O anúncio da publicação de Gideon the Ninth pela nova editora Alta Novel alegrou vários fãs que esperavam a publicação deste título no Brasil. Mas, reacendeu a chama dos fãs mais conservadores que veem nos títulos atuais materiais voltados para agendas político-sociais específicas. Mas, e aí? Como podemos encarar a nova literatura de gênero?
Na Antiguidade, era um hábito comum entre atenienses a relação entre um homem mais velho e outro mais novo. Essa prática era chamada de pederastia. Geralmente eram relações nascidas entre um mestre e seu pupilo. As mulheres eram pessoas com poucos direitos civis (até podiam herdar terras), mas não eram consideradas nada além de cuidadoras de casa ou reprodutoras. Aliás, essa relação de pederastia é amplamente trabalhada no filme Alexandre, o Grande que mostrava a relação entre Alexandre e seu amante (aquele filme com o Colin Farrell e a Angelina Jolie). Uma pergunta frequentemente feita pelos meus alunos durante as aulas onde eu trabalho esse tema é: "ah, então os gregos eram homossexuais?". A resposta é mais complexa do que um sim ou um não porque isso depende de qual vertente historiográfica estamos usando, mas costumo simplificar a eles dizendo um simples não. Michel Foucault em seu livro História da Sexualidade nos mostra como isso era uma forma de enxergar o mundo e as relações entre gêneros que difere da nossa nos dias atuais. Foucault nos mostra que os gregos consideravam que apenas os homens eram capazes de expressar raciocínio lógico sem a subjetividade das emoções, algo que regulava as mulheres. Por serem propensas a temperamentos irascíveis, elas não podiam ser consideradas racionais. A segunda pergunta que me fazem é: "ah, então os gregos eram machistas?". E a resposta é a mesma: não.
Como bom estudioso de história social, algo que meus orientadores sempre me colocavam era o cuidado absoluto ao analisar outras temporalidades. Estamos acostumados a tecer comparativos até porque isso faz parte do senso comum. Mais do que isso, tal atitude faz parte da maneira como cada um de nós se relaciona com o mundo ao seu redor. Dizemos que nossa identidade vem de como descrevemos a nós mesmos. Mas, para eu dizer que sou uma pessoa gorda, preciso partir de algum parâmetro que me diga o que é ser magro. Se digo que sou alto, qual é o parâmetro de altura? O que corresponde a um alto ou um baixo? Em Sociologia, dizemos que alguém estabelece aquilo que é ao afirmar aquilo que não é. Em Identidade e Diferença, Tomás Tadeu da Silva procura nos explicar esses princípios, dando uma ideia do que é identidade (a visão de si) para o que é alteridade (visão do outro). Por isso que sempre buscamos construir comparativos culturais ("que nojo... tailandeses comem baratas!!") a partir do que consideramos como a "norma" ("não trocaria a minha batata frita por nada no mundo"). Só que quando trabalhamos em uma perspectiva temporal, essas afirmações de senso comum que já seriam ruins normalmente, se tornam sem pé nem cabeça. Não é correto analisar que um ateniense pederasta seja homossexual ou sequer machista. Isso porque ambos os conceitos, homossexualidade e machismo, não podem ser concebidos antes do século XX. Quando pegamos uma ideia/conceito e tentamos empregar em uma temporalidade que não seja a nossa estamos causando um fenômeno chamado anacronismo.
Peço desculpas aos leitores pela longa digressão inicial, mas o tema que vou tratar hoje é extremamente sensível e me sinto na obrigação de deixar claros de onde vem os meus pensamentos. E essa postagem surgiu a partir de uma novidade positiva e que rapidamente se tornou algo que gerou negatividade nas redes sociais. A Alta Novel, um selo de uma editora chamada Alta Books (falarei dela em outra postagem) apresentou em suas redes sociais e a partir de influenciadores digitais como o canal Sem Spoiler, alguns de seus títulos que em breve entrarão em pré-venda. Entre os títulos apresentados estão Gideon the Ninth, da autora Tamsyn Muir, um livro que já havia indicado diversas vezes aqui no FH. Leiam a sinopse:
Sinopse: O Imperador precisa de necromantes.
