Como fazemos sempre que retornamos de férias, é hora de entender um pouco o mercado a partir do que representou o ano anterior para os livros de fantasia, terror e ficção científica. E mesmo com a reabertura e o início da vacinação, foi um ano bem conturbado.
Depois de um ano difícil como o de 2020, o de 2021 começa com esperanças com a chegada da vacinação. Embora esta tenha demorada a acontecer, graças a um governo inepto, ela ofereceu a possibilidade de reabrirmos o comércio e enxergarmos uma luz no final do túnel. Foi um ano de uma lenta recuperação, como um despertar de um novo dia. Claro que ele veio também com momentos tensos como o surgimento de variantes mais perigosas e transmissíveis do covid-19 e a necessidade de pensarmos em um novo normal. O segundo semestre teve um processo de retorno que começou sendo traumático e terminou sendo de esperanças para nós. Ainda existe muita coisa a ser tratada, mas ele deixa para trás uma mensagem de superação. Mas, como foi para o mercado editorial? Que editoras afundaram, que editoras ressurgiram, quem se destacou?
Analisando 2021 de forma pragmática, ele pode ser dividido em duas metades: até meados de julho ainda nos encontrávamos em um compasso de espera para saber como seria o normal a partir daí e o segundo semestre com momentos de agitação e novos caminhos. Uma coisa ficou clara para boa parte das editoras: o e-commerce se tornou a principal fatia do mercado, com as livrarias assumindo uma posição no pano de fundo graças ao apoio das próprias editoras. Para elas, não é interessante um domínio de gigantes como a Amazon, porque isso permitiria a elas ditar as regras de publicação. Não podemos nos esquecer de que nos anos anteriores, a empresa de Jeff Bezos já havia botado as manguinhas de fora e exigido uma percentagem maior no repasse para ela. Não apenas isso como escalonando formas de destaque para certos livros, com percentuais maiores ou menores de acordo com a necessidade, a urgência e o tamanho da editora. Já vou voltar a esse assunto Amazon porque uma situação ocorrida na segunda metade do ano demonstra bem como é o comportamento desta. O Brasil passa por um momento bastante delicado com uma grande perda de renda de boa parte das camadas inferiores da classe média. A disparada do dólar, o aumento no preço dos barris do petróleo e as absolutas pataquadas do atual presidente do país ajudaram a criar um cenário de crise econômica e fiscal sem precedentes. Perdemos poder aquisitivo. E não é nenhum complô illuminati venusiano financiado pelos comunistas escondidos em Tangamandápio. É simplesmente um país que sofreu com uma economia desequilibrada. Com a necessidade de se concentrar no colocar comida na mesa, é óbvio que a cultura vai sofrer. Cortamos sempre no não essencial. E isso não é uma crítica, mas sobrevivência pura e simples. Precisamos de comida, teto e pagar impostos. Livros e outras diversões vem depois. O que começou como um ano aquecido para as editoras na sua primeira metade se revelou frustrante a seguir com uma pisada no freio. Houve lucro sim, mas não na mesma toada do começo. Estou me referindo a crise econômica, mas essa freada brusca também pode se dever a outros fatores indiretos como o retorno ao trabalho presencial, os programas ao vivo e uma vida que buscava uma normalidade. O "lockdown", o "isolamento social" ficou no passado (está entre aspas porque o Brasil nunca teve isso, infelizmente... ninguém respeitou).
Me alegra muito ver as livrarias de rua voltando a ter destaque e isso foi um fenômeno durante a pandemia. É impossível competir em pé de igualdade com quem tem bilhões na conta podendo jogar pela janela ou tacar na fogueira. Logo, a estratégia para atrair clientes não está no preço e sim na fidelização. Uma boa curadoria, carinho e atenção sempre são bons incentivos para vendas. Trabalhei por seis anos em uma empresa de venda de softwares em que um dos motes era dar atenção especial ao cliente. Repassar informações, impressões e entender os gostos do cliente. A partir dessa compreensão, o atendimento era quase personalizado e o vendedor entendia qual era o melhor produto ou qual o atrairia mais. Falando assim parece algo óbvio, mas o comércio entende o atendimento ao cliente como uma guerra e o tempo de atendimento é contado. Perder tempo passando informações desnecessárias é perder outros clientes. Sempre achei essa filosofia tola porque um cliente satisfeito é um cliente que retorna. E o melhor: às vezes ele acaba comprando algo que nem pensava em comprar antes. Algumas livrarias perceberam a necessidade e a importância de atender a nichos de mercado como uma livraria inteiramente voltada para a literatura feminina e outras para artes. Ainda sonho em ver uma inteiramente voltada para literatura de gênero, mas é só sonho mesmo. Mercado de literatura de gênero no Brasil é um pesadelo brabo. Daqueles piores que Fred Krueger e Jason com uma motosserra.
