Na HQ Heimat, a ilustradora Nora Krug vai buscar o passado de sua família e seu envolvimento com a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial para tentar entender qual o seu lugar no mundo. Uma história provocadora, reflexiva e muito emocional.
Heimat --> "Termo que define o conceito de uma paisagem ou localidade real, imaginária ou construída, à qual uma pessoa [...] associa uma sensação imediata de familiaridade. Essa experiência é [...] passada de geração em geração, através da família e de outras instituições, ou por meio de ideologias políticas. Em seu uso comum, HEIMAT também se refere ao lugar (também entendido como um cenário) em que uma pessoa nasceu, onde vivenciou as primeiras socializações que influenciam enormemente na formação de sua identidade, caráter, mentalidade e visões de mundo [....] Os nacional-socialistas usavam esse termo para [...] associar a um espaço de afastamento, em particular àqueles grupos que estavam procurando se identificar com um modelo simplista para sua orientação psicológica."
Toda vez que lemos alguma coisa sobre os campos de concentração ou sobre a violência nazista durante a Segunda Guerra, nosso sentimento é de estarrecimento. Como um indivíduo foi capaz de causar tamanho mal a outra pessoa? As imagens muitas vezes falam por si só. Corpos jogados em valas coletivas, pessoas que perderam seus entes queridos, vidas destruídas. Essa narrativa acaba criando em nós um sentimento de repulsa em relação aos alemães. E quase sempre esse é um sentimento que acaba afetando nossa percepção até mesmo de alemães nos dias de hoje. Como se os descendentes ainda ficaram marcados pelos pecados de seus antepassados. Mesmo que neguemos isso, essa é quase uma associação inconsciente. Em frases pequenas como "isso é coisa de alemão" ou o ato de "judiar" alguém. Nora, sendo alemã, começou a ter também essa sensação de culpa. Se sentir responsável e responsabilizada pelos atos daqueles que estiveram ou participaram da ofensiva nazista. E, ao longo de Heimat, ela vai buscar um sentido para sua própria existência.
Heimat não é uma HQ comum. Está mais para um livro ilustrado que se debruça sobre um imenso projeto investigativo levado a cabo por Nora para buscar a participação de sua família naqueles anos de Segunda Guerra e de que lado eles se encontravam. O papel da editora foi organizar os relatos de Nora em uma narrativa concisa e que faça sentido para o leitor. E até fica um pouco de confusão porque em alguns momentos ela avança e retorna em seus relatos, revelando peças de quebra-cabeça que haviam sido juntos até então. Temos um corpus documental enorme seja com entrevistas orais levadas a cabo por Nora até documentos obtidos em arquivos públicos de Karlsruhe ou de Kurlsheim, duas cidades importantes para sua família. Então não esperem um quadrinho no sentido normal do termo, mas mais um relato investigativo. Eu adorei porque me permitiu me debruçar sobre essa questão da identidade de si e da culpabilidade a partir de outros olhos.
Toda a jornada da autora começa a partir do questionamento que ela faz sobre aonde se situa a sua Heimat. A palavra implica em uma sensação de pertencimento, algo mais psicológico do que geográfico. Se a gente puder fazer uma associação crua, seria o significado da palavra Lar. O que entendemos como o nosso Lar? É o lugar que nascemos? É onde nos sentimos acolhidos? É onde nossa infância foi identificada? Para os antigos gregos, Lar era um deus privado que protegia a casa. Esses deuses-lares se situavam no jardim de casa e tinham seus poderes advindos dos ancestrais que ali eram enterrados. Já a Heimat tem a ver com socialização. O dilema de Nora envolve o quanto outras pessoas associam o alemão a Hitler ou ao assassinato de judeus durante a Solução Final. Isso abala as estruturas emocionais dela, que se recusa até mesmo a se identificar como uma alemã. É nesse primeiro momento em que ela deseja ir até Kulsheim, lar da família de seu pai e entender se ela consegue entender a cidade como sua Heimat. Quem sabe assim, esse sentimento de culpabilidade esvanece um pouco.
