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Foto do escritorPaulo Vinicius

O nosso cantinho da leitura

Qual é o seu lugar favorito de leitura? O tipo de leitor que somos pode ser entendido a partir de quais lugares preferimos. Ao mesmo tempo, como estes lugares eram localizados em tempos passados?


No quarto, no sofá, na rede, no ônibus. Os lugares podem variar de pessoa para pessoa. Mas, eles representam muito de quem somos. A pergunta "qual é o nosso canto favorito de leitura" nunca teve tanto significado quanto hoje com uma quantidade cada vez maior de leitores se engajando e popularizando esse hobby tão íntimo e pessoal para cada um de nós. Nesta matéria vamos discutir o passado e o presente desse tema que já foi questionado por gerações e gerações de leitores. Será que no passado gregos e romanos liam nos mesmos lugares que nós? O quanto um lugar é capaz de dizer que tipo de leitores somos? Vamos refletir juntos sobre esse tema e trocar uma ideia sobre quais são os lugares ideais para praticar o ato de leitura ou se sequer existe isso de lugar ideal.


Vou começar falando um pouco sobre a minha experiência como leitor e quem sabe algum de vocês se identifica. Desde jovem não faço muita questão de um lugar específico para ler até porque só fui ter um quarto próprio tarde em minha vida. Precisei aprender a filtrar os ruídos dos ambientes ao meu redor para conseguir realizar minhas leituras. Quando estou engajado realmente em um universo literário ou com uma boa discussão, entro em um mundo próprio onde a realidade silencia e acontece sem a minha participação. Um estágio pleno onde consigo filtrar e ignorar o que se passa. Não é estranho então eu dizer que consigo ler sem grandes dificuldades em um ônibus ou um trem. Geralmente são lugares onde as minhas leituras mais fluem porque não tenho distrações ou compromissos que tirem minha concentração. Consigo fazer uma leitura até mesmo em pé se eu tiver espaço o suficiente no ônibus. Em casa hoje ainda não tenho o espaço ideal de leitura porque estamos em obras há vários anos. Então acabo precisando improvisar no sofá da sala ou pendurado em uma cadeira. Futuramente terei o meu próprio espaço, o que será surreal para mim que sempre tive que improvisar lugares.


Mas, isso acontece para todos? Muitos dos leitores fazem suas leituras na cama, em seus quartos de dormir. Talvez esse seja considerado o espaço mais íntimo da casa por excelência. Como formador de leitores, costumo questionar meus alunos onde eles preferem ler até para ter uma noção de como vai funcionar o espaço de trabalho na escola e como combinar regras de convivência. Mais da metade deles preferem um lugar que seja silencioso, para que o conteúdo do que esteja sendo lido possa ser absorvido com maior facilidade. É o que conhecemos como leitura atenta. Nessa modalidade a leitura consegue ter maior fluidez e a apreensão é mais profunda, com o leitor conseguindo rememorar bem os acontecimentos passados na trama. Outros não se importam tanto com o lugar por não terem escolha. Seja porque o espaço da casa é pequeno ou por morarem muitas pessoas no mesmo ambiente. Estes costumam fazer mais aquelas leituras de entretenimento onde não há a necessidade de um teor de profundidade no que está sendo lido. Nesta leitura mais superficial, o leitor consegue apreender a narrativa em uma visão macro, mas tem bastante dificuldade de citar detalhes porque estes escapam diante das distrações.


Só que precisamos deixar algo bem claro: nem sempre existiram quartos para leitura. Ou cômodos específicos para isso. Alberto Manguem em sua obra Uma História da Leitura nos mostra como isso se desenvolveu ao longo dos séculos. Gregos e romanos tinham uma visão bem distinta sobre onde realizar suas leituras. As klines gregas eram pedaços de madeira com decoração de animais onde o leitor poderia se reclinar para ler sozinho ou junto de outras pessoas em reuniões sociais. Para o conforto poderia haver algum tipo de travesseiro, mas sem a preocupação de um apoio dos pés. Por outro lado, os romanos tinham diferentes tipos de camas (lectus) para dormir, para ler ou apenas para descansar. Demonstra uma preocupação maior com o ato em si que era mais privado. Curiosamente a expressão elucubrar veio do latim lucubrum, um tipo de vela de pano ensopada em cera deixada próxima ao ambiente de leitura para ajudar nas longas noites de leitura.


Não nos esqueçamos de que ler era um ato estritamente masculino e as mulheres que os faziam eram transgressoras. Temos casos famosos disso, mas, por exemplo, na Grécia clássica aquelas que podiam usar as klines eram as cortesãs. Cabia às mulheres gregas cuidarem da casa e produzir filhos para a continuidade da família. Os romanos eram um pouco mais abertos, mas não menos taxativos que seus antecessores. Vamos encontrar no Oriente as mulheres que escreverão os livros de travesseiro como Sei Shonagon, que se tornará famosa entre seus pares. Contando histórias que traziam parte da cultura oriental em romances tórridos para a época, ela abrirá espaço para que outras mulheres assim o possam fazer. Os livros eram escritos às escondidas durante o dia e, de fato, escondidos embaixo do travesseiro. O quarto de dormir era usado como um espaço de transgressão, para abrir portas para um novo contingente de leitoras e escritoras.