Falei que iria voltar a falar de Amazon, certo? Então vamos lá. No mês de dezembro tivemos a Bienal do RJ, realizada com bastante desconfiança e muitas barreiras (que não foram respeitadas pela própria organização) e normativas. Geralmente um evento que conta com a participação de todas as editoras brasileiras (ou pelo menos das principais). Pois é, as duas maiores não estavam no evento: Record e Companhia das Letras. E isso também não é uma crítica porque ambas foram conscientes o suficiente para entender a insanidade de fazer um evento ainda durante a pandemia (Ômicron botou a cara para fora poucas semanas depois). Estive no evento e alguns podem dizer que é hipocrisia da minha parte criticar a Bienal por conta disso, mas, a minha presença no evento se deu única e exclusivamente por conta do meu trabalho no ensino público do Estado (aliás, nem faço mais parte do projeto de formação de leitores na minha escola, algo que me entristeceu demais no final do ano). Não fosse isso, não teria pisado a 100m do Riocentro. A Record marcou presença de forma indireta em outros stands de venda de livros. Sem as duas grandes no evento, o grande destaque foi a Intrínseca que nadou de braçada. Com preços agressivos, lançamentos interessantes e um stand bem legal, a editora esteve de parabéns e foi a marca de positividade que precisávamos ver no mercado. Fica também a menção de que seus livros com temática LGBT venderam demais no evento e dava alegria de ver como o público buscava estes livros com nomes que eu sequer conhecia. Tive alguns alunos desesperados para conseguir o livro novo do Adam Silvera (que estava com preço abaixo dos 30 reais).
Tá... e a Amazon? Pois é. Se a Intrínseca foi o mais positivo do evento, também representou o lado que mais me preocupou como fã de literatura de gênero. Digo isso porque, quem é como eu, que enxerga padrões, tendências e possibilidades futuras ficou apavorado com o que se sucedeu na Bienal. A Bienal ocorreu durante a transmissão da primeira temporada de A Roda do Tempo, grande série de fantasia baseada nos livros de Robert Jordan. Livros esses que são publicados aos trancos e barrancos pela Intrínseca e quase já foi abandonada umas duas ou três vezes pela editora. Quem esperava que a série ia flopar, se lascou porque a série é o maior sucesso do Prime Video, com o maior número de visualizações da história desse streaming. Já havia sido renovada para a segunda temporada antes da estreia. Como alguém que acompanha o mercado editorial, pensei com meus botões que seria o momento perfeito para a Intrínseca desencalhar um monte de volumes anteriores da série de livros e emplacar a grana para publicar os próximos volumes. Principalmente porque o Prime Video foi inteligente e não soltou os episódios de uma só vez, preferindo o modelo antigo semanal onde a galera discute a série por mais tempo. Só tem um pequeno detalhe de bastidores: a Amazon pegou para si os direitos sobre a série em todos os seus formatos, seja no streaming, seja em produtos relacionados. E me parece que eles estão agindo de certa forma para auxiliar a publicação dos livros junto a Intrínseca (se eu estiver falando bobagem, peço que alguém da editora explique exatamente a situação). Para quem temia ver a série cancelada, esta é, sem dúvida, uma boa notícia, certo? Mais ou menos. A Amazon tem os direitos de divulgação da série de forma física... e o stand na Bienal era da Intrínseca, e não da Amazon. Logo, a Intrínseca não pôde vender nenhum livrinho que fosse de A Roda do Tempo. Nada. Zero. A Amazon não autorizou. Muita gente estava procurando os livros no stand da editora... muitos mesmo. Meu temor é que essa prática da Amazon se espalhe por outras editoras, seja por produtos que o Prime Video esteja exibindo ou que a empresa decida bancar, como ela faz com outras editoras que são exclusivas do site. Até onde vai esse controle? Quais os limites? Para a Intrínseca, foi um balde de água fria porque ela poderia ter lucrado horrores, sem ter que repassar dinheiro para a Amazon ou outras livrarias. Seria lucro direto, bruto. Por isso que a Bienal representa mais de um terço dos ganhos de uma editora ao longo do ano.
