Elaborar os personagens de um novo romance a ser escrito é de fato uma jornada, como demonstra Assis Brasil no livro Escrever Ficção e que este artigo explica conforme a leitura feita no capítulo correspondente.
O livro Escrever Ficção do autor e professor Assis Brasil vai me acompanhar em alguns artigos dedicados à arte da escrita neste mês de NaNoWriMo. Este texto foca na jornada do ficcionista ao conceber os personagens envolvidos. Isso mesmo, é preciso muita dedicação na criação do personagem. Há defensores — mesmo grandes autores feito Erico Veríssimo — da ideia de os personagens “criarem vida própria e agirem sozinhos na aventura”, sendo o ficcionista apenas o relator desta jornada; porém só garante esta circunstância depois da elaboração dedicada do autor, conforme demonstrarei a seguir.
Enredo + Personagem (e não enredo x personagem)
A reviravolta no enredo — ou plot-twist — é um dos recursos mais eficientes em fazer o queixo do leitor cair. A história segue em determinada direção até o ponto crucial onde reverte toda a situação da aventura, o herói vira vilão, o outro personagem na verdade é delírio do protagonista ou surge o elemento inadmissível de existir, e ainda assim convence o leitor de ser verdadeiro. Essas surpresas só manterão o consumidor ávido a virar as próximas páginas se houver consistência, consistência do personagem.
O personagem é o vínculo do leitor com a história. As situações adversas ocorrem através dele, enfrentando-as conforme suas habilidades e personalidade. A reviravolta só terá impacto caso provoque algo no personagem explorado pelo leitor durante o tempo de leitura, testemunhando suas qualidades e receios para, ao ocorrer a surpresa, tirar o ar do leitor e forçá-lo a fazer as perguntas “como assim?” e “e agora?”.
O Clube da Luta demonstra bem este recurso. Aviso de antemão quanto ao spoiler — embora o Assis seja contra essa precaução do spoiler, discordo dele por defender a primeira experiência de leitura como algo inusitado, principalmente neste exemplo. Acompanhamos a história do protagonista a partir da narrativa em primeira pessoa sob fluxo de consciência, percebendo assim certa diferença na maneira de ele ver, agir e refletir. Acompanhamos esse comportamento dele ao lado do amigo Tyler. Os dois criam o clube da luta juntos, acontece o triângulo amoroso com Marla, provocam transtornos nos empregos onde trabalham, e só depois o protagonista descobre — junto com o leitor — que Tyler na verdade é ele mesmo. A reviravolta impacta tanto a ponto de tornar o leitor cético, questionar sobre tudo lido até então do livro, amarrar com os próximos parágrafos da revelação e se render à situação extraordinária e compreensível, tudo porque acompanhou o personagem e percebeu o quanto a confusão do próprio deixou esta revelação verossímil.
A eficiência da reviravolta consiste nela ser surpreendente e ao mesmo tempo inevitável. Cada ação do personagem deve estar amarrada a todo acontecimento da história, inclusive no ponto de virada, e tudo deve comprometê-lo. Em A Guerra dos Tronos — de novo, spoiler — vemos os conflitos acerca de Eddard Stark. O livro faz questão de mostrar as alternativas do personagem frente à nova dificuldade, depois afirma qual ele decidiu seguir e qual a consequência desta escolha. Cada perda sofrida pelas filhas o atinge, cada morte de cavaleiro sob seu comando compromete a defesa, e a morte de Eddard de fato surpreende, mesmo sendo consequência das atitudes dele. Longe de afirmar que Eddard mereceu ser decapitado, não sou do tipo que acusa a vítima por ter o celular roubado por usá-lo no meio da rua. A questão é sobre as ações de Eddard e a dos demais personagens possibilitarem este desfecho. Caso acontecesse só porque George R. R. Martin assim decidiu, As Crônicas de Gelo e Fogo jamais seria adaptada pela HBO.
“Algo pode nos surpreender, como a queda de um meteoro, mas é inevitável que isso aconteça, pois vinha em rota de colisão com a Terra.”
