Voltamos ao tema dos gêneros para tentarmos entender por que o fazemos e o que deixamos de lado ao classificarmos o que lemos.
A discussão sobre a necessidade ou não dos gêneros literários é uma constante desde que as categorias foram criadas. Já conversei uma vez sobre o assunto, mas a partir de um ponto de vista comercial. Queria retornar, mas com um ponto de vista mais filosófico, tentando entender como isso afeta a nossa leitura. Mais uma vez recomendo a vocês o livro Uma História da Leitura, do autor Alberto Manguel que debate esse e outros temas.
Classificar e ordenar coisas está na base da mentalidade do ser humano. Queremos colocar nosso universo em uma ordem que nos permita entender seu funcionamento, encontrar itens ou contabilizar coisas e/ou situações. Podemos rastrear a ideia de organizar livros e leituras em períodos bem antigos. Quando os pergaminhos e papiros começaram a se tornar mais numerosos se fez necessário guardá-los, mas tê-los acessíveis facilmente. Inicialmente os materiais de literatura não eram tão comuns, restringindo-se mais a registros de transações financeiras. Os homens antigos colocavam fitas com legendas ou outros tipos de presilhas com anotações que permitissem identificar datas ou nomes com facilidade. Estas ficavam penduradas para fora da estante para que fosse mais prático para o responsável. Nesse primeiro momento as bibliotecas eram mais espaços de leitura do que um lugar óbvio para guardar livros. Sim, eles eram guardados nelas, mas era um local onde o leitor pudesse consultar, ler e escrever sem ser incomodado. Mais tardiamente as bibliotecas passaram a ser espaços maiores de armazenamento como a lendária Biblioteca de Alexandria. Mas, já voltaremos a ela.
As classificações iniciais eram em ordem alfabética. Foi uma solução simples e óbvia que rapidamente passou a ser empregada por aqueles que iam atrás das peças gregas, das obras latinas ou de produções mais exóticas. À medida em que o latim se tornou mais comum entre os integrantes do Império Romano, essa ideia classificatória foi ganhando mais e mais espaço. E mesmo com outras formas de classificação disputando espaço, a alfabética exigia menos raciocínio lógico. Sua praticidade só vai terminar a partir de meados da Idade Média quando as traduções de autores greco-romanos se tornavam cada vez mais comuns. Mais do que isso, temos uma invasão aristotélica a partir das traduções do grego para o árabe ou depois a chegada dessas obras no contexto europeu. Haviam dezenas de obras, verdadeiramente aristotélicas ou falsamente atribuídas ao filósofo. Isso obrigava aos bibliotecários e colecionistas medievais a mudar sua forma de ordenação.
Mas, precisamos colocar outro personagem nesta história: Calímaco, que Manguel afirma que pode ter sido bibliotecário-chefe de Alexandria em algum momento de sua história. A biblioteca fora construída com o audacioso objetivo de concentrar em si todo o conhecimento do mundo. Seria um oásis onde a cultura teria seu espaço supremo sob a égide de um poderoso império. Os egípcios eram um povo prático e usavam a escrita para lidar com trocas e vendas ou posse de terras. A 'literatura" estava mais presente nos rituais, nas escritas hieroglíficas nas tumbas, nas fórmulas mágicas. Os gregos desenvolveram mais essa linha da escrita ficcional a partir das peças teatrais. Então Alexandria recebia um enorme afluxo de obras literárias que enchiam suas estantes. No auge de seu esplendor, o número de obras chegava a 40 mil. Depois de seu desaparecimento, a biblioteca que mais se aproximava dela antes do surgimento da imprensa ficava em Avignon e pertencia à Igreja católica. Lá constavam dois mil volumes, um número bem longe do impressionante contingente na lendária biblioteca.
Calímaco era um homem que não se conformava com a maneira ingênua com a qual os livros eram ordenados. Para ele, não fazia sentido colocar os livros em ordem alfabética porque em uma coleção tão numerosa isso dificultava a busca por alguma coisa que o leitor estivesse pesquisando. A partir de muito estudo e observação, Calímaco passou a criar categorias por assunto ou por tema. Ele era visto com muita reticência por seus colegas porque seus critérios eram difíceis de ser compreendidos e outros que trabalhavam na biblioteca não conseguiam encontrar o que estavam procurando. Sua proposição deixava de lado uma formulação de ordenação do mundo para se concentrar em uma lista de pertences da biblioteca e a partir daí encontrar conectores entre elas. Infelizmente, ele não foi capaz de terminar seu empreendimento ambicioso que foi continuado e finalizado por outros bibliotecários. Contudo, seu método de ordenação foi levado a outros locais onde era usado como uma alternativa ao alfabético.