Somos levados a Karlsruhe e a Kulsheim, lugar onde ela nasceu e lar ancestral da família Krug, respectivamente. É curioso a maneira como a autora quebra algumas de nossas noções pré-concebidas. Imaginamos que os judeus e ciganos passaram a ser perseguidos apenas durante o regime de Hitler, mas entender que Kulsheim tem uma história que vai desde a Idade Média como um lugar onde judeus eram mal vistos é chocante. Fica aqui a minha recomendação para a leitura de um livro chamado História Noturna, de Carlo Ginzburg (link para compra aqui) em que o autor vai demonstrando a partir da análise de uma série de casos de bruxaria o ato de perseguir judeus inocentes de crimes. Isso é apenas a ponta do iceberg. Kulsheim tem uma longa história dessas perseguições e vemos que mesmo quando os judeus obtinham alguns direitos e liberdades, elas eram apenas efêmeras, desaparecendo quando bem convinha. O que aconteceu quando os campos de concentração foram descobertos foi um baque para a sociedade alemã. O que parece em muitos casos (e Nora deixa isso bem claro em sua narrativa) é que houve uma certa indiferença quando os judeus eram levados ou transportados para outros locais. Era preferível tocar a vida em frente. Havia sim muitos apoiadores do regime, mas houve também o "dar de ombros".
Assim que os americanos "libertaram" as cidades alemãs, uma de suas primeiras ações foi levar os alemães das cidades próximas aos campos de concentração para que eles vissem as covas coletivas e tivessem contato com os sobreviventes. Em áreas rurais, fazendeiros alemães eram obrigados a transportar os corpos presentes nas valas em seus carros de boi e enterrá-los de maneira digna. Foi um choque de realidade para muitos. Não que os americanos fossem pessoas íntegras, até porque houve violência, injustiças e saques durante a ofensiva aliada no front alemão. Mas, o Holocausto precisava ser reafirmado para que não caísse no esquecimento. Acho até que a Nora poderia ter tocado um pouco no tema do negacionismo e do revisionismo que anda tanto em voga nos últimos tempos. Mas, bem, perdoável, porque a narrativa se foca na história de sua cidade e na de sua família.
O tempo todo, Nora fica tentando recuperar tradições e objetos tipicamente alemães como a cola-tudo, o band-aid, a bolsa térmica. De uma certa forma é uma maneira de entender como a Alemanha está dentro dela (se está). Outro recurso importante são as fotografias adquiridas por ela em sebos. É um trabalho fenomenal de juntar imagens e tentar buscar a história que está por trás delas. Na maior parte das vezes elas só servem mesmo para contextualizar um de seus argumentos já que Nora não conseguiu rastrear os donos das imagens. Entretanto, as imagens demonstram uma outra visão do alemão. Algo que vai se unir ao meu argumento que segue.
No fundo a história que Nora busca é apenas a de várias pessoas comuns que juntas fazem parte da sua árvore genealógica. Ela se foca em três personagens básicos: seu tio Franz Karl, seus avôs Willi e Annemarie. Franz Karl possui o mesmo nome de seu pai. Ele precisou combater no front russo da Segunda Guerra e acabou morrendo muito jovem, aos 18 anos. Orgulho de sua avó Annemarie, sua morte causou um impacto profundo em sua família. O que vai incomodar Nora é o quanto sua morte estava cercada de mistérios: onde ele morreu, quando morreu, e por que morreu. Através de uma minuciosa pesquisa, ela descobre que a data de falecimento de seu tio estava errada por alguns dias. Seu corpo esteve desaparecido por muitos anos até que eles o encontraram em um cemitério dedicado a soldados alemães na Itália. E esse encontro se deu muito mais porque ele tinha um nome igual ao de seu pai. Encontrá-lo e saber as causas de sua morte se tornou uma de suas obsessões. Nesse caso, não tinha a ver com seu propósito principal, mas trazê-lo de volta para casa. Dar um fechamento para seus familiares.
