Riley é uma menina que nasceu em uma cidade pequena e curtia hóquei no gelo. Mas, a mudança para uma cidade grande vai mudar tudo em sua vida. Em sua mente, suas emoções tentam colocar ordem na casa, mas o desaparecimento de Alegria pode pôr tudo a perder.
E se as nossas emoções tivessem vida em nossos cérebros e fossem as responsáveis por nossas reações? Uma ideia maluca como essas passou pela mente dos roteiristas Meg LeFauve, Josh Cooley e Pete Docter. Em uma história que é absolutamente comum e bastante clichê de uma menina precisando se acostumar a uma nova realidade, os roteiristas da Pixar criam uma narrativa repleta de elementos filosóficos e de conceitos abstratos e nos presenteiam com uma das melhores animações do estúdio. Já devo ter visto Divertida Mente umas quatro ou cinco vezes e ela sempre consegue me apresentar uma camada nova, algum aspecto que não tinha percebido antes. O resultado é algo muito divertido (sem trocadilhos) e que pode ser assistido, com diferentes análises e pontos de vista, por pessoas de todas as idades.
Na história somos apresentados a Riley, a quem acompanhamos desde que sua mãe lhe dá a luz. Vemos os primeiros momentos de sua vida, os primeiros passos, o carinho dos pais, a ida à escola, o amor pelo hóquei. Dentro de sua mente, acompanhamos suas emoções lidando com os diferentes aspectos de sua vida: Alegria, Tristeza, Nojo, Medo e Raiva. Cada uma é uma doce criaturinha que representa estes sentimentos. E apesar de serem seres distintos, todos eles compartilham de uma coisa: o amor por Riley. Eles veem sendo construídas as principais memórias da jovem menina e acompanham o cotidiano dela. Mas, um dia, tudo é bagunçado. Riley faz 11 anos e seu pai recebe uma oportunidade de emprego em San Francisco. Eles saem da pequena cidade onde vivem e partem para a cidade grande. Só que ao chegar lá, tudo muda. A família antes unida, agora vive atarefada; Riley não se adapta muito bem na escola. Na mente de Riley, Alegria acaba discutindo com Tristeza que sempre coloca a mão onde não deve. Em uma dessas brigas, elas acabam se atrapalhando e são sugadas para o subconsciente de Riley. A central de comando acaba ficando nas mãos de Raiva que faz algumas pequenas mudanças na vida de Riley. Enquanto isso, Alegria e Tristeza precisam encontrar uma forma de voltar para a central de comando, mas a mente de Riley parece estar entrando em colapso com tantos sentimentos negativos que ela tem vivenciado.
Devemos boa parte da concepção do roteiro a Pete Docter que criou os principais conceitos do filme a partir das reações de sua filha desde o nascimento. Ele passou a se interessar em como os acontecimentos mais comuns podem interferir na maneira como sua filha enxergava o mundo. O que a fazia ficar triste? O que lhe dava nojo? O que a deixava brava? A partir daí, a equipe que montou o roteiro de Divertida Mente consultou inúmeros psicólogos para buscar fundamentar em conceitos reais o que eles estavam querendo montar. Talvez esse seja o ponto que mais chama a atenção no filme, que é o das conexões que ele faz com a neuropsicologia. Não descartem o filme apenas por ele passar ser mais uma animação criada para o público infanto-juvenil. Ali, estão presentes ideias como a interferência social na formação de nossa personalidade, a maneira como nos relacionamos com o mundo, a forma como reagimos aos problemas que nos são impostos pela vida. As reações psicossomáticas que temos são fruto da manifestação destas emoções. No filme vamos acompanhar a maneira como o corpo e a personalidade de Riley se desenvolve, seja com a maneira como a sua família a cria e passa valores, o papel da escola, os esportes como uma forma de se soltar para o mundo. Divertida Mente é um manancial de informações a respeito do desenvolvimento de uma criança ao longo de seus anos de formação. Para quem é educador, é como se eu pegasse as tabelas de evolução emocional de Jean Piaget e as transformasse em algo animado.
