Dando continuidade às nossas discussões sobre uma possível "retração da fantasia", dessa vez fomos buscar a opinião de autores consagrados da literatura fantástica nacional. Como será que eles enxergam esse cenário?
Na semana passada fizemos uma postagem repercutindo a declaração da editora Leya dada ao público (e publicada pelo site Publishnews) em que ela alegava haver uma retração no gênero fantástico não só no Brasil como no mundo todo. Buscamos a opinião de especialistas do mercado editorial para entendermos melhor este cenário e obtivemos algumas respostas bem interessantes. Mas, como bom historiador que sou, entendo que para compreender uma conjuntura histórica, é preciso conhecer o todo, ouvindo todas as partes envolvidas: produção, produtor e público-final. Ouvimos o lado das editoras; agora é hora de ouvir o lado dos autores. Será que a opinião deles é a mesma?
Nas respostas que vamos ver a seguir, vamos notar algumas diferenças em relação ao material coletado junto aos editores. Enquanto que para os editores existe uma batalha diária a ser lutada, um mote de perseverança diante de obstáculos inimagináveis, para os autores esses obstáculos possuem outros nomes. Muitos leitores do Ficções vão se perguntar, por que fazer a mesma pergunta a tantas pessoas diferentes? As respostas não vão se repetir? Até podem... e eventualmente irão. Mas, percebam os detalhes finos das respostas dadas. Percebam o que fica nas entrelinhas; o enfoque de cada um; os acréscimos; os silêncios. Esse é o trabalho do pesquisador e essa é a brincadeira por trás dessa longa matéria de três (que ganhou uma semana a mais porque Ana Lúcia Merege merece uma semana para dar o seu depoimento, afinal ela é uma de nossas colunistas).
Os links das outras matérias estão abaixo:
Você concorda que o gênero de fantasia teve uma retração no Brasil? Que os fãs não justificam um investimento das editoras?
Ian Fraser, autor da série Araruama e de Noir Carnavalesco:
O caso Sanderson mexeu muito comigo. Não pelo autor, ele vai continuar rico e eventualmente achará uma casa para traduzir seus trabalhos aqui em nossas terras. Pensei em mim e nos meus amigos, para ser sincero. Se a LEYA, que é a LEYA, pelo amor de Deus, com nome, com distribuição nacional, com know-how está dizendo que o Sanderson e o Martin (não vamos esquecer que a editora falou algo semelhante algum tempo atrás) não vendem, imagina se um dia elas vão olhar para esses míseros escritores desconhecidos que movimentam a cena da literatura fantástica independente no Brasil. Não posso falar de retração, não tenho base para falar dos números do mercado como um todo. É verdade que se você for viver dos números de Harry Potter, Crepúsculo e Jogos Vorazes, faz tempo que a fantasia não produz um sucesso nessa escala. Mas isso é só questão de tempo, também. Contudo, porém, entretanto, todavia, essa estratégia de mercado para mim, falando puramente no âmbito pessoal, é uma furada. Honestamente, não me importo com o que Sanderson ou o Martin estão escrevendo. Perdoem meu inglês, mas estou shiting and walking para eles. Eu acho que precisamos de uma grande editora, eu tô falando grande mesmo, que trabalhe APENAS com autores nacionais de fantasia especulativa. Faça o trabalho de base, investindo, levando para eventos e criando um mercado que seja autossustentável. Que use o dinheiro de obras estrangeiras para alavancar o cenário nacional. Para que o debate não seja sobre Sanderson, mas sim sobre nós. E tenho certeza de que, se bem trabalhado, com cautela e com ambições realistas, poderemos ter um mercado saudável, pois, se há uma verdade que é clara é que o Brasileiro quer se ver nas obras que ele consome. Ele quer olhar e falar, puts, sou eu aqui.
Sobre o mercado independente, quero apenas dizer o quanto eu admiro o trabalho da Pyro, da AVEC, da Corvus (BAHIA!!!!), da Dame Blanche, e tantas outras editoras que dão o sangue para que a gente tenha um mercado pequeno, porém movimentado. Se há uma coisa que eu posso dizer da minha bolha fantástica é que ela é, de fato, fantástica. E nessa bolha não tem espaço para retração de porra nenhuma.
