Os aventureiros se juntaram em uma incrível aventura, passaram por inúmeros desafios e conseguiram derrotar o Imperador Demônio. Voltaram para a capital do Império e foram saudados pelo rei, ganhando todo o tipo de homenagens. Mas, e agora? Para onde os personagens vão? A elfa Frieren vai nos contar essa nova jornada e vamos acompanhá-la enquanto ela se lembra do passado.
O contexto já foi visto inúmeras vezes por leitores. Um grupo de heróis que se unem para combater um terrível vilão. Eles precisam passar por inúmeras provas e obstáculos, ajudando pessoas ao longo do caminho. Vão se tornando um grupo cada vez mais coeso e o companheirismo os ajuda a superar as adversidades. O combate contra o vilão é árduo e vem com muito esforço da parte deles, mas todos conseguem vencer e salvar o mundo. Retornando até o rei que lhes confiou a missão, eles recebem todo o tipo de homenagens e jantares os saudando. Estátuas são construídas em diferentes partes do mundo, nos lugares onde eles estiveram. E fim. Terminou a aventura, certo? Pois é. Frieren e a Jornada para o Além começa nesse instante. Uma jornada de autoconhecimento e a descoberta do que significa ser humano para um indivíduo cuja vida pode durar milênios. Uma animação japonesa e um mangá que fizeram um estrondoso sucesso por onde passara, com uma narrativa inteligente e criativa. Atualmente a animação conta com 28 episódios que cobriram sete volumes do mangá. A produção foi feita pela Madhouse e está em um primor gráfico sensacional.
Mas, queria comentar com vocês sobre alguns dos temas da animação que podem gerar ideias para histórias. Isso porque raramente vi histórias que se debruçam sobre personagens que terminaram sua jornada. A gente tem alguns exemplos legais, mas que se passam anos após a aventura ter terminado como a duologia escrita por Nicholas Eames (Os Reis do Wyld e A Rosa Sanguinária). Confesso ainda não ter visto algo que se passa imediatamente após o final de uma aventura. E a ideia básica é que Frieren é uma elfa e nesse mundo estes seres podem viver por milhares de anos. A jornada que ela passou ao lado do guerreiro Himmel, do anão Eisen e do sacerdote Heiter durou dez anos, o que para ela é pouco mais do que um respiro. Mas, essa jornada a marcou muito em vários sentidos. Por ser alguém com tanta longevidade, Frieren tem dificuldades para expressar seus sentimentos. Dá a impressão de que ela é uma pessoa fria e desapegada, mas Himmel foi capaz de despertar sentimentos desconhecidos por ela. Ao terminar sua jornada, cada um dos heróis vai seguir suas vidas. Frieren também segue a sua, mas ela tem uma noção de temporalidade muito diferente. Quando ela decide visitar cada um dos heróis, cinquenta anos já haviam se passado e Heiter e Himmel, os dois humanos do grupo, já estão bem mais velhos. O contato com Himmel, que foi a última vez que ela o viu, talvez tenha sido o que mais a tocou.
Em seguida, Frieren segue em sua jornada e se reencontra com Heiter que estava criando uma jovem chamada Fern junto consigo. Fern havia perdido os pais e estava morando junto com ele, mas Heiter se encontrava bastante doente e no final de sua vida. Depois de conversar sobre um possível feitiço para restaurar a juventude, Frieren ouve pela pela primeira vez falar de Aureole, um lugar muito ao norte que é a passagem dos espíritos para sua próxima existência. Heiter pede a Frieren que cuide de Fern em seu lugar, e, para alguém como Frieren que não consegue expressar adequadamente seus sentimentos, isso parece algo totalmente impossível. Mas, a elfa acaba cedendo por conta de seu carinho por Heiter e se torna a mestra de Fern. Curiosamente, mais tarde, enquanto seguem para o norte, Frieren e Fern acabam precisando de um guarda-costas para ajudá-las na jornada. A parte curiosa é que Stark, o guerreiro, é discípulo de Eisen. O outro ponto curioso é que Aureole fica após as terras do Rei Demônio a quem o grupo de Frieren derrotou anos antes. É como se a elfa estivesse refazendo a jornada ao lado de pessoas que herdaram as vontades de seus antigos companheiros.
A série tem uma linda abordagem sobre o tempo e as memórias de nossas experiências passadas. Tudo o que fizemos faz parte da construção de quem somos. Mesmo tendo passado milênios nesse mundo, aqueles poucos anos ao lado de um grupo de companheiros moldou a personalidade da elfa. Há alguns flashbacks de situações anteriores, como o treinamento de Frieren ao lado da Grande Maga Flamme ou o encontro com Seire. Mas, são momentos quase fugazes diante das recordações que insistem em retornar. Às vezes é até difícil expressar esses sentimentos em palavras, mas a série me tocou justamente por eu estar em uma fase da vida em que reavalio minhas decisões passadas. Ao mesmo tempo compreendo que cada escolha que fazemos constrói os blocos de personalidade que temos. Ou seja, não é possível chegar aonde estamos sem errar. E erramos muito. E está tudo bem. Algumas das recordações da maga dizem respeito a situações estupidamente corriqueiras como quando eles ficaram meses em uma cidade realizando missões banais como colher ervas, buscar crianças desaparecidas ou derrotar grupos de monstros fracos. Mas, estes foram momentos especiais em que o grupo pôde compartilhar a companhia uns dos outros.
Em pouco tempo percebemos o quanto Frieren é poderosa. É uma das feiticeiras mais poderosas do mundo, mas algo que escapa no começo da aventura é o porquê de Frieren correr atrás de magias completamente esquisitas. Um feitiço para tirar verrugas dos pés; outro para evitar tropeçar; outro para curar resfriados. Feitiços banais e que fazem parte da tradição popular. Fern também se questiona muito isso já que ela deseja se tornar uma feiticeira poderosa. Só que assim como a própria narrativa, Frieren tem uma visão diferente sobre magia. A elfa não se interessa em ser a mais poderosa, ou guerrear o máximo possível. Ela é poderosa como consequência de seus estudos, e a mestra de Frieren, Flamme, define bem a personalidade de sua