Vamos começar uma série de três matérias pegando o ponto de vista de editores, autores e influenciadores de conteúdo procurando saber se houve realmente uma retração no gênero fantástico no Brasil. A partir destas variadas opiniões poderemos tirar a nossa própria.
Nesta semana saiu um comunicado da editora Leya, que até então era detentora dos direitos de publicação do autor Brandon Sanderson no Brasil, justificando o abandono da publicação dos livros do autor. Para quem é do metiér não é nenhuma novidade isso ter acontecido, visto que a editora já havia repassado os direitos de publicação de George R.R. Martin (que era o ganha-pão de fantasia da Leya) e de Robin Hobb para a editora Suma e havia desde então cancelado quase todas as publicações no gênero há mais de dois anos. A matéria que saiu no Publishnews (link aqui) caiu como um tapa na cara de muita gente envolvida no meio. Inclusive o assunto foi amplamente debatido no evento promovido pela Casa Fantástica que ocorreu ao longo deste último final de semana. Não vou me posicionar neste momento a respeito deste tema (vou deixar para me posicionar no momento adequado).
Como bom influenciador digital (se é que posso usar esta alcunha) decidi então fazer um trabalho de pesquisa. Consultei pessoas ligadas a editoras, autores e blogueiros/booktubers para saber se realmente a fantasia não tem vez no Brasil mais. A todos foi proposta a seguinte pergunta:
Fulano, você concorda que o gênero de fantasia teve uma retração no Brasil? Que os fãs não justificam um investimento das editoras?
Como regra para as três postagens, não vou editar ou interferir na resposta de nenhuma das pessoas envolvidas. Ou seja, é a resposta crua e sem cortes. Ao Ficções não cabe nenhuma responsabilidade quanto às opiniões, sendo que cada uma delas pertence a eles (por isso, cada um deles teve o maior cuidado com suas respostas). Vou deixar abaixo também os links para as outras duas matérias cujos links eu atualizo assim que as postagens forem feitas (a próxima será no dia 06/07 e a outra no dia 13/07).
Então vamos lá!
Você concorda que o gênero de fantasia teve uma retração no Brasil? Que os fãs não justificam um investimento das editoras?
Mario Bentes, autor e editor da Lendari e do Grupo Estante:
Se houve retração, não foi por falta de interesse do público. Mas pelo crescimento de outros gêneros que passaram a disputar as atenções. Terror cresceu muito nos últimos anos, assim como ficção científica, principalmente as de nicho, como cyberpunk e alguns derivados com pegada regional. Todos estes gêneros sempre tiveram público, mas com maior ou menor interesse de acordo com a época. É importante destacar que o poder de compra também reduziu, como consequência de retração econômica. Tudo isso influencia. Mas fantasia sempre terá público cativo. O importante é saber o que o público deseja. Compreender o zeitgeist é papel do editor.
Erick Santos Cardoso, autor e editor da Draco:
Para a Draco, que trabalha com obras originais e tem a intenção de criar um catálogo sólido e de qualidade, seguir tendências sempre foi muito mais difícil. Porque diferente dos editores de aquisição que compram materiais prontos nas feiras de negociação mundial, nossos trabalhos são completamente originais. Nosso processo a gente produz do zero, editando roteiros e romances no nível da palavra, para depois de um longo tempo termos um original para publicação. Muitas vezes notamos que sucessos nossos tornam-se inclusive referência até para as grandes editoras se pautarem em suas buscas por tendências, como o Despertar de Cthulhu e a consequente proliferação de grandes e pequenos editores lançando material lovecraftiano. Sobre a fantasia, especificamente, vimos desde O Senhor dos Anéis e Harry Potter uma popularização do gênero entre as pessoas que não o consumiam por causa do cinema, mas entendemos que o leitor mesmo que curte fantasia, o fã hardcore, digamos assim, continua interessado e procurando obras diferentes. Como criadores de conteúdo original, ainda há muitos temas e histórias a serem exploradas dentro do espectro do nosso ambiente brasileiro e da nossa voz, que fala de realidades muito distintas. Então vamos continuar contando nossas histórias de elfos, anões, heróis e vampiros, assim como os bichos de nosso folclore e até mesmo seres fantásticos inéditos, mas com o sabor original do autor brasileiro.
Bruno Anselmi Matangrano, pesquisador e autor de Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo
Acho que, na verdade, o mercado editorial brasileiro como um todo sofreu uma retração, o que é natural. Vivemos uma crise sanitária mundial e uma crise política nacional. É natural que sintamos reflexos no mercado. E, obviamente, isso não é só uma questão do Brasil, tampouco só dos livros. O mundo está em recessão. Porém, se deixarmos 2020 de lado um pouco, vemos um mercado europeu, por exemplo, em franca expansão, notadamente no que diz respeito a livros de fantasia, horror e ficção científica. Ilustremos com o caso da França, um país sem longa tradição de fantasia, mas que tem visto nos últimos anos uma grande mudança de perspectiva: nunca antes se lançou, se leu e se estudou tanta literatura fantástica traduzida ou diretamente escrita em francês quanto nos últimos anos. No Brasil, no entanto, a situação se agravou muito recentemente com a quebra das maiores redes de venda do setor, com a alta do dólar e a crise econômica, o que resultou numa alta de custos para se produzir livros, refletindo-se, por sua vez, no preço de capa (o preço pago pelo leitor) e a própria escolha dos títulos a serem publicados. Ora, numa situação tão desfavorável como a que estamos vivendo, os primeiros a serem cortados serão sempre os grandes projetos e é aí que a fantasia sai prejudicada. A fantasia é conhecida por ser um gênero de livros extensos, comumente publicados em vários volumes, o que demanda um alto investimento inicial e um engajamento do público a longo prazo. Quando a coisa aperta, as editoras estão com menos dinheiro e o público vai pensar duas vezes antes de gastar; os livros extensos - posto que caros - serão os primeiros a deixarem de vender. Em suma, não vejo de modo algum uma crise na literatura fantástica no mundo, ou mesmo no Brasil, mas estamos vivendo uma crise econômica, com grande impacto ao setor livreiro nacional e isso impacta projetos de longo prazo, sobretudo séries e livros longos, o que, por acaso, coincide com o perfil das publicações de fantasia.