Com a queda do Império romano, as invasões germânicas e as pequenas guerras entre facções que acontecem ao longo da Alta Idade Média, as camas deixam de ser objetos elaborados para serem mais descartáveis. Os catres eram camas mais simples que podiam ser deixadas para trás caso uma família precisasse abandonar suas casas em um saque ou guerra. Este é um momento de bastante carestia pelo mundo feudal com as famílias sobrevivendo com bem pouco. Os espaços de lazer eram poucos e não havia espaço para cultura. Os dias de descanso eram usados para se passar juntos ou até trabalhando no trecho da terra usado para subsistência. Mesmo entre os nobres, não havia uma busca por livros. A maior parte dos nobres era analfabeta, então um objeto que não tinha como ser decifrado não exercia grandes atrativos. A Igreja concentrava os livros em seus scriptoriuns e com isso controlava a difusão do conhecimento.


Se formos analisar como os religiosos abordavam o ato de leitura podemos entender a partir das experiências dos monges mais voltados para os estudos teológicos e daqueles que trabalhavam com a recuperação de livros do período clássico. Os quartos dos monges eram bastante modestos, representando locais para orações ou para uma reflexão de seu sida. As camas eram parecidas com os catres mencionados acima. É no espaço das celas que os monges obtinham o silêncio necessário para suas leituras "iluminadas". A concentração obtida permitia a eles memorizar ou interpretar o que estava sendo lido. Já por outro lado, os espaços privados dos copistas eram uma bagunça de documentos que apenas eles mesmos sabiam compreender. Iluminado à luz de velas, era um espaço de produção de conhecimento para outras línguas, e um trabalho realizado vinte e quatro horas por dia. Será por meio deles que obras que julgavam-se perdidas ganharão novas oportunidades como Virgílio, Aristóteles, Estrabão.



Com a ascensão da burguesia a partir do final da Idade Média, veremos uma necessidade deles de precisarem legitimar sua posição. Essa será uma tônica do período Moderno com burgueses chegando a comprar títulos de nobreza para conseguir privilégios. Eles queriam conquistar o espaço dos nobres a todo custo e isto envolvia também ostentar status. Uma das maneiras para isso era a criação de bibliotecas privadas em suas casas. Possuir livros era um indicativo de nobreza, de posição dentro de uma sociedade. É nesse momento que o quarto de dormir passa a ser usado para acumular objetos mais pessoais. Até mesmo itens únicos, de colecionador poderiam estar no quarto. Logo, o espaço precisou aumentar para que pudesse caber outros itens e móveis. Só que é preciso fazer uma distinção: enquanto que os livros ficavam acomodados nas estantes, outros itens íntimos eram guardados em baús para que fossem conservados por mais tempo. Curioso pensar que nem todos os burgueses sabiam ler e possuir livros poderia ser mais um hábito de ostentação de fato. Ou até mesmo se adquiriam coleções de capa dura ou colorida para fazerem o ambiente ficar com um ar mais erudito. Para quem pensa que só hoje se compram livros a quilo para compor um ambiente no fundo, olha aí de onde veio a ideia. Preencher o ambiente.


Só que o quarto não tinha esse uso atual como um espaço íntimo e reservado. Até o século XVIII e XIX o quarto poderia ser usado como um corredor de passagem comum. Ou seja, não pensem vocês que havia paz e tranquilidade para uma leitura absorta. Foi preciso um longo processo de mudança de mentalidade para que o espaço de dormir ou de relaxar pudesse se tornar habitual. Sem contar que apenas famílias ricas podiam dispor de quartos individuais. O mais comum era que membros da família dividissem seu espaço de dormir. Cerimônias coletivas como reuniões ou orações também tomavam lugar no quarto. O século XX inova com essa necessidade de criar espaços particulares para cada membro da família. Hoje nos refugiamos em nossos cantos, damos personalidade a eles. Espaços de leitura podem se tornar nossas bibliotecas de Alexandria pessoais. Essa é a principal mudança ocorrida nos tempos modernos.


Outra dessas mudanças envolve o dinamismo de nossas vidas. Como nosso tempo de lazer é escasso, tendemos a usar espaços pouco usuais para realizarmos nossas leituras. Como mencionei acima o fato de eu ler no transporte coletivo. Isso era algo impensável em tempos antigos, mas que hoje pode ser a diferença entre terminar ou estender uma leitura. Em meus tempos como universitário quando precisava ler entre 300 e 500 páginas por semana, o local não era o mais importante, mas sim o silêncio necessário para a compreensão da tarefa deixada por meu professor. E como serão os espaços de leitura no futuro? Com a chegada de novas formas de leitura como os audiobooks pode ser que nossa relação com os livros mudem sensivelmente nas próximas décadas.








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