O início do mês de outubro nos trouxe a notícia de que a livraria Saraiva pediu sua autofalência junto aos órgãos competentes. Foi o fim de um longo processo de deterioração que já vinha de anos. O que isso significa? Por que aconteceu? O que o futuro nos guarda?
No último dia 06 de outubro, enquanto viajava para Porto Alegre para um evento de literatura, e bastante empolgado para discutir sobre livros e conhecer novos autores e saber dos próximos projetos de editoras de fora do eixo Rio-São Paulo me deparo com a notícia de que a Saraiva havia entrado com um processo de autofalência. Isso foi uma pá de cal em anos de sofrimento que a Saraiva estava passando, precisando fechar lojas, demitir funcionários, reduzir custos. Foi um daqueles momentos em que tudo o que conhecemos sobre o mercado editorial entra em perspectiva e as projeções mais pessimistas são aquelas que são verdadeiras. Embora soubesse que isso era o que iria acontecer, sempre torci para que houvesse uma volta por cima, uma virada de jogo. E quem acompanha de perto o assunto sabe que tudo o que aconteceu para os donos da Saraiva e da livraria Cultura, outra que entrou nessa espiral devastadora esse ano, são fruto de suas próprias escolhas ruins.
O processo de autofalência é um pouco diferente dos demais processos nos quais a Saraiva estava envolvida. A recuperação judicial é um processo em que a empresa pede apoio ao Ministério Público para sanar suas contas: autorizar empréstimos com mais agilidade, esticar prazos de pagamentos de dívidas, melhores condições de pagamento e garantias aos credores. O processo de falência que foi pedido pelo Ministério Público engloba o confisco de bens para pagamentos de dívidas, o congelamento de contas. Já a autofalência é quando a empresa assume que não é capaz de honrar suas dívidas e inicia-se um processo de verificação de valores de bens e serviços com o objetivo de buscar sanar o máximo possível das dívidas angariadas. Isso envolve também a devolução de produtos às editoras e demais empresas. A cena que vimos há alguns meses de caixas sendo retiradas de dentro da livraria Cultura no Conjunto Nacional é semelhante ao que é visto aqui com a Saraiva. É o fechamento total das atividades. Ainda restavam sete lojas espalhadas por algumas cidades que também foram fechadas. A Saraiva até ensaiou iniciar vendas unicamente pelo site, mas diante de um leviatã como a Amazon se torna inviável a menos que as vendas sejam muito agressivas, algo que a livraria não poderia se dar ao luxo.
Essa é uma crise que estamos cantando desde 2016 quando a curva de prejuízos e atrasos de pagamentos se tornou mais e mais aguda. Tanto a Saraiva como a Cultura usavam do expediente das vendas consignadas. Isso nada mais é do que uma compra feita junto às editoras com o acordo de que os valores de venda seriam entregues em um prazo entre 45 a 90 dias. Esse sempre foi o estilo de comunicação entre editoras e livrarias e posso até dizer que algumas ainda empregam esse modelo até hoje. Só como observação, a Amazon compra, de fato, os produtos. Ela consegue descontos agressivos junto às editoras entre 45 e 60% do valor de venda para livrarias (que é menor do que o valor que nós pagamos no preço de capa) muito por causa do seu domínio no e-commerce na atualidade. Por esse motivo que a Amazon pode colocar descontos mais agressivos porque o produto já pertence a ela. Não só isso como é frequente a empresa causar o próprio prejuízo para destruir a concorrência. Quando a Amazon começou suas atividades no Brasil, Saraiva e Cultura até tentaram equiparar os descontos praticados pela empresa de Jeff Bezos, mas com o passar do tempo praticar preços tão baixos prejudicou imensamente as atividades da livraria. Outro agravante foi que o Brasil entrou em um processo de crises econômicas sucessivas das quais só estamos saindo agora com boas expectativas de crescimento. Crise essa que prejudicou editoras, distribuidores, gráficas, editoras. Todo o mercado de livros entrou no freezer por vários anos.
A partir deste cenário a Saraiva passou a atrasar o pagamento das editoras que contavam com o faturamento destas vendas consignadas para manterem o funcionamento de sua máquina. Até hoje muitas editoras não receberam completamente o que Saraiva e Cultura passaram a ficar devendo ao longo de vários anos desta doença terminal que levou ao seu fim. Editoras pequenas faliram por causa do calote dado por ambas as livrarias. Para que vocês tenham uma ideia, a dívida da Saraiva com a Companhia das Letras chegou na casa de mais de meio milhão de reais, um valor inacreditável de calote. Se Saraiva causou isso, a Cultura não ficou atrás devendo centenas de milhares de reais a vários parceiros. Esse efeito cascata atingiu todo o processo editorial. E isso só se deu porque o brasileiro perdeu poder aquisitivo durante o governo Temer. Muitas famílias precisaram realizar corte de gastos para poderem manter seu padrão de vida. Óbvio que o setor onde as famílias realizavam o corte sem medo era no de cultura. Compra de livros, passeios a museus, ida a teatros e cinemas. É uma reação natural e esperada. Entramos em modo sobrevivência. Saraiva e Cultura permaneceram presas a um modelo comercial inócuo e que renderia prejuízos a médio prazo.