2021 foi também o ano da transformação do Catarse em uma possibilidade de publicação. Várias editoras menores tem usado como pré-venda mesmo. Só que a bolha do financiamento coletivo começou a estourar. E isso tem sido visto nos atrasos em envio de produtos, em produtos mal trabalhados e reclamações que estão cada vez mais frequentes. Hoje aqueles que acompanham de perto o Catarse acabam priorizando determinadas editoras em detrimento de outras. Adquirir público espontâneo se tornou uma tarefa muito difícil. Somente quando a campanha é feita por nomes conhecidos ou quando existe uma expectativa muito grande em um produto é que temos esse tipo de apoiador. Na maior parte das vezes, é aquele público que já apoia normalmente projetos dessa natureza. Por exemplo, tenho as editoras que sempre apoio como a Wish, a Figura, a 85, a Saicã. Outras editoras costumo apoiar apenas quando é um projeto que quero muito. Isso sem falar nas editoras que acabam entrando para a nossa lista de não mais apoiar. Como mencionei em algumas ocasiões, usar o Catarse como pré-venda pode ser um tiro pela culatra como vem acontecendo já. Principalmente quando o produto chega mais barato em e-commerces depois e o apoiador não vê nenhuma vantagem em ter apoiado primeiro. E não vale mais dizer que se o produto não tivesse obtido apoio no Catarse, não teria sido publicado. Isso é balela. Editoras que tem dificuldades nesse ponto, colocam o financiamento como tudo-ou-nada e não como flex. Leitor não é burro... editoras independentes, fica a dica: não teste a inteligência do seu público.
Talvez o grande destaque em 2021 foi o surgimento a Trama Editorial, um selo da Ediouro voltado para a publicação de thrillers e fantasia. Logo no começo do ano eles divulgaram parte do seu line-up, mas surpreenderam com alguns títulos aqui ou ali. Como se tratou do primeiro ano do selo, foi mais um período para entender o mercado, saber onde estava pisando e perceber qual é o público da editora. O perfil da editora no twitter e no instagram investiu bem no contato com o público e em pouco tempo eles buscaram parcerias para divulgar seus produtos. Uma decisão acertada da editora a curto prazo até para poder criar uma certa fidelização. Sinceramente achei o line-up bem mediano da editora, no que diz respeito a fantasia, com o investimento em autores menos badalados. Não é uma crítica à editora, mas, na minha visão, havia pelo menos uma meia dúzia de autores menos badalados melhores para serem publicados no Brasil. Existe um enorme gap de publicações de 2010 até hoje se é para buscar algo mais atual. O maior acerto esteve no Gareth Hanrahan que encantou os órfãos por uma dark fantasy e o Nicholas Eames com a sua escrita mais despojada e divertida. O que me preocupou foi a criação da Trama Box, a caixinha premium da editora, que vem no esteio de outros projetos como a TAG e a Escotilha NS. Me preocupou no sentido de que a editora, que nasceu afirmando que iria publicar títulos alternados de thriller e fantasia, decidiu focar sua caixinha em thrillers. Isso me diz muito qual foi o feedback que o público deu para a editora. Não me espantaria se a editora decidisse no futuro se concentrar apenas em um gênero literário. Ainda mais quando vende e produz o lucro esperado pela editora. Gente, mercado literário é um mercado; capitalismo. Não existe editora filantropa.
No final do ano tivemos o surgimento da Alta Novel, um selo da Alta Editora, uma editora que eu não conheço muito porque era mais voltada para materiais de auto-ajuda e empreendedorismo. Eles começaram a divulgar alguns dos títulos que eles iriam lançar nos próximos meses (lançaram só dois em 2021, e foi um bom aproveitamento no curto espaço que tiveram) e os fãs ficaram animados. Percebam o que eu disse sobre buscar autores menos badalados e bons livros. Entre as autoras estiveram Naomi Novik, cujo novo trabalho foi o último lançamento da Alta em 2021 e Tamsyn Muir que terá seu livro Gideon the Ninth lançado agora em 2022. Só o tempo dirá como a editora se sairá. Assim como a Trama, a Alta investiu forte nas redes sociais. Ainda acho que as novas editoras precisam aprender a usar melhor os seus parceiros. Vídeos bacanas de livros e fotos criativas funcionam até certo ponto. É preciso informar aos leitores qual é a história do livro. Cansei de ver vídeos e fotos legais que não me dizem absolutamente nada sobre o que tem no livro. Fico me perguntando se os produtores de conteúdo leram o que estão divulgando.