Nikelen Witter, autora de Viajantes do Abismo e Territórios Invisíveis:
A resposta curta é não. Mas justificar esse não é um pouco mais complexo. Primeiro, a retração que se nota nos últimos anos é no mercado de livros como um todo. Contribuem para ela a crise econômica, o fim dos investimentos governamentais no PNL, o crescimento dos streamings. Sinceramente, não vejo um setor mais ou menos afetado, caso a gente separe a produção literária por gêneros.
O Brasil é um país em que historicamente a leitura foi compreendida como um tipo de ócio das elites, como um não fazer nada, como algo contrário a ideologia do trabalho, como uma perda de tempo. Isso fica bem claro quando observamos uma sociedade que está sempre pronta a condenar, cobrar e perseguir professores. Uma sociedade que está sempre clamando por melhores níveis de educação, mas não se choca em ter o professor mais mal pago do mundo. Estamos nas piores posições do mundo em níveis educacionais, e ao invés de se culpar o fato de esses profissionais precisam trabalhar 60h por semana para sobreviverem, se cobra deles resultado.
Por que falo dos professores? Porque em grande parte dos países, os professores ocupam um lugar importante como multiplicadores de leitura, o que não ocorre no Brasil. Entre outros motivos – e falo aqui como formadora de professores – porque os professores não têm tempo para ler.
E justamente por estar em contato com jovens (sejam os meus alunos, sejam os alunos dos meus alunos) é que não vejo essa retração no interesse pelo gênero fantasia. Pelo contrário, cada vez que converso vejo o interesse muitas vezes barrado pelo pouco investimento ou pela pouca propaganda sobre o gênero.
O que me faz estranhar a justificativa da Editora Leya é colocar essa declaração nesse momento, culpando um gênero específico e não o mercado como um todo. Talvez a escolha tenha se dado pelo gênero que vendia menos na Leya, mas não penso nisso como um retrato do cenário nacional. Não quando se percebe o aumento dos clubes de leitura pelo país, o aumento exponencial de Booktubers e Instabookers, e muitos destes dedicados à fantasia. Mesmo os serviços de streaming têm dado especial atenção ao interesse das pessoas pelo gênero fantasia, produzindo e anunciando estarem produzindo material, inclusive, baseado em livros e séries (muito além de Game of Trones).
O que incomoda a nós, autores brasileiros de fantasia e literatura fantástica em geral, é a contínua negação por parte do mercado editorial mainstream de nossa existência e de nossa qualidade. Já falei mais de uma vez que não conseguimos ainda superar uma fase heróica (categoria sócio-histórica) da literatura fantástica, ainda dependente dos esforções pessoais de escritores, bravos pequenos editores e leitores engajados. Oxalá um dia a gente passe para a próxima fase desse jogo.
Diego Guerra, autor de Teatro da Ira e Gigante da Guerra:
Acho que antes de mais nada é importante entender a perspectiva das coisas. Quando se fala em retração do gênero de fantasia, estamos falando sobre a retração da fantasia nacional ou nos best sellers de fantasia importada? O mercado editorial brasileiro sempre foi pequeno, o mercado de nicho, como a fantasia é proporcionalmente menor.
Não acredito em uma retração no interesse dos leitores. Os fãs de fantasia, ficção científica e horror costumam ser fiéis aos seus gostos ao longo da vida e embora um ou outro curioso possa ter passado pelo gênero incentivado por algum sucesso cinematográfico, acredito que a maioria dos leitores continua firme, forte e sedenta. Talvez sedentos até demais, o que torna a espera pelas traduções algo complicado.
Arriscando um palpite, diria que o que vem inviabilizando a importação de best sellers sejam questões puramente econômicas. Royalts negociados em dólar podem ter espremido as margens de lucro das editoras, que já vinham caindo com a contração do preço dos livros. Se vender hipotéticos 5 mil livros de algum autor internacional antes dava lucro, hoje em dia talvez dê prejuízo. É uma conta difícil de se fazer sem entender sem a planilha na mão.