Encerro esta seção com exemplo negativo. A Máquina do Tempo conta a aventura do cientista na viagem ao futuro distante. Ele conta tudo o que vislumbrou desta experiência. O problema está no protagonista ser apenas testemunha em boa parte do livro, pouco interagindo com os nativos do futuro, faltando personalidade a ponto de motivá-lo a conviver com os seres da época e vice-versa. Ao ler o final da história, confesso ter balançado meus ombros, tamanho foi o desinteresse proporcionado pelo protagonista. Assis Brasil chama este tipo de personagem de manequim, alguém apenas conduzido de capítulo a capítulo.
O que saber do personagem antes dele “Nascer”
Depois dos exemplos de que bons enredos devem ficar atrelados a bons personagens, podemos focar na questão da criação desses de modo a tornar sua aventura convincente. Caso acredite na possibilidade do personagem surgir na cabeça e deste jeito já ser bom o bastante para inseri-lo na história, continue lendo e vem tranquilo, pois vou guiá-lo ao ponto desta jornada do personagem onde talvez possa afirmar de ele ter vida própria.
Começamos pela aparência: “pele alva, olhos claros, cabelos cacheados, pernas preponderantes, peitoral definido”, você sabe o que estes detalhes significam. Isso mesmo, nada. Toda descrição de aparência humana já foi utilizada ao longo de eras da escrita criativa, tornando a criatividade desta atitude bem rara. Na verdade fui desonesto ao dizer tal descrição significar nada, pois revela o desleixo do ficcionista. Revela o personagem vir na cabeça do autor com esta aparência e assim permanecer, sem desenvolver detalhes mais profundos. Denuncia a limitação em relação às referências literárias que fizeram o autor imaginar o personagem desta maneira ou quem sabe esteja restrita ao meio vivido por ele.
O personagem só cativa o leitor ao ter algo incomum nele, podendo ser na personalidade ou complementada na aparência. Assis traz um exemplo do conto Distância, cuja descrição da personagem é “uma garota esguia, bacana, atraente”, três características mundanas complementadas com a seguinte: “uma sobrevivente dos pés à cabeça”; fácil dizer qual dos dois recortes faz o leitor refletir mais sobre a personagem. Quando há nada incomum na aparência descrita, o livro sofre grande perigo de fazer o leitor saltar os olhos e ignorar toda esta descrição. Até compreendo quem admire as descrições pedantes de Martin sobre as aparências dos personagens em As Crônicas de Gelo e Fogo, demonstra a capacidade do autor em retratar o ambiente correspondente à época; pena colaborar pouco com o andamento da história. Quer me dizer os detalhes das pedras costuradas na túnica de determinado tecido, forrado com outro e amarrado em traços de lã na vestimenta de Joffrey? Ignoro tudo e o imagino com o gibão dourado por combinar com a família Lannister.
As características sociais do personagem tornam a identificação fácil acerca do contexto onde vive. Idade, maturidade, situação financeira, emprego e a condição em que trafega até lá diz muito sobre ele e das possíveis condições a enfrentar na narrativa. Definindo essas questões, o personagem já está pronto? Elabore mais... Estabeleça os seus sentimentos, crenças, receios, a expectativa quanto aos outros, orientação política, orientação sexual, possíveis contradições. Nem tudo deve estar presente na história escrita, pelo contrário, é apenas um recurso do autor durante a criação, de preparar a forma do personagem reagir a determinada situação ou como será afetado pelo acontecimento. Em suma, quanto mais detalhado, melhor fica prevenido quanto ao bloqueio criativo.
Por estarmos em um blog voltado a resenhas de livros de fantasia e ficção científica, sugiro mais questões além das apresentadas pelo Assis. Caso a história ocorra em ambiente mágico, europeu e medieval, qual o nível de proficiência dos feitiços de seu personagem? Há conflitos entre os tipos de magia realizados pelos outros? A magia vem de religião própria? As religiões do mundo real também existem nesta ficção? Qual a relação entre elas? Há envolvimento político? As estações do ano interferem na magia? E a região? Caso falhe em responder essas perguntas, tem risco de comprometer o personagem e a própria história, pois haverá furos no mundo elaborado. Na verdade não precisa ser exatamente essas, apenas busque questões condizentes e ao mesmo tempo diversas quanto ao mundo imaginado.