O Nono Necromante precisa de uma espadachim.
Gideon tem uma espada, algumas revistas safadas e não tem tempo para besteiras de mortos-vivos. Gideon The Ninth, de Tamsyn Muir, nos revela um sistema solar com lutas de espadas, política traiçoeira e necromantes lésbicas. Seus personagens parecem saltar das páginas, como abominações arcanas habilmente animadas. O resultado é um épico de ficção científica de tirar o fôlego.
Trazida de volta à vida por freiras ossificadas e não amistosas, por velhos herdeiros e incontáveis esqueletos, Gideon está pronta para abandonar uma vida de servidão e uma pós-vida como um corpo reanimado. Ela empacota sua espada, seus sapatos e suas revistas safadas e se prepara para realizar sua ousada fuga. Mas, o nêmesis de sua infância não irá deixá-la ir sem um trabalho final.
Harrowhark Nonagésima, Reverenda Filha da Nona Casa e extraordinária bruxa dos ossos foi invocada para uma tarefa. O Imperador convidou os herdeiros de cada uma das Casas leias para um teste mortal de força de vontade e habilidade. Se Harrowhark conseguir, ela irá se tornar uma imortal e toda-poderosa serva da Ressurreição, mas nenhum necromante pode ascender sem seu cavaleiro. Sem a espada de Gideon, Harrow irá falhas e a Nona Casa pode perecer.
Claro, algumas coisas são melhores quando deixadas mortas.
Embora recebida com muitos elogios, uma ala expressiva dos fãs de ficção científica torceu o nariz e usou de toda a sua artilharia nas redes sociais para criticar a editora pelo lançamento. As críticas variam entre sinopse apelativa, livro "lacrador", panfletário entre outros adjetivos não tão gentis. Antes de mais nada, é preciso entender por que a sinopse do livro é tão chamativa. A editora que publicou Gideon the Ninth nos EUA é a Tor.com que é amplamente reconhecida hoje como uma descobridora de talentos. Sua linha de publicações de histórias curtas não apenas é diversa como muito criativa. No ano de lançamento do livro de Tamsyn Muir, a editora fez uma enorme campanha de divulgação entre os booktubers americanos com edições avançadas do livro sendo enviadas com mais de seis meses de antecedência. Quando ele foi lançado, a expectativa para sua publicação era enorme. Ou seja, a editora realmente apostou no material e ela não é conhecida por ter posturas extremamente radicais, sendo uma editora diversa e representativa sim, mas antes de tudo, comercial. A sinopse de apresentação do livro é uma brincadeira feita pela autora com clichês de livros de fantasia e scifi. Para quem está esperando um livro mais leve e divertido, bem... divertido ele é, leve nem tanto. Muir é crítica da velha geração de autores e de fãs do gênero, e usou o seu humor sarcástico para pisar na ferida.
Quem já teve a oportunidade de ter contato com o livro, como eu, sabe que a narrativa vai além de qualquer coisa que lembre algo panfletário. É uma boa história com uma personagem cheia de personalidade que precisa lidar com intrigas locais. O universo criado por Muir é desafiador e criativo. A última coisa que me veio a mente é ficar prestando atenção na sexualidade das personagens. Porém, infelizmente, estamos passando por um momento complicado não apenas no Brasil como no mundo. Uma agenda conservadora vem desafiado os parâmetros de compreensão e reflexão daqueles apegados a um pensamento de direita. Aliás, é preciso até refletir sobre o que representa ser de direita. Hoje se confunde muito uma agenda voltada a valores tradicionais com o ato puro e simples de ser violento ou xenofóbico. A autora escreveu uma boa história que tem excelentes pontos de debate como a desigualdade social (em uma sociedade que lembra um pouco uma de castas), o preconceito e um pensamento retrógrado. Ou seja, se a sinopse é uma cutucada nos fãs tradicionais, a narrativa além de ser bastante representativa ao nos apresentar uma protagonista claramente homossexual, que sabe o que quer de si mesma e como o mundo deve enxergá-la. E não se intimida com opiniões alheias. Uma mulher em plenos poderes sobre si mesma, ou empoderada como costumamos empregar hoje.
