Hoje vamos falar sobre o Irui Kon'in, uma coletânea de histórias do folclore japonês que versam sobre casamentos. Mas, casamentos que acontecem entre humanos e seres antropomórficos ou seres celestes. Conheçam mais sobre eles nesta postagem!
Conhecemos muito a respeito de histórias como Branca de Neve e os Sete Anões, Mamãe Ganso e tantas outras. Fazem parte de um conjunto de tradições europeias que se mesclaram demais com os primeiros contatos das crianças com a literatura. Hoje, através de editoras como a Wish sabemos o quanto esses contos podiam ser assustadoras, dados os seus temas mais cautelares. Lentamente outras culturas e suas histórias vem ganhando espaço em nossas prateleiras e a Laboralivros vem fazendo um trabalho fascinante com a cultura oriental, buscando organizar tematicamente estas histórias para nos dar uma visão de todo sobre isso. Nossa nova parceira editorial nos enviou um dos seus trabalhos mais recentes e que você ainda pode apoiar no Catarse neste link, e que se trata de uma coletânea de histórias de casamento entre seres humanos e seres antropomórficos, fantasmas ou seres celestiais. Mas, a questão que vocês devem estar se fazendo é o que esses contos entregam além do tema do casamento?
Antes de mais nada qualquer estudo sobre histórias folclóricas se baseiam em duas perguntas: quando e onde. Pequenos detalhes como menções a cidades, a reis ou governantes, a guerras, ou até a aspectos específicos de uma religião podem entregar estas respostas. O leitor que tem um foco na pesquisa consegue captar esses detalhes escondidos nas entrelinhas. O que achei legal na edição da Laboralivros é que o livro contém boas notas de rodapé e introduções que falam sobre particularidades acerca de determinado conto. Aliás, a edição está com um projeto editorial elegante, com varias ilustrações da Lua Bueno Ciríaco que dão um charme à parte para a edição. O livro está em dois idiomas, no original em japonês e traduzido para o português, um detalhe que pode ajudar a quem for buscar trabalhar de forma acadêmica com o material. Uma introdução e um prefácio nos ajudam a entrar no clima da época, contando particularidades e a importância de algumas histórias como a do Urashima Taro que está presente neste livro. A tradução está bem suave e a gente consegue acompanhar bem os textos, sem grandes dificuldades. Nesse sentido, acredito que o material atende tanto a quem busca se aprofundar mais sobre o assunto e aquele que apenas tem curiosidade a respeito da cultura japonesa.
Mas, vamos ao que interessa que são as histórias e aqui eu preciso frisar que alguns de vocês vão ficar bastante surpresos com os finais das histórias. Sem dar spoilers, mas basta dizer que raramente temos finais felizes. Para ser sincero, temos um ou dois na coletânea toda se não me engano. Tem muitos finais tristes e aqueles mais amargos em que o personagem acaba precisando ceder alguma coisa para alcançar a felicidade. Isso porque o casamento nem sempre é o objetivo principal da história, podendo até mesmo acontecer no começo dela. O "felizes para sempre" acontece mais a partir de alguma situação que o personagem precisa lidar. Talvez surpreenda também os leitores a velocidade com a qual os casamentos acontecem, sendo que uma mulher pode se casar com o protagonista da história por gratidão em relação a algum acontecimento ocorrido antes. Uma grua que é salva pelo personagem, retorna no dia seguinte como uma mulher e se casa com ele por gratidão. Temos que pensar que a noção romântica que temos do amor é algo bastante posterior... se na Europa ela só se solidifica nos séculos XVIII e XIX, imagine no Japão que teve tradicionalmente uma cultura fechada. O amor pode se manifestar de maneiras não tão convencionais: com a dedicação, o honrar o próximo, o sacrifício.
Outro tema bem frequente nestas histórias é a quebra de promessas. Geralmente a mulher casada, por ser um ser sobrenatural ou celeste, tem algum segredo a ser guardado. Um quarto que não pode ser aberto, um dia em que ela não pode ser vista. E cabe ao parceiro respeitar os seus ditames. Normalmente ele não respeita e tem seu casamento "anulado" por conta disso. Essa temática da promessa tem muito a ver com a cultura da honra e da ética tão caros ao Japão. O respeito a alguma condição significa o amadurecimento, a capacidade de guardar sua palavra em relação a alguma promessa feita. Mas, o ser humano é curioso por natureza e raramente é bem sucedido nesta tarefa. Se pensarmos mais profundamente, o fato de as histórias não terem um final feliz a partir de uma quebra de promessa talvez seja uma forma de trabalhar o tema cautelar. Caso um personagem não respeite determinada regra, algo ruim pode acontecer.