Passando pelos aspectos técnicos do filme, já mencionamos seus roteiristas. Além do roteiro, Pete Docter foi o diretor do filme. Docter foi responsável por outro grande sucesso da Pixar, Universidade Monstros, e contou com a co-direção de Ronnie del Carmen, que esteve presente em outras animações da Pixar (em diferentes funções) como Valente e Wall-E. A participação de Ronnie é curiosa porque ele é um indivíduo com múltiplos talentos como dublê de voz, ilustrador, projetista. Para Docter que contou com uma equipe até meio que reduzida, ele foi fundamental para o bom andamento do filme. A produção ficou a cargo de Jonas Rivera, que teve participação em Up: Altas Aventuras. Aliás, sua participação na equipe de Divertida Mente lhe garantiu espaço em outras animações futuras de grande porte como Toy Story 4 e Soul. A trilha sonora é extremamente divertida e ficou a cargo de Michael Giacchino, que foi uma escolha bem curiosa da Pixar. Ele não era um produtor musical muit frequente no estúdio, tendo participado antes apenas em Ratatouille e Up. Era alguém mais envolvido em equipes de produção sonora, fosse para séries como Lost, animações como Gárgulas ou games. Para Giacchino, Divertida Mente também representou um salto na carreira tendo conseguido depois fazer parte da composição sonora para o primeiro filme do Doutor Estranho. O filme tem 95 minutos e foi lançado nos EUA em 2015. Ele mais do que se pagou em bilheterias. Vale mencionar a equipe de dubladores americanos que é bem legal. A Alegria é dublada pela Amy Poehler, uma conhecida comediante; Nojinho também é interpretada por uma comediante, a Mindy Kaling. Phyllis Smith, uma atriz que participou de The Office, interpreta a Tristeza. Já Bill Hader interpreta Medo e Lewis Black, a raiva.
Sobre a animação em si, ela tem um contraste marcante entre os momentos que se passam na mente da Riley e os que se passam no mundo real. O subconsciente da menina é colorido, vibrante, repleto de objetos e grandes espaços. Inclusive existem ilhas onde cada um dos grandes desejos da personagem são transformados em "realidade": o hóquei, a família, as bobagens. A gente percebe o quanto as coisas possuem vida e individualidade. No mundo real, a animação adota um tom mais sóbrio. No geral, a animação tem uma fluidez muito legal. E achei até que mesmo tendo passado vários anos, não perdeu o frescor e o ar de criatividade e inovação. Algumas animações 3D envelhecem mal, seja pelos efeitos que se tornam estranhos e robóticos ou as cores que parecem estranhas; não é o caso aqui. Gosto também de que a Pixar gosta de cenas rápidas e que fluem bem para o espectador. Ou temos as tomadas mais amplas onde o diretor nos mostra o que existe no horizonte. Em um filme onde se brinca tanto com metáforas e elementos figurativos, isso oferece uma segunda camada de análise. O espectador sempre está descobrindo alguma coisa nova, seja o elefantinho maluco, ou até as criaturinhas que apagam as memórias cinzentas. As informações aparecem até os momentos finais do filme. Para mim, Divertida Mente entra fácil em um top 5 de melhores animações do estúdio.
Existe um pouco de mentalidade oriental neste filme. Isso porque a trama principal do filme gira na relação entre Alegria e Tristeza. Alegria é uma menina (vou chamar de menina mesmo... acho que fica mais fácil de entender) divertida e sempre muito positiva. Ela procura enxergar o bem mesmo nos momentos mais complicados. Ao longo do filme, Alegria tenta passar uma postura agregadora, de confraternização. Por outro lado, Tristeza é mais tímida e retraída. O roteiro a mostra até como um pouco atrapalhada, buscando fazer o bem, mas tropeçando em suas ações. Ela quer ajudar, mas sua personalidade não auxilia no processo. Suas repetidas trapalhadas colocam Riley em situações complicadas. É então que Alegria tenta conter a situação, colocando Tristeza para fazer outras coisas, a deixando parada em um canto ou até a ostracizando de alguma forma. E isso claramente não resolve, porque não é possível ignorar a Tristeza. A Alegria é importante em nossas vidas, já que sem ela não teríamos felicidade. Mas a Tristeza nos faz refletir sobre nós mesmos, nossos limites e como podemos nos aprimorar. Quando Alegria acaba sendo até um pouco grosseira com Tristeza, ela não procurou entender direito o que a deixava daquele jeito. A mensagem do filme é que nossas qualidades e defeitos montam os tijolos que formam nossa personalidade. Não é errado ficar triste de vez em quando; ou ter nojo de alguma coisa; ou sentir medo. Não somos positivos sempre. E está tudo bem. Na cultura oriental representamos isso a partir do yin/yang. Não existe bem sem o mal e vice-versa. Esse é o equilíbrio do mundo e o nosso também. Precisamos abraçar quem somos para sermos melhores. Encontrar aonde as coisas precisam estar. Um filme voltado para o público infanto-juvenil tratar de um tema tão complexo de uma forma tão didática é uma preciosidade.