Outra editora que continua dominando o catálogo de títulos de gênero é a... Morro Branco. Pegue o catálogo da editora e, se você for fã mesmo de fantasia e ficção científica, me diga se não tem nenhum livro que te interessa. Se você me disser que nada da editora te interessou, você não é fã de fantasia e scifi. É óbvio que tem um ou outro livro que não são exatamente do tipo que eu curto, mas tenho quase todos os livros da editora. E olha que nem parceiro mais eu sou da editora (espero que isso mude no futuro rsrsrssrs). Desde livros como do Robert Jackson Bennett ou os sempre impactantes livros da Octávia E. Butler, que a editora parece estar empenhada em trazer a obra completa. Mesmo uma autora menos badalada como a Genevieve Cogman tem uma legião de fãs que esperam sempre o novo volume de A Biblioteca Invisível. Sem falar que a editora não tem medo de apostar em títulos como O Jogador, de Iain M. Banks. Para mim, a Morro Branco é hoje o que a Aleph foi no passado. Sempre aguardamos o que ela vai trazer.
Mas, para mim, o grande destaque do ano não é uma editora de literatura de gênero. Pelo segundo ano consecutivo é a Antofágica. Sonho em ver uma editora de literatura de gênero que seja tão ousada e diferenciada como ela. Sinceramente, eu compraria livros deluxe nesse modelo da Antofágica ligados a clássicos. E olha que tem muito livro de fantasia e scifi em domínio público. Uma editora malandrinha poderia copiar o case da editora e fazer uma boa grana. Basta seguir os passos deles. Não se trata apenas de entregar um belo livro com um projeto editorial diferenciado. É a experiência de leitura, com extras tão legais que incrementam todo o processo. Tenho trocado alguns livros meus clássicos que eu tinha de Penguin por materiais da Antofágica. A inovação desse ano foi a introdução de materiais em vídeo que introduzem a leitura e discutem ao final da leitura com o leitor o que foi lido (sempre dois vídeos a cada novo livro). Sem contar o conteúdo bacana apresentado pelo canal de youtube da editora. O processo é semelhante ao que o Pipoca & Nanquim faz com seus quadrinhos. Claro que existem características específicas a cada uma das editoras, mas a essência da coisa é semelhante. Queria muito uma Antofágica Fantasy... ou uma Antofágica Scifi. Jogo meu dinheiro na tela do notebook até.
Enfim, em um ano tão estranho como 2021, ficam algumas lições a serem aprendidas e expectativas que foram criadas. Resta saber como 2022 será, em um ano de eleição, com crise econômica e reabertura plena de mercado. Será um bom retorno ou uma confusão? Quem emergirá? Quem submergirá? Quem deixará o jogo? Será um bom ano. Tenho boas expectativas porque o gênero e fantasia voltou a ficar em alta principalmente com produções como A Roda do Tempo, The Witcher e a vindoura série de O Senhor dos Anéis. Alô, editoras... o Ficções Humanas está aqui e todo se querendo para ajudar vocês. Vamos conversar! Se rendam ao mundo dos textos gigantes e da minha eterna ranhetagem e rabugice. Aos nossos leitores: continuem conosco porque o ano será emocionante.
Fala Paulo,
acompanho seu conteúdo a pouco mais de 1 ano, cheguei até aqui pelo podcast Perdidos na Estante, queria só agradecer por todo esse trabalho que você faz.
Ja perdi a conta de quantas horas eu ja perdi caçando informações na internet sobre direitos adquiridos, previsões de lançamento e retorno financeiro da literatura fantástica.
Posso imaginar o trabalho que dá buscar, categorizar e sintetizar todas essas informações para um público tão nichado quanto esse, enfim, muito obrigado pelo trabalho, seu conteúdo é um dos únicos a oferecer essas informações.
Ja posso começar a sonhar com o post de previsões do ano?
Abraços, Lucas.