Clara Madrigano, autora e ex-editora da Dame Blanche:
OK, então nós temos duas perguntas aí que e, embora pareça que uma é consequência da outra, não é bem o caso. A primeira pergunta: houve retração do gênero de fantasia no Brasil? Eu começaria dizendo que nunca houve grande popularidade da fantasia no Brasil, então falar que houve retração é imaginar que, um dia, fantasia foi bestseller. Nunca foi, exceto em casos muito específicos, e nós temos que entender isso. Quando Harry Potter vendia como água, a série era um fenômeno mundial, e não era exatamente um fenômeno da fantasia: era um fenômeno do mercado editorial por inteiro. Houve muita vontade das editoras de encontrar novos e possíveis herdeiros do sucesso de Harry Potter, mas nenhuma dessas investidas chegou a decolar por completo. Um grande exemplo disso foi a (enfim) chegada da Diana Wynne Jones em língua portuguesa; Diana Wynne Jones, a autora que, quando a Rowling ainda nem sonhava com Harry Potter, já supria lá fora a carência por histórias de jovens magos e de universos encantados. Diana Wynn Jones nunca chegou a encontrar seu lugar aqui, no entanto. Os poucos livros dela que foram publicados acabaram não ganhando novas edições e o que mais perdurou no gosto brasileiro provavelmente foi O Castelo Encantado, graças ao filme do Studio Ghibli. Por isso que é importante diferenciar fenômeno de gênero. O brasileiro foi muito fã de Harry Potter, mas o brasileiro não é, necessariamente, fã de fantasia. Nenhum livro de fantasia chega a listas de mais vendidos se não trouxer consigo o toque mágico de um fenômeno. Aconteceu a mesma coisa com A Canção de Gelo e Fogo, do George R. R. Martin. Os livros até que venderam bem no Brasil, graças à repercussão da série da HBO; mas a verdade é que A Canção de Gelo e Fogo era publicada lá fora desde 1994 e, antes que se tornasse série de TV, nunca houve muito interesse do mercado brasileiro em publicá-la por aqui. Houvessem feito isso antes do selo de aprovação da HBO, provavelmente os livros teriam vendido muito pouco, de forma a não garantir novas edições ou edições de luxos (como vimos acontecer quando os livros passaram a ser publicados aqui depois de Game of Thrones ter se tornado um fenômeno). Não se pode medir um gênero por um fenômeno, portanto. Stephen King vender bem pelo mundo todo não significa que horror seja um gênio popular no mundo todo, e especialmente no Brasil. Quanto à segunda pergunta, minha resposta é: depende. Porque existem fãs ávidos de fantasia pelo Brasil, mas é preciso entender esse público, e não tratar qualquer série de livros do tamanho de um tijolo como uma garantia de sucesso aqui no país. Uma editora que anda fazendo um bom trabalho, no que diz respeito a atingir o público de fantasia, é a Morro Branco. Até mais do que fantasia, a Morro Branco parece disposta a trazer uma variedade de ficção especulativa para o Brasil, o que incluiu a obra da Octavia Butler, uma autora importantíssima no gênero especulativo e que nunca havia ganhado nenhuma atenção aqui no Brasil. A Morro Branco parece estar entendendo como o jogo funciona no Brasil: é uma editora pequena e voltada a um único tipo de literatura, com tiragens menores, que não são de luxo, e um marketing bem direcionado ao público-alvo que ela contempla. Foi o que permitiu que a editora trouxesse para cá tanto o que é clássico (Octavia Butler) quanto o que é novo (Seanan McGuire, N. K. Jemisin) dentro do gênero. E aí chegamos na produção nacional: quem contempla a produção fantástica nacional? Fantasia nacional é lida? Fui dona de uma micro-editora por quase cinco anos e posso dizer que, sim, há público para fantasia nacional. E esse público tem potencial de crescer, mas a ficção fantástica nacional ainda precisa ser levada a sério dentro do nosso próprio mercado, pelas editoras tradicionais. Quem mais valoriza a fantasia nacional costuma ser quem trabalha direto com ela: seus próprios autores. Que, nos últimos anos, têm criado movimentos e revistas e eventos e editoras independentes que tentam compensar um pouco por todos os anos de descaso do mercado editorial brasileiro com a ficção especulativa nacional. Esses esforços todos provaram para mim que, sim, há um público fiel de fantasia que, além de se interessar por obras internacionais, também se interessa pelo que brasileiros publicam. Mas se aproximar dele requer uma tática diferente, e tratar a fantasia nacional como tratamos a fantasia estrangeira seria um erro. Na verdade, se a experiência da LeYa prova alguma coisa, é que tratar fantasia estrangeira como imaginamos que a fantasia estrangeira precisa ser tratada, com aquela pompa toda, é um erro. Porque vender no Brasil não é o mesmo que vender nos Estados Unidos. A editoras tradicionais precisam se atualizar. Precisam se adaptar à crise do mercado e precisam aprender a atuar em nichos. Acima de tudo, precisam valorizar o que é da casa.
Tags: #fantasia #leya #crisenomercadoeditorial #mercadoeditorial #fantasialnobrasil #publicarnobrasil #publico #fas #fantasiabr #crise #ficcoeshumanas
Comments