Gostei demais da jornada que Alegria e Tristeza tiveram. Elas viveram vários momentos interessantes e engraçados enquanto buscavam se conhecer melhor. Alegria e Tristeza são dois sentimentos opostos e que se completam. Por isso que quando as bolas de memória sofrem aquela alteração no final, eu considero normal. Porque assim são as coisas. Podemos ter emoções múltiplas e diferentes ao nos recordarmos de acontecimentos passados. Mesmo situações dolorosas, podem gerar emoções conflitantes em nós. Sem mencionar que determinadas memórias acabam se esvanecendo no tempo, sendo substituídas por outras mais atuais. É possível acessar uma memória mais antiga, só que ela vai se tornando cada vez menos clara para nós. São poucas as memórias que realmente permanecem conosco até o final de nossas vidas. Realizar a jornada pelo subconsciente da Riley nos mostra também como determinadas posturas nossas são substituídas à medida em que somos moldados pela sociedade que nos cerca para nos comportarmos de um determinado jeito. O mundo da bobeira da Riley estava fadado a desaparecer já que não podemos ter esse comportamento quando crescemos. Mesmo em nossas relações familiares. O amor por nossos pais vai tomando significados diferentes quando crescemos e se reinventando.
Para não dizer que não falei da Riley, vemos o quanto ela sofre quando muda de cidade. Nesse filme em específico, o clichê de precisar se adaptar a uma nova realidade é virado de cabeça para baixo. Normalmente teríamos a protagonista encontrando algo no novo lugar com a qual ela se identifique. Só que aqui não é o caso. Esse novo universo se torna prejudicial ao seu desenvolvimento e até à relação com seus parentes. Como alguém assistindo de fora não sei como reagiria a essa situação. Em alguns momentos, entendi a Riley como uma garota mimada. O pai precisar abandonar o seu emprego para restabelecer o equilíbrio familiar foi um pouco demais para mim. Entendo que isso era para dar um encaminhamento feliz para a trama, mas nem sempre é possível obter esse encaminhamento no mundo real. Queremos voltar a uma fabulosa Era de Ouro onde tudo era melhor e mais bonito. Só que a realidade da vida é mais complexa do que parece. Quando ela foge de casa (até um alerta de gatilho isso), isso significou um momento problemático para ela. Riley deveria ter conversado com seus pais, mesmo que essa conversa lhe gerasse mais um dissabor. O filme nos passa a ideia de que isso foi culpa de suas emoções que estavam bagunçando o seu subconsciente, mas aquilo foi um momento dramático, principalmente para quem é um pai ou uma mãe. Essa ideia do filme de contemporizar e voltar as coisas ao princípio em outro lugar onde tudo era melhor não foi um desfecho que eu considero correto. Mas, foi uma escolha.
Divertida Mente é um ótimo filme que recomendo para todas as idades. Já assisti esse filme com meus alunos, o que gerou ótimas discussões sobre família, sobre mudanças e amadurecimento. Sempre temos alguma camada a mais para discutir depois de assisti-lo. Quando um longa-metragem possui tantas interpretações possíveis, é sinal de que a produção é de altíssima qualidade. Além disso, as interações entre os personagens são leves e divertidas, mesmo nos momentos mais tensos. A Pixar conseguiu produzir um clássico entre suas animações que já são de excelente qualidade. Para mim, esta, em particular, está lá na primeira prateleira.
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