Hora de fazer aquela análise sobre o ano que passou e buscar projetar o que pode vir a ser novidade nesse ano que está se iniciando.
Antes de começar com a matéria desta semana, só dando um aviso para aqueles que nos acompanham. Como passei a trabalhar na segunda de manhã, nosso dia de matérias passará agora a ser na terça-feira. Dessa forma consigo divulgar o que publicamos com mais calma.
Mais um ano se passou e gosto de, no começo de nosso ciclo de postagens, olhar para trás e buscar entender melhor nosso mercado editorial e fazer projeções ou críticas. 2023 foi um ano mais de consolidação do que de revolução. Não percebi mudanças estruturais grandes, mas alguns detalhes pequenos me deixaram preocupados e que somados a outros criam um cenário desafiador para os próximos anos. Fato é que, se fizermos uma análise apenas pelo ano de 2023 em si, grande parte das editoras tiveram bons anos. Principalmente aquelas que participaram de eventos grandes como a Bienal do RJ, a Feira da USP e a FLIP. Essa última, para o nicho de literatura de gênero, não entra na contagem porque fantasia e ficção científica praticamente saíram do escopo do famoso festival de Paraty.
É preciso pontuar que, hoje, quando falamos em literatura de gênero nas grandes casas editoriais este acaba sendo absorvido pela literatura Young Adult. É o gigante dentro de editoras como Companhia das Letras, Record e Intrínseca. É o que vende espetacularmente bem e chega ao ponto das editoras se esforçarem para realizarem lançamentos simultâneos com o mercado americano. Ou, pelo menos, reduzirem ao máximo o tempo de espera entre os volumes ou a distância entre as estreias. Até mesmo autores que hoje parecem estranhos se tornam grandes daqui a algum tempo dada a habilidade dos scouts desse nicho. Podem reclamar o quanto quiserem: YA dá dinheiro e movimenta muitas postagens e cliques. Vai continuar a ser tratado da maneira premium como é hoje. No ano passado, a Beatriz D'Oliveira realizou uma palestra online bem legal onde ela compartilhou informações sobre mercado editorial e tendências onde ela destacou exatamente isso: esse é o gênero em que as editoras tem mais apostado e que tem gerado resultados excelentes. Talvez a grande diferença seja a percepção da Suma e da Galera Record (selos das duas maiores editoras do país voltados para este gênero) de que poderia ser bom adicionar quadrinhos ou webcomics voltados para este nicho no catálogo. Estão aí os exemplos de Lore Olympus, Fence e Heartstopper. Sucesso de vendas, quase sempre em top 10.
Ainda na temática YA, as editoras nacionais perceberam também que havia público para edições mais luxuosas de livros já publicados. A Rocco faz isso há anos com a série Harry Potter, mas até então era restrito apenas à série do bruxinho. Agora livros como Um Tom Mais Escuro de Magia, Corte de Espinhos e Rosas e outros voltam às prateleiras com edições lindíssimas. Seja com um box, uma pintura trilateral, um acabamento diferente ou até edições limitadas. A ideia é criar um tier mais alto de vendas voltado para leitores que não querem apenas o livro, mas a experiência de ter um artigo especial em sua estante. Percebo que isso pode se tornar cada vez mais comum nos próximos anos já que a proposta deu resultado. A editora não precisa fazer uma tiragem grande e já é esperado que o preço seja elevado. É uma prática que vem dos quadrinhos que ano após ano se tornou um mercado de produtos mais e mais luxuosos e exclusivos. Se acho que isso vai se tornar uma bolha? Com certeza. Essas coisas são cíclicas, e tudo em excesso acaba viciando o mercado até que um novo trend ocupe o lugar do que estava antes. Essa prática editorial existe há décadas e ela funciona na base da expectativa e da vontade de consumir. E existe público para isso.