Acho, porém, que vem sido um bom momento para o autor nacional de fantasia, não apenas por conseguirem manter uma produção constante e acessível ao público, mas também pela proliferação de publicações de nível profissional como as revistas Mafagafo, Trasgo e A Taverna, além, claro, das possibilidades abertas pelos financiamentos coletivos, capazes de viabilizar um projeto independente.
As Editoras de fantasia brasileiras saem na vantagem nesse atual momento, uma vez que já estão adequadas a uma margem de lucro menor, fazem o pagamento dos direitos autorais em Real e tem a grande vantagem do autor presente para lidar com o público local. O trabalho não é fácil, mas estamos vendo um trabalho excelente feito por alguns nomes do gênero o que, pessoalmente, me dá certa esperança de que o mercado de fantasia nacional saia mais forte desta crise. Se sobrevivermos ao apocalipse.
Eneias Tavares, autor de A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison e Juca Pirama - Marcado para Morrer:
A pergunta demanda um "Sim" ou "Não", o que é difícil de dar porque há muitas variantes envolvidas. Do ponto de vista do mercado como um todo, não do gênero “Fantástico” ou qualquer outro, minha resposta seria "Sim", pois há um número significativo de menos livrarias, dada a crise econômica no país, crise agravada pela atual pandemia.
Com essa retração – que é fato, não opinião – do mercado, temos menos casas editoriais dispostas a arriscar seu capital. E isso, novamente, independe do gênero A ou B. O resultado é óbvio: Menos títulos sendo produzidos e lançados e dos que estão sendo lançados ou são títulos já negociados e, não raro, já editados. Nesse cenário, gêneros específicos e, em especial, autores nacionais, com raríssimas exceções, sentem o baque. Agora, do ponto de vista do gênero "fantasia" – pensando como um todo, que compreende número de títulos, autores e migrações necessárias e mais que bem-vindas para outras mídias, como Quadrinhos, TV e Cinema – minha resposta seria "Não". Em relação a outros títulos, não haveria uma retração específica do gênero fantástico, ao contrário, pois mais canais e empresas estão investindo em um gênero mais próximo do público jovem e com um potencial de produtos derivados enorme. Em outros termos, o que noto é o mercado se movimentando e se reinventando com novos títulos de autores consagrados, novos lançamentos de autores novos, novas ações sendo promovidas, sejam virtuais ou coletivas, e tudo isso nesses tempos críticos e preocupantes, não apenas para a literatura e sim para todos os profissionais da indústria artística e cultural no mundo. Do ponto de vista das editoras, foi uma perda grande não termos a LeYa produzindo mais fantasia, de fato. Por outro lado, cito como exemplos as editoras Jambô - que fechou 2019 com um número impressionante de novos lançamentos de literatura fantástica nacional – sob a guardo do selo Odisseias, com curadoria de Karen Soarele – e uma participação marcante tanto na Bienal do Livro do Rio quanto na CCXP 2019, além da AVEC, de Artur Vecchi, que teve um 2019 recorde de lançamentos, com um 2020 também cheio de novidades, também muito em conta por seu modelo de negócios. E isso para citar apenas duas casas editoriais. Eu finalizo, apenas reforçando que não desconsidero a dificuldade que várias casas editoriais estão enfrentando nesse momento, bem como os profissionais nelas inseridos, sejam eles autores, editores, diagramadoras e revisores, entre outros. Antes, o que gostaria de enfatizar é que casos particulares sejam vistos e analisados em suas particularidades, sem generalizações, como infelizmente aconteceu na nota a imprensa da LeYa. Para quem trabalha com livros no Brasil, a reinvenção do mercado, das ações e da própria carreira, parece uma dura realidade e uma dura constante. Acho que é isso que estamos vivendo, mais uma vez. Precisamos, então, é de ações apaixonadas e inteligentes, que notem a ferramenta maravilhosa que temos em tempos de internet, redes sociais e tantas plataformas, como sabemos fazer tão bem, especialmente em tempos de crise.
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