Com tantas questões levantadas, há quem aponte exagero na quantidade, que perderia o tempo de escrita por planejar a história. Compreendo e até concordo com este pensamento, é preciso definir o prazo de quando a escrita deve acontecer, senão há risco do autor ficar preso na pesquisa e planejamento. Insisto em planejar — como Assis Brasil — pois evita furos e o bloqueio criativo, ou seja, gasta menos tempo de reescrita e o tempo de ficar parado diante do computador sem conseguir continuar a história. Ainda é possível contestar esta ideia ao citar autores consagrados que afirmam desenvolver quase nada do enredo ou as características do personagem, e quanto a isso trago esta frase já usada em outro artigo:
“[...] não vi até hoje um comandante de aeronave dizer que prefere o voo cego — e eles devem ter seus motivos, por exemplo, as estatísticas dos desastres aéreos.”
Ao passar desta fase, pode então dizer do personagem possuir vida própria. As reações, sentimentos expostos e ocultos, além de qualquer atitude espontânea é derivada da caracterização bem executada. Se afirmasse que o personagem estar pronto desde o começo, haveria risco de ganhar somente uma corujinha na avaliação do Ficções Humanas no quesito Personagem, e por consequência estariam poucas presentes em Narrativa e Escrita, pois tudo está atrelado. Os argumentos de Assis Brasil são voltados a escritores iniciantes, e concordo com o posicionamento dele. Ou seja, deixe a ideia de vida própria de lado e foque na construção.
Personagem principal
Os mais atentos perceberam que até o momento referi apenas ao personagem, sem falar do protagonista ou o personagem principal. O fiz por também seguir o raciocínio de Assis neste quesito. Ele evita este termo no intuito de evitar certas confusões, seja subestimar ou mesmo ignorar os demais personagens, além de forçar a criação do antagonista ao protagonista quando nem sempre é necessário. Ele defende a ideia de definir o personagem central, quem está mais vulnerável aos conflitos existentes na história.
Quando há dois ou mais personagens centrais na trama, Assis também chama a atenção sobre certos cuidados. Um deles é jamais permitir ao personagem conhecer tudo sobre o outro central, do contrário impediria haver contraponto entre eles, perdendo oportunidades de elaborar conflitos entre os dois. Volto para A Guerra dos Tronos — e ao spoiler —: a morte de Eddard jamais aconteceria caso ele soubesse a intenção dos demais personagens; Arya Stark até tenta alertá-lo, mas por Eddard desconhecer os pormenores da própria filha, ele acredita ser precaução exagerada de criança. Depois descobrimos quem estava certo, e só soou verossímil porque ninguém compreende tudo do outro.
Outro cuidado é ter consciência de: mesmo tendo personagens centrais, haverá um entre eles que terá mais atenção do autor e portanto do leitor. Seria redundante classificá-lo como protagonista principal, a questão é sobre os conflitos afetarem mais determinado personagem. Caso o ficcionista equilibre os problemas na mesma medida a todos os personagens centrais, o conflito perderia a força. O leitor, igual qualquer pessoa, torcerá a determinado lado da história igual torce na disputa de xadrez ou nas palavras de Assis:
“[...] não se pode torcer para os dois lados, e minha indigente — ou nenhuma — experiência futebolística me diz que um espectador brasileiro assistindo na TV a uma partida amistosa, mesmo entre Camarões e Japão, não deixará de ter uma preferência secreta.”
Escrita criativa dá muito trabalho, e o esforço dedicado a arquitetar os elementos da história previne complicações na fase de desenvolvimento na história ou até na pós-escrita, ao perceber problemas a arrumar na revisão, ou — pior — os leitores notarem e condenarem o livro às notas baixas. Valorize o trabalho o qual pretende tanto dedicar e surpreenda com os seus personagens!
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