leitores porque não vemos uma IA dessa forma com muita frequência. E a relação entre os dois personagens é linda. Algumas das frases que eles compartilham um para o outro são belas. Vamos vendo como a relação dos dois vai amadurecendo e eles precisam tomar decisões difíceis para eles. Em um determinado momento em que Jenks pode rumar por uma travessia egoísta, ele reflete sobre o quanto essa decisão pode afetar o próximo.
E esse é um mote comum em toda a trama de Becky Chambers. Vários são os momentos em que nós, leitores, nos emocionamos. Há pelo menos três grandes momentos onde a autora nos coloca em situações lindas. Talvez, para mim, o momento entre Sissix e Rosemary é um dos mais impactantes. Porque são duas pessoas com visões bem distintas sobre o amor e sua expressão. De um lado temos uma Rosemary tímida sobre como abordar o tema com Sissix, e do outro, uma Sissix movida por seus instintos ao mesmo tempo em que precisa entender e respeitar Rose. A maneira como a autora trabalha o tema da compreensão e o entendimento é ímpar; acho que poucas vezes também eu vi isso. É de uma sutileza e uma sensibilidade que toca o coração de quem vê. Talvez o mais bonito em relação a toda a situação é o quanto Rosemary compreende os reais sentimentos de Sissix e percebe que existe uma lacuna na vida dela. É com essa mentalidade que ela acaba liberando o que sente.
"Rosemary apertou os seus dedos. Ela sorriu; contudo, havia mais ali. Medo, talvez? Do que ela estaria com medo? Rosemary afastou a mão e encheu os copos, servindo as últimas gotas para Sissix. "Depois de ver você com a sua família, quer dizer, sua família do ninho... Bem, fiquei me perguntando se isto aqui é o suficiente para você. Nós devemos deixar a sua vida bem difícil."
A própria conexão entre humanidade e outros povos é o tempo todo colocada em xeque. Isso porque os seres humanos ainda são muito recentes no convívio com outros povos. A gente vai conhecendo outros deles e como a humanidade trouxe toda uma nova dinâmica ao universo. Os próprios seres humanos ainda estão tentando entender como eles se encaixam entre tantos povos diferentes e sendo muito inferiores a todos os outros. Esse, talvez, é outro aspecto curioso na narrativa da autora. Ela não glorifica a humanidade e nem a coloca como seres muito diferenciados. Não são especiais e não aprendem rápido. São como quaisquer outros povos e estão aprendendo novas tecnologias e começando bem abaixo.
Eu adorei a narrativa. Poderia ficar lendo centenas e centenas de páginas com estes personagens. A autora conseguiu conquistar o meu coração. Com uma narrativa eficiente, uma escrita doce e gentil com os leitores e personagens que nos fazem ficar viciados em assisti-los, só tenho elogios. Não é à toa que este primeiro volume recebeu tantos elogios de tantos veículos diferentes. A Longa Jornada a um Pequeno Planeta Hostil é a ficção científica em sua melhor forma: aquela que nos faz refletir sobre nós mesmos.
Ficha Técnica:
Nome: A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil
Autora: Becky Chambers
Série: Wayfarers vol. 1
Editora; DarkSide Books
Gênero: Ficção Científica
Tradutora: Flora Pinheiro
Número de Páginas: 352
Ano de Publicação: 2017
Outros Volumes:
A Vida Compartilhada em uma Admirável Órbita Fechada (vol. 2)
Record of a Spaceborn Few (vol. 3)
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