Objetos mágicos aparecem aqui ou ali como a caixa do Urashima ou o hagoromo da mulher-grou, ou até um objeto que permite escutar as vozes de aves. A narrativa não se fia na existência de algo mágico como centro das coisas, mas o objeto existe e está ali. O objeto serve mais para mostrar o domínio de seres acima da compreensão humana. E todos estes objetos se comunicam de alguma forma com a natureza, algo bastante presente nos contos. Temos de lembrar que em tempos mais antigos, havia uma preocupação grande em ter uma boa relação com o meio ambiente. Afinal, se tratava de uma sociedade agrária e que vai atingir um determinado patamar de desenvolvimento em sua Idade Média cujo período difere da Idade Média europeia. Os objetos mágicos vão permitir aos seres humanos se aproximar desse domínio celestial de alguma forma seja através do controle do tempo, seja criando uma passagem para o mundo celestial ou um manto que permite a uma esposa retornar ao seu plano.
Alguns de vocês vão perceber a existência de alguns contos repetidos ao longo da coletânea, mas isso é algo proposital. As organizadoras da coletânea disponibilizaram versões de uma mesma história que possuem ligeiras alterações de região para região. Pode ser algum detalhe, algum acréscimo feito em uma região que desapareceu em outra. Isso nos permite pensar em dois caminhos: as preocupações de um agregado social específico que podem ser diferentes de outro situado em uma região geográfica distinta ou as fórmulas usadas para contar a história que podem ser diferentes. É preciso lembrar que muitas delas pertencem à tradição oral e eram cantadas ou entoadas. A preocupação em registrá-las por escrito data de um período bem mais recente e algumas dessas histórias são datadas do século V d.C. Não é algo que vai despertar a atenção de todos sendo mais voltado para pesquisas mesmo. Só que fica a curiosidade de como algumas dessas histórias são bastante perenes, perpassando o Japão como um todo, como a história do roubo do hagoromo da grua.
Falando agora sobre duas histórias que mais me chamaram a atenção, é impossível não citar a do Urashima Taro. Talvez seja a mais conhecida entre os fãs de cultura oriental aqui no Brasil. A narrativa do pescador que depois de ter ficado fascinado por uma mulher, vai atrás dela até o mundo celestial e precisa ultrapassar alguns obstáculos para poder se casar com ela. A partir de então ele passa a viver com ela, mas sente falta do mundo dos humanos. Desejando retomar o contato com sua família, ele se separa de sua esposa que dá a ele uma caixa para se lembrar dela e retorna ao mundo dos humanos. Não vou contar o resto, mas esta é uma história que tem inúmeras interpretações. Uma delas é a de como o tempo é algo que passa de forma diferente para os seres celestiais que mantém uma serenidade de séculos. Enquanto o homem é um ser imediatista e de curto prazo, pois sua vida é efêmera, os seres celestes apenas nos observam com curiosidade e algumas vezes interferem em nossas existência. Algo que é também fruto de curiosidade. Outro tema perceptível na narrativa é a importância da preocupação em honrar a família. Por mais que Urashima amasse sua esposa, ele sentia falta do contato com seu clã familiar. É um dilema que muitos japoneses passam até os dias de hoje. E algo que não possui uma decisão tão simples a ser tomada.
O Primeiro Amor de Ainu Rakkuru talvez seja a história que mais agrade aos leitores por conter toda uma aventura feita por Ainu em busca de seu amor. Para ter o amor do ser celestial que ele viu e se apaixonou, Ainu Rakkuru vai fazer o impossível para obter seu objetivo. Com isso, o personagem vai introduzir uma série de objetos que fazem parte da cultura japonesa. Ele é um personagem bem malandro e pouco ético em alguns momentos. Claro que esse lado travesso vai se voltar contra ele em vários momentos, mas senti que a história é bem mais leve e bem humorada do que outras. E fica também a dicotomia entre os seres celestiais, mais estoicos e os seres humanos menos afeitos a um maniqueísmo. Embora Ainu seja pouco ortodoxo em suas abordagens, acaba sempre fazendo o bem e pensando no próximo. O final que ele recebe talvez seja um dos mais legais da coletânea.
O Irui Kon'in é um belo livro que possui um projeto editorial que vai saltar aos olhos do leitor. A tradução das histórias está muito competente e a edição vem até com os textos no idioma original caso o leitor queira cotejar o texto com sua tradução para o português. No mais, vale a pena conhecer as histórias que já tivemos contato em algum momento graças à internacionalização da cultura japonesa, do mundo pop e das animações. Espero que vocês curtam e deem um apoio no projeto!
Material citado:
Ficha Técnica:
Nome: Irui Kon'in no Mukashi Banashi
Organizado por Marcia Hitomi Namekata
Editora: Laboralivros
Gênero: Contos de Fadas
Tradutora: Marcia Hitomi Namekata
Número de Páginas: 208
Ano de Publicação: 2021 (reimpressão)
Link da campanha:
*Material enviado em parceria com a Laboralivros
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