A literatura de ficção científica sempre representou a vanguarda do pensamento em um determinado período. Seu poder vinha de olhar para frente a partir de problemas contemporâneos. Especular. Criticar. Reformular. Só que quanto mais à frente avançávamos com a ficção científica, um fenômeno estranho parecia ocorrer. O scifi parecia querer olhar para trás para criar pautas à frente. Ao mesmo tempo em que criou movimentos literários interessantes como o steampunk, ele fez também com que a ficção científica se tornasse desconexa com seus próprios objetivos. É válido olharmos com carinho para a obra de Asimov, mas Fundação foi escrita na década de 1950. De lá para cá muita coisa evoluiu, se desenvolveu, mudou. Talvez o Asimov se escrevesse nos dias de hoje, não escreveria uma obra parecida com Fundação. E não é por causa das pautas ideológicas, como costuma-se referir por aí. E sim porque o autor era um leitor assíduo de pesquisas científicas e sociais e criava suas histórias com base no que ele tinha contato no meio científico. O mesmo podemos dizer sobre Jules Verne. Suas obras mais famosas como Viagem ao Centro da Terra ou 20000 Léguas Submarinas vinham de seu contato com cientistas dos quais ele especulava o que suas ideias poderiam gerar.
O Brasil tem uma posição bastante infeliz na publicação de literatura de gênero internacional. Apesar de termos autores brasileiros sensacionais e que merecem cada segundo de nossa atenção, a publicação internacional ainda se concentra em colocar nas prateleiras autores clássicos como Asimov, Bradbury e Clark, o famoso trio ABC. Os defensores dessas publicações vão alegar que muita coisa de material clássico internacional nunca chegou em terras tupiniquins. E eu concordo até certo ponto. É legal vermos as editoras pensando em edições luxuosas de clássicos como A Terra da Noite, de William Hope Hodgson ou Jornada para Arcturus, de David Lindsay. Legal para caramba. Mas, a publicação de ficção científica não pode se limitar a apenas isso. Por exemplo, onde está Yoon Ha Lee? Ou C.L. Polk? Quem sabe alguma editora se aventure novamente a publicar Neal Stephenson ou Cory Doctorow? Annalee Newitz, por favor? Só que tudo o que vejo são fãs ardorosos pedindo obras da década de 50, 60 ou 70 que refletiam pensamentos de sua época. É óbvio que algumas dessas obras vão ecoar problemas atuais, afinal elas foram escritas especulando o que poderia ser o futuro. Só que só é possível especular o futuro até certo ponto. Determinados posicionamentos sobre questões sociais acabam invariavelmente passando para o papel.
Oras, Lovecraft é um autor que recebe elogios e críticas. Apear de ser o criador do horror cósmico e ter escrito obras clássicas como O Chamado de Cthulhu, é patente o quanto ele era preconceituoso e xenofóbico. Por mais que eu concorde com os seus detratores (e eu detesto a escrito do Lovecraft... não me ofereçam nada dele nem de graça), preciso analisá-lo como fruto do seu tempo. Ele nasceu em 1890 em Providence, no estado de Rhode Island. Um país diferente dos EUA, o "bastião da liberdade" que ele se apregoa hoje em dia. Um país que tinha acabado de sair de uma terrível Guerra de Secessão que não conseguiu eliminar por completo as diferenças entre nortistas e sulistas, sendo que estes últimos ainda representam uma visão tradicional do país (vide a postura trumpista da região). Não posso chamar Lovecraft de atual. Se eu quiser indicar algum livro de terror nessa estética lovecraftiana, vou indicar um Victor LaValle, um Stephen Graham Jones, um Ryan Gradix. Jamais Lovecraft.