Já a narrativa de sua tia Annemarie mostra o quanto esses personagens são seres humanos, passíveis de erros e acertos. Por ser judia, sua avó tinha medo da perseguição provocada pela SS durante a década de 1930. Apenas por conta de seu casamento com Alois, que era um cristão, ela foi capaz de não ser tão alvejada. Contudo, em 1945, ela acaba sendo separada de sua família, enviada para a Áustria para uma espécie de casa onde ficavam o resto dos judeus que viviam em Kulsheim. Ao chegar lá, Annemarie precisou encontrar estratégias para sobreviver. Por exemplo, ela acabou se tornando testemunha de Jeová, para afastar os olhares daqueles que eram seus detratores. Isso fez com que sua imagem acabasse manchada com o final da guerra. A forma como ela criou seu filho Franz Karl (o pai de Nora) também é criticado. Por sua perda de seu primeiro filho, o segundo foi praticamente esquecido. Mesmo compartilhando do nome com o primogênito, sua existência não era sequer reconhecida. Isso criou a primeira cisão na família. O que vemos então é uma mulher lidando com a dor de sua perda. Da forma errada, mas lidando. O momento em que Nora finalmente consegue visitar Annemarie é emocionante e fecha muitas portas que estavam ainda entreabertas.
A história de Willi é mais complicada. Inicialmente ele era visto como um homem íntegro e que foi capaz de sobreviver mesmo diante de tamanhos problemas em que ele precisou lidar. Mas, a pesquisa de Nora revelou que ele foi nazista, apesar de ter votado no partido social-democrata. O mundo de Nora caiu por terra e ela precisou ir atrás da história de seu tio. Mesmo com todos os seus esforços, ela conseguiu apenas parte do relato a seu respeito. Não foi capaz de obter todas as resposta. Mas, caso é que seu tio tinha interesses por trás da afiliação à SS. Não era exatamente uma afiliação, mas algo que servia aos seus negócios. Outra ferida se relacionava ao fato de que Willi estava na loja que ficava em frente à sinagoga que foi incendiada inúmeras vezes. Mesmo tendo amigos judeus, Willi foi uma testemunha omissa e que nada fez para impedir ou para ajudar seus amigos. Ele fez parte de um grupo de milhares de alemães que buscaram tentar tocar a vida durante a guerra. Nem foram colaboracionista, nem foram rebeldes. Até onde podemos criticá-los? Será que se estivéssemos em seu lugar, teríamos feito diferente? Compreendo o raciocínio de Nora, mas existe muito por trás da decisão de uma pessoa. Principalmente quando esta decisão fere de alguma forma os seus princípios morais. O julgamento de Nora é um pouco duro em alguns momentos, porém compreensível, se entendermos que a visão que ela tinha de Willi era diferente antes de ela descobrir a verdade.
Nora encontrou sua Heimat? Possivelmente. Ela dá a entender que sim, e acredito que isso tenha muito mais a ver com uma paz de espírito, com a capacidade de perdoar e compreender a complexidade da vida das pessoas. Ela chegou a termos consigo mesmo, embora eu acredite que sua busca pela verdade seja mais uma jornada interior do que propriamente a obtenção dos fatos em si. Como o conceito tem a ver com o psicológico da pessoa, creio que ao conseguir alguns de seus objetivos, ela foi capaz de posicionar a si dentro do espaço em que ela vive. Até mesmo porque a identidade alemã dela sofreu uma metamorfose e passou a ser o que ela acredita que sejam suas memórias afetivas.
Falando dessa forma, a narrativa parece ser mais complexa do que aparenta ser. É que ela provoca uma série de reflexões interiores que nos fazem sacar uma ideia após a outra e encadeá-las em uma sequência que nem sempre é lógica. A maneira como eu refleti sobre esse romance se situa em um ponto quase semelhante à forma como Nora concebeu sua história. Como ela juntou suas peças e questionamentos e formou essa narrativa linda, terrível e melancólica ao mesmo tempo. Não me senti capaz de avaliar sua narrativa, portanto, apenas sentei em minha cadeira habitual e comecei a escrever uma série de ideias e opiniões sobre a história que eu li. Tenho certeza que cada um de vocês vai acabar conseguindo um significado diferente da leitura. E isso é o que torna a leitura desse quadrinho tão incrível.
Obra citada:
Ficha Técnica;
Nome: Heimat - Ponderações de uma Alemã sobre sua Terra e História
Autora: Nora Krug
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Não-Ficção
Número de Páginas: 288
Ano de Publicação: 2019
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a Companhia das Letras
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