Entre 2016 e 2020 houve um equilíbrio tênue entre editoras e livrarias. Isso porque as livrarias de rua ainda representavam quase 70% das vendas de editoras. Então por mais que os donos de editoras tivessem problemas na cadeia de vendas e já considerassem uma parte do valor dos consignados entre os prejuízos, não havia outra saída possível. Só que a Amazon foi tomando o espaço lentamente ao longo dos anos. O que começou como 5% do mercado, hoje já se tornou quase 60%. Ela inverteu a equação. Acho até que esse percentual deve ser maior porque a empresa tem um alcance quase nacional, sendo que pouquíssimos são os lugares onde a Amazon não entrega. Sem mencionar a velocidade de entrega que é bem rápida salvo em regiões historicamente menos favorecidas pelos e-commerces como o Norte e o Nordeste. Mesmo assim, a Amazon investiu em centros de distribuição espalhados pelo país e foi tomando o mercado sem que Saraiva e Cultura esboçassem nenhuma reação efetiva. Quando veio a pandemia, ambas as editoras já estavam no processo de recuperação judicial, mas tinham feito projeções audaciosas e combinaram de pagar as dívidas com as editoras em prazos bizarros de 10 a 15 anos. Só que a pandemia fechou a tampa do caixão, impedindo lojas de rua de estarem abertas. Ou se estivessem, teriam um baixo número de clientes. A possibilidade de falir deixa de ser uma possibilidade e passa a ser uma realidade. Até que chegamos aonde estamos hoje no final de 2023 com as duas grandes megastores fechando suas portas de vez.
Esse modelo de megastore já não é mais tão atraente quanto foi outrora. A transformação das livrarias em espaços maiores, mais aconchegantes, visando estimular ao máximo os hábitos de consumo dos brasileiros apagou as livrarias menores, mais atraentes e com atendentes mais especializados. Quando alguém chegava em uma dessas duas livrarias, os atendentes eram meramente atendentes... não conheciam os livros, não sabiam dar indicações. Salvo em raros espaços como algumas lojas da Cultura inicialmente em que os atendentes eram leitores também, mas na maior parte dos casos isso não era verdade. Sem mencionar os casos de abusos a direitos trabalhistas denunciados dentro do espaço da Cultura nos anos finais. O modelo do consumidor de livros mudou com o passar dos anos. Se formos pensar com calma, se alguém deseja preços baratos ou promoções malucas, vai procurar a Amazon. E isso porque o e-commerce nem oferece mais descontos tão agressivos já que destruiu a concorrência. É fato que o leitor hoje quer uma curadoria diante de tantos bons materiais que se vê por aí todos os meses. Ele quer alguém que entenda os seus gostos e consiga dizer que outros livros se aproximam do que ele curte. É uma mudança de paradigma, mas é algo que remonta a tempos passados às boas livrarias de bairro, ao Círculo do Livro e tantas outras iniciativas. Oras, as malas surpresas (TAG, Turista Literário, Clube Andarilhos) nada mais são do que atualizações do Círculo do Livro.
O grupo Leitura se prontificou a ocupar os espaços deixados pela Saraiva. Até já adquiriu alguns dos espaços deixados por ela. Só que a Leitura é um pouco diferente da Saraiva no sentido de que ela é mais uma papelaria do que uma livraria. Quem a frequenta já percebeu que ela vem se dedicado a proporcionar tardes de autógrafo, hospeda clubes de leitura e até tenta dar um diferencial. Mas, no fundo, ainda é uma megastore. E não é por aí que a solução se apresenta. Uma megastore é boa para aquele cliente ocasional que está aguardando uma sessão de cinema ou está passeando com a família e acaba comprando "sem querer" um livro. E não é assim que uma livraria vai segurar seus custos. A Leitura até é mais responsável em seus custos, mas não é o que Cultura e Saraiva foram com seus grandes projetos. Por exemplo, o Conjunto Nacional ainda não foi ocupado (até hoje, outubro de 2023, data em que escrevo esta matéria). Era um espaço fabuloso, voltado realmente para a apreciação do leitor e a valorização do hábito de leitura. Só que é um espaço caro, em uma área nobre da cidade de São Paulo. Os custos de aluguel e manutenção são altíssimos. Alguns cidadãos interessados pediram à prefeitura que tombasse o espaço ou transformasse em um espaço cultural financiado pelo poder público.
Nos últimos anos vimos as livrarias de bairro e lugares temáticos ganharem espaço diante das megastores. Podemos citar os exemplos da livraria da Lote 41 voltada para os materiais da editora e de outras independentes; uma livraria voltada para materiais feministas; a loja Monstra que se especializa em quadrinhos, mas que possui toda uma arquitetura atrativa. São essas ideias fora da caixa que vão render o retorno de leitores aos espaços físicos. É repensar como entender o consumo de livros. É administrar um negócio de maneira consciente e coerente. Compreender a realidade do país e se adequar a ela, sem exageros. Sou fã de livrarias físicas desde criança. Cansei de frequentar a Saraiva da Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro e a livraria Cultura no velho Teatro na rua Senador Dantas. Eram os meus refúgios na época em que trabalhava no comércio e precisava de um respiro para recuperar minhas baterias. Sentava nos confortáveis sofás e passava horas apreciando livros, lendo trechos e comprando o que me agradasse. Desejo que as novas gerações tenham essa experiência, mas de uma forma atualizada e contemporânea. Torço para que o fim das duas livrarias sirva de lição para empresários incautos e que tenhamos mais responsabilidade com o público que frequenta esses espaços.
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