O futuro extrapolado em uma realidade catastrófica, aterrorizante e muito mais próxima de nós do que gostaríamos de pensar.
Sinopse
Em Oryx e Crake, a prosa sofisticada de Atwood viaja até um futuro próximo, ainda bastante familiar, mas ao mesmo tempo estranho e bizarro para o leitor. O mundo é apresentado como um lugar pós-apocalíptico e melancólico, habitado por criaturas biologicamente modificadas e tomadas pelo vício. O resultado é uma distopia absolutamente original, um lugar onde a civilização e a linguagem desapareceram quase completamente. Primeiro de uma trilogia que inclui O ano do Dilúvio e se encerra com o ainda inédito Maddadão, Oryx e Crake consolida Margaret Atwood como um dos grandes nomes do gênero ficção científica, com histórias marcadas por questões éticas e morais sobre o futuro da humanidade.
A humanidade em queda livre
Aviso de gatilhos: depressão, pedofilia
"- No princípio havia o caos."
Neste mês de maio, homenageamos uma representante feminina da ficção científica. Margaret Atwood não foi a escolhida só porque é uma das autoras do gênero em maior evidência no momento, criadora do livro que inspirou a série de televisão The Handmaid's Tale (O Conto da Aia), mas também por ser uma das maiores escritoras de língua inglesa da atualidade. Com seus 79 anos, Atwood continua produzindo uma literatura dolorosamente realista, incômoda, irreverente e brutal. Engajada nas mais diversas causas, a preocupação ambiental aparece como tema pontual em seus livros, o que não poderia estar mais alinhado com este momento tão incerto e preocupante em que estamos vivendo.
Oryx e Crake não é uma leitura fácil, vamos deixar isso bem claro. Tudo, desde o estilo narrativo da autora, sua prosa elaborada, os personagens complexos e simbólicos, até a temática e todas as nuances e implicações de uma decadência generalizada da espécie humana, absolutamente tudo é difícil de processar. A estranheza inicial é apenas um degrau na progressão da história, um pequeno obstáculo a ser vencido para que, pouco a pouco, se perceba que a situação toda é muito mais grave do que o clima pós-apocalíptico sugeria nas primeiras páginas.
"Talvez ele não seja o Abominável Homem das Neves afinal de contas. Talvez seja o outro tipo de homem de neve, o idiota risonho que construíam e destruíam para se divertirem, seu sorriso de pedrinhas e seu nariz de cenoura um convite para o deboche."
Começamos a leitura sem entender o que está acontecendo. Existe um forte senso de desorientação na narrativa do Homem das Neves, feita em terceira pessoa, de forma onisciente, porém misteriosa e não-linear. Não sabemos como ele foi parar naquela situação trágica na beira da praia, um náufrago da vida moderna, cercado pelos restos de um mundo que existiu e dos Crakers. As informações são pinceladas aqui e ali sem a menor preocupação em situar o leitor naquele primeiro encontro com a história. A confusão do leitor é a confusão do Homem das Neves, que sabe de tudo que se passou, mas não quer se lembrar.
O niilismo do Homem das Neves é muito simbólico, e assim observamos seu sofrimento físico e emocional. O trauma que tenta esconder, seu passado que teima em vir à tona de forma abrupta, é o que nos guia através da história. Muito lentamente vamos entendendo que o Homem das Neves já foi Jimmy, um jovem mediano, comum, sem grandes talentos ou ambições, cuja infância foi destruída por um lar quebrado e uma sociedade sem limites. Cada trecho do passado do personagem nos leva a um entendimento cada vez maior: a manipulação genética avançada de plantas e animais, a escassez de recursos naturais, a agricultura familiar substituída pela produção em massa de produtos transgêneros, a pecuária transformada em uma monstruosidade à serviço do consumo desregrado. Uma coisa leva à outra, e a voracidade humana não parou por aí, naturalmente.
Jimmy viveu cercado por drogas sintéticas, sexo fácil e a mais completa banalização da vida humana. Os flashbacks são chocantes, degradantes e difíceis de aguentar. Como alertado no início do texto, vamos lidar com temas moralmente violentos, como a pedofilia, um ponto (infelizmente) crucial na trama. E por que isso? Qual a necessidade de escrever sobre isso, de forma tão explícita? Oryx e Crake é, em essência, um ultimato à humanidade. Um manifesto. Uma crítica ferrenha aos hábitos absurdos que não encontram freio à medida que a tecnologia avança, demonstrando que o ser humano, munido dos instrumentos mais eficientes para melhorar o planeta, opta por destruí-lo. Sexo, bebida, drogas são subterfúgios fáceis para negar a realidade deprimente e prosseguir como se o mundo inteiro não estivesse morrendo.
Aprofundando um pouco mais os personagens, além de Jimmy, conhecemos peças-chave em suas lembranças. Oryx, a mulher que Jimmy amou, é sua companheira constante de devaneios, e através dos fragmentos do passado vamos descobrindo sua importância vital para a trama. Oryx é uma personagem complexa, uma vítima do sistema que não aceita ser vitimizada, encobrindo-se com negação e sarcasmo. Nem sempre é fácil gostar de Oryx, mas entender seu papel no plano maior é fundamental para compreender a fundo a história.
De outro lado, Crake, o melhor amigo e maior rival. Pelo tom das lembranças do Homem das Neves, logo entendemos que os sentimentos do protagonista em relação a Crake são conflitantes e carregados de dor. O personagem provoca emoções intensas em Jimmy, e também no leitor, um misto de repulsa e curiosidade. Crake, assim como Oryx, está sempre ali, atormentando Jimmy, abrindo a ferida mais profunda. É através da progressão dos três personagens principais que conseguimos finalmente visualizar a história completa.
"O mundo inteiro é hoje um grande experimento fora de controle - como sempre foi, Crake teria dito - e a doutrina das consequências involuntárias está em franca expansão."
Passado e presente vão mesclando-se durante toda a trama, muitas vezes em pensamentos desvairados e memórias dolorosas, produtos do corpo doente e febril do Homem das Neves. A narrativa pode ser um pouco confusa em certos trechos, por isso ressalto que a atenção aos mínimos detalhes é imprescindível, pois eles conectam diversos fatos na história, e recomendo uma leitura analítica, focada e sem pressa. Em determinado momento, o que parecem duas histórias tão distantes é magicamente costurado pela autora: bastam alguns capítulos bem colocados e as palavras certas e tudo, de repente, faz sentido. Não preciso nem pontuar a genialidade da escrita da Margaret Atwood, que mais uma vez alcançou a excelência em Oryx e Crake.
Oryx e Crake é ficção científica em sua melhor forma, crua, exposta e questionadora. Margaret Atwood flerta com a ficção especulativa e o biopunk em um carnaval grotesco e decadente sobre o homem sem limites num processo acelerado de autodestruição. A sociedade está morrendo, o planeta grita incontáveis alertas e continuamos a ignorar a gravidade da situação. Até quando?
Ficha técnica:
Título: Oryx e Crake #1
Série: MaddAddão
Autora: Margaret Atwood
Editora: Rocco
Gênero: Ficção científica
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Número de páginas: 352
Ano de lançamento (no Brasil): 2018
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