No século XIII, um homem chamado Richard de Fournival elaborava teorias sobre os efeitos da leitura para a formação intelectual do homem. Para levar adiante sua pesquisa, Fournival contava com uma boa quantidade de livros ao qual ele buscava ordenar. Para levar adiante o seu objetivo, ele criou uma série de divisões para os campos do conhecimento e ele separava os livros em seções dedicadas a estes campos. Ainda era algo bem distante do que viria a acontecer no século XIX, mas já mostrava indícios de quais caminhos seguiriam a capacidade do homem de organizar seu conteúdo. Com a invenção da imprensa por Gutenberg, a necessidade de organizar os livros se torna ainda maior por conta da popularização do artigo livro. Era um objeto de desejo de nobres e burgueses a posse de uma biblioteca particular que os permitisse consultar livros a qualquer hora.
Chegamos ao século XIX e é aí que as coisas mudam drasticamente. Foi nesse momento que os campos de conhecimento como os percebemos hoje surgiram com as disciplinas do conteúdo escolar e do ensino superior. Mais do que simplesmente gerar campos de conhecimento, a ideia básica era classificar a realidade para que fosse possível dedicar seus estudos a um campo específico sem a necessidade de entrar em outros. Se antes um cientista era um homem versado em vários campos de conhecimento, como Leonardo da Vinci que era pintor, conhecia engenharia, aritmética, filosofia, agora um cientista deveria conhecer o seu campo para que sua pesquisa pudesse gerar frutos com mais velocidade. De certa forma a especialização foi se tornando cada vez mais complexa com campos se subdividindo em outros ainda menores. É como se pegássemos uma lupa e tirássemos do alto e o colocássemos tão perto de nossos olhos que o próximo passo é o microscópio. O grande problema desse fenômeno hiper-especializante é que agora o pesquisador conhece o grão de areia em todas as suas propriedades, mas não consegue dizer uma vírgula sobre o grande deserto. Claro que isso é uma crítica mais pesada e generalizante que parte de homens que veem com maus olhos essa tendência. Tanto é assim que nas últimas décadas, pensadores como Humberto Maturana passaram a discutir o conhecimento holístico, capaz de interconectar vários campos de conhecimento para se chegar a uma conclusão. Ou a polimatia, que versa sobre a necessidade de estimularmos diferentes capacidades inatas ao ser humano.
Mas, onde isso nos leva na questão literária? Talvez a pista nos tenha sido dada por Jorge Luiz Borges em seu famoso conto sobre a incrível biblioteca que seria tão grande quanto o próprio universo. Nela estariam contidos os livros escritos e aqueles perdidos ou nunca finalizados. O protagonista se vê perdido em um lugar labiríntico que o leva a questionar até sua própria sanidade. O mundo que o cerca é tão ordenado que sua mente não consegue processar tamanha quantidade de informação. Ele chega até a especular se essa biblioteca não seria apenas uma pequena parte de uma vasta categoria de outras bibliotecas. O conto nos leva a um encantamento sobre a magia presente nos livros ao nos vermos diante de tomos sonhados como peças perdidas de Shakespeare ou livros não finalizados de Kafka. O ponto é que no meio desse espaço, o protagonista perdeu o seu encantamento como um leitor "selvagem" e experimental ao buscar suas leituras em classificações artificiais.
Não acredito que Mary Shelley tenha pensado em publicar uma ficção científica ao escrever Frankenstein. Ou que Lord Dunsany estaria planejando aquele romance de fantasia há décadas porque ele queria que seus personagens fossem fantásticos. Manguel nos dá o exemplo de As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift que pode ser interpretado a partir de diferentes gêneros de acordo com o ponto de vista de um leitor. Ao rotularmos o que lemos, estamos colocando-os em caixinhas à parte, impedindo que eles inundem a imaginação de quem o tem em mãos. Alguns autores tem essa mentalidade, deixando suas obras serem subjetivas para quem as lê, como os livros de Kazuo Ishiguro (que detesta quando seus livros são categorizados), Úrsula K. Le Gun e até mesmo autores mais atuais como N.K. Jemisin em seu A Quinta Estação. É uma fantasia? É uma ficção científica? É um livro filosófico? É um estudo sociológico sobre o empoderamento feminino? Deixo vocês com a seguinte fala de Alberto Manguel:
"Categorias são exclusivas; a leitura não o é - ou não deveria ser. Não importa que classificações tenham sido escolhidas, cada biblioteca tiraniza o ato de ler e força o leitor - o leitor curioso, o leitor alerta - a resgatar o livro da categoria a que foi condenado."
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