Nas reclamações feitas por um grupo mais estridente, a impressão que fica é uma eterna síndrome de Peter Pan. Enquanto que o mundo caminha para novos debates e discussões, colocando em xeque antigas certezas, parece que se vive preso a um passado onde tudo era "diferente e melhor". É uma espécie de parquinho onde nada muda, os preconceitos continuam e a sociedade continua desigual. Falar de diversidade, representatividade, liberdade incomoda. E esse é o dever de um debate social. Nos incomodar para que possamos refletir e avançar como sociedade. Um bom exemplo disso é Neuromancer, de William Gibson ao qual se costuma elogiar e ressaltar tanto. Na época em que o livro foi lançado, suas discussões eram consideradas subversivas e perigosas, e Gibson foi rechaçado por seus pares à época. Isso só mudou após o sucesso do filme Blade Runner. Autores como Pat Cadigan e Anthony Burgess também retrataram discussões sociais em plena década de 1970. Dizer que o enfrentamento de fãs e autores de vanguarda é novidade é, no mínimo, desconhecer a história da ficção científica ou apenas mera desfaçatez. Já se emprega o conceito de pós-contemporaneidade hoje porque os paradigmas que alimentavam a sociedade do século passado já foram superados. Uma crítica constante que pesquisadores como Boaventura de Sousa Santos fazem é como ainda somos presos a um pensamento iluminista (de meritocracia, de pulverização das especialidades científicas, de racionalismo extremo) em um mundo pós-moderno. Se as ciências caminham para descobrir os segredos do DNA e a exploração espacial, a sociedade discute se o voto tem que ser impresso, se a Terra é plana ou se a vacina mata. É de uma pobreza intelectual impensável a autores criativos como Neal Stephenson, Charlie Jane Anders ou Adrian Tchaikovsky. Como fã de ficção científica, tenho vergonha de dizer que assim o sou, tamanho o nível das bobagens proferidas.
O problema do mercado brasileiro é a sua falta de variedade de literatura de gênero. Isso acaba direcionando a nossa visão do que essa literatura a um punhado de autores. Não temos tradição em ler scifi. Ou seja, nossa visão ainda está encerrada lá em 1950 e celebramos com toda pompa quando chega um Olaf Stapledon para nós... alguém que escreveu em 1930. Celebramos um Fritz Leiber, sucessor do Robert E. Howard... e cujo livro Fafhrd and the Grey Mouser possui histórias que foram publicadas entre 1939 e 1988. E que refletiam visões de mundo completamente diferentes das nossas. Não quer dizer que eu não deseje ver esses títulos publicados no Brasil. Precisamos desse registro em nossas prateleiras. Só que não posso reduzir a publicação de scifi a apenas isso. Sem falar que não há como tecer comparações entre a sociedade brasileira da Era Vargas e a dos dias de hoje. Seja em sua visão sobre a mulher, sobre o que representava a democracia ou até o que representava o trabalho. Nas primeiras décadas do século XX, um homem que andasse sozinho em trajes menos convencionais pela rua e sem identificação poderia ser preso por vadiagem. Ou aquele que gostava de ouvir samba poderia ser taxado como malandro e ser mal visto pelos seus pares. Quando as pessoas tinham absoluto pavor de vacina, não por suas características (isso também), mas principalmente porque era aplicada nas nádegas e isso era considerado pornográfico pelos homens da época.
Toda vez que vejo uma polêmica dessas nas redes sociais só me faz pensar o quanto ainda pensamos pequeno. O quanto a base de fãs do gênero é formado por um grupo expressivo e estridente de fãs que afastam leitores de fora da bolha a experimentar livros de ficção científica. Por mais que eu adore o Kurt Vonnegut, Sereias de Titã não é um livro que eu usaria como porta de entrada para um novo fã. E existem limites de quantas vezes eu vá indicar o Guia do Mochileiro das Galáxias. Não existe só isso no mundo. Precisamos de mais variedade, e com a variedade vem os assuntos contemporâneos. Assuntos que estão na pauta do dia e que permitem a tipos diferentes de fãs se identificar com o que está escrito em um livro. Com o que vocês acham que um leitor vai se identificar mais: com um mundo distópico controlado por uma nação opressora onde uma jovem vai se levantar em favor dos oprimidos ou um enorme épico espacial onde um garoto aprende poderes mentais para lutar em um deserto? As pautas precisam avançar... e não adianta apenas ficarmos lembrando da época de ouro em que sentávamos na praça fumando cachimbo. Afinal, ficção científica é sobre o que está à frente e não sobre o que ficou para trás.
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