O que me deixou bastante preocupado foi a pesquisa anual sobre leitura no Brasil. No último quadrimestre de 2023, a Publishnews publicou uma matéria que já se tornou tradicional com gráficos informativos sobre os hábitos de leitura dos brasileiros. É estarrecedor perceber que a porcentagem de brasileiros leitores cai a cada ano que passa. Somos 16% e isso porque nem cheguei a limitar à literatura de gênero, caso contrário esse número seria bem menor. Continuamos sem projeto definido para formar novos leitores. Investir apenas naqueles que já tem inclinação para leitura é simples; difícil é convencer quem não deseja. Não preciso nem rasgar meu verbo para dizer que não existe a menor vontade pública para criar políticas públicas de fomento à leitura. Esqueçam isso. Trabalho nessa área há mais de cinco anos e nada mudou. Existem floreios do Ministério da Educação com o envio de livros e manuais para projetos, mas não existe nada que seja levado a sério. É só empurrar editais para que editoras consigam sobreviver com as gorduchas verbas do Fundeb. É investir sem pensar mesmo. E aí vou dar uma chamada básica nas editoras. Não adianta depender do governo para fazer crescer seu público. Isso não vai acontecer. São pouquíssimas editoras que investem em sair da bolha, criar algo novo, buscar conteúdos que atendam a um público que não necessariamente te acompanha. Destaco aqui o Pipoca e Nanquim (editora de quadrinhos), a Antofágica, a Editora Aleph, a Darkside e só. São editoras que saem do lugar comum, buscam alguma coisa diferente. Pode até ser algo específico, mas sempre dá um jeito de alcançar alguém que não é necessariamente da bolha.
Vocês devem estar se perguntando se, já que o público leitor caiu, como as editoras nacionais tiveram o maior lucro dos últimos cinco anos. Essa é uma equação bem fácil de se entender. Livro no Brasil hoje é um produto caro. Os preços giram entre 40 e 80 reais, em média. Há alguns anos atrás, isso era valorado pela metade. Eventos grandes servem para escoar livros das editoras, sem passar por intermediários. Sem falar que muitas delas fazem vendas pelo site delas, com algum brinde ou agrado adicional. Não ter um intermediário é driblar precisar pagar 35 a 60% para livrarias e e-commerces. A venda direta é lucro imediato. Só no primeiro final de semana da Bienal do RJ muitas grandes editoras conseguiram o lucro que esperavam para o evento inteiro. Mesmo com descontos agressivos, eles conseguem ter lucros maiores do que se vendessem pela Amazon, por exemplo, que come uma fatia expressiva do valor do livro. Vender mais não significa que você criou um público maior. Apenas que seu lucro absoluto foi maior. A longo prazo, as editoras vão precisar continuar aumentando o preço do produto-livro para conseguir manter a margem de lucro. É uma fórmula insustentável por si só já que o brasileiro não tem um poder aquisitivo tão grande. Quando apertadas, as famílias brasileiras cortam justamente em gastos considerados supérfluos.
Novamente volto a discutir por que as editoras não traçam um plano inteligente para fomentar público. Jogar essa responsabilidade nas costas dos parceiros, dos influenciadores, não vai gerar algo a médio e longo prazo. Até porque o público que acompanha esses canais já sabe que isso se trata de um publi, e já existe uma percepção sobre o que é um marketing natural e outro pago. Não é que se deve gastar rios de dinheiro com um eventual setor de marketing dentro de uma editora. É gastar com inteligência. Volto a mencionar o Pipoca e Nanquim como exemplo de divulgação. São três caras que possuem um canal e falam hoje principalmente sobre os produtos que publicam. Contam bastidores, falam sobre os autores. São pessoas carismáticas e que se relacionam de uma maneira natural com o leitor. Não estou dizendo que deve-se fazer um copiar e colar, mas que o contato com os leitores pela editora se tornou uma necessidade. Uma editora não pode ser um sábio no alto da montanha, um ancião celestial inalcançável. O que faz do PN uma editora de sucesso é que a editora tem um rosto, para o bem ou para o mal. Os leitores confiam na curadoria deles porque se construiu uma relação de confiança. E olhe que o PN lança alguns materiais bem questionáveis, mas que sempre estão entre os mais vendidos. É preciso que as editoras nacionais saiam da Idade Média, aguardando a luz celestial das vendas banharem seus livros, e se situarem em uma contemporaneidade onde tudo é dinâmico.
Queria aqui deixar os meus parabéns para a Marina Ávila e para a Valquiria Vlad que tiveram a Wish se tornando parte da Darkside Books. Fiquei bastante preocupado em 2023 porque a editora fez pouquíssimos projetos ao longo do ano e ficou bem calada nas redes sociais, mais trabalhando na divulgação do material pré-existente. Me recordo de que a última coisa que recebi foi o volume final da coleção Fadas que foi antes de junho de 2023. Mas, tudo não passou de um processo de negociação que devia estar acontecendo ao fundo com a Darkside. A Wish agora vai contar com o poder de marketing e de distribuição da Darkside que deve gerar um belo resultado para elas. Por falar em financiamento coletivo, chegamos na alvorada deles para os materiais literários. Vi poucos projetos realmente relevantes e os independentes são quase a maioria. É diferente de outros setores como quadrinhos e RPG onde a coisa bomba de verdade. Me parece que as editoras pequenas não sabem ao certo como usar a plataforma do Catarse para colocar seus projetos na linha de frente. Alguns deles tiveram resultados bem adversos e olhe que as metas nem costumam ser muito grandes. Só as da Wish que passam dos R$100.000 e sempre conseguem bater. Nesse sentido, o financiamento coletivo precisa ser repensado ou abandonado por aqueles que publicam literatura. Ainda não se encontrou a fórmula certa. Recomendo que quem for entrar para o jogo, que leiam o livro publicado pela Wish que é um belo de um manual de publicação pelos canais de financiamento coletivo. É curioso pensar como o Brasil se enrola nisso quando autores estadunidenses como Brandon Sanderson e Michael J. Sullivan prosperam horrores no Kickstarter.
Por falar em formas alternativas de publicação, a Audible chegou ao Brasil em 2023. Parece que foi há mais tempo, mas não, isso aconteceu na primeira metade do ano que passou. Para quem não conhece, a Audible é uma das maiores empresas de distribuição e edição de audiobooks do mundo. O sucesso dela vem muito do fato de ela ser associada à Amazon. O que era um sonho para vários leitores se tornou real: a Amazon abriu a porta para os audiobooks. Ainda não temos informações precisas sobre como andam as vendas da Audible no Brasil, mas devemos ficar ligados porque cada vez mais esse tipo de mídia vem ganhando espaço. Não é à toa que podcasts prosperam à beça em apps como Deezer e Spotify. O brasileiro leitor aprendeu que ouvir livros ou programas seriados ou programas de debates em áudio é interessante e pode te prender. É tendência e chegou para ficar. Claro que espero algo mais a médio prazo então não esperem números inflados logo de cara. Existe todo um processo de acomodação do estilo de consumir o novo produto.
Para encerrar essa conversa, queria fazer uma observação básica que vem me preocupando nos últimos meses. As editoras vem investindo cada vez menos nas etapas de tradução e revisão. O que era algo pontual, se tornou mais e mais comum. E isso não está restrito a pequenas editoras mais, mas também às grandes. A pressa de publicar um material o quanto antes devido às cobranças do público vem fazendo com que elas pulem etapas do processo. E isso é perigosíssimo. O Caminho dos Reis, primeiro volume da série famosa de Brandon Sanderson veio repleta de problemas de tradução. Não aqueles erros pontuais, mas problemas grosseiros mesmo. Babel, da R.F. Kuang sofreu com o mesmo problema. Estou usando dois livros dos mais esperados para mostrar o quanto isso é um problema que perpassa as editoras. A categoria dos tradutores recebe muito mal. Na maior parte das vezes tradutores precisam pegar vários trabalhos para conseguir pagar as contas em dia. É uma categoria cujo trabalho nem sempre respeita a legislação trabalhista. Falta uma regulamentação maior. Se um tradutor ganhasse de forma mais adequada, não precisaria pegar tantos trabalhos e sua tradução não ficaria prejudicada devido ao cansaço ou à desatenção ou até a uma pressão da parte da editora, que pode reduzir os prazos. É preciso respeitar o trabalho destes profissionais. É óbvio que é preciso dar prazos de entrega, mas estes precisam ser realista; o valor pago precisa ser minimamente justo. Tradutores e revisores são praticamente co-autores, já que eles "escrevem" para um público que irá ler em seu idioma. Talvez essa noção passe despercebida pelas editoras, mas é uma tarefa imprescindível para o sucesso ou o fracasso de uma iniciativa.
E por enquanto é só. Espero que o ano de 2024 traga melhores esperanças para aqueles de nós que esperam que a literatura de gênero ganhe mais espaço. É preciso também investir nos nossos autores nacionais que vem conquistando corações a cada ano que passa e já estão em grandes casas editoriais. E que as séries que tanto curtimos não sejam abandonadas pelas editoras, que pensem em boas estratégias para que as vendas não decaiam tanto a cada novo volume. A gente sempre torce pelo melhor e o Ficções Humanas sempre está de braços abertos para ajudar as editoras a divulgar e compartilhar suas leituras. Esse ano me afastei dos processos seletivos de parceria, mas isso não significa que exista uma má vontade da minha parte em divulgar livros de quaisquer editoras. E vamos às nossas leituras porque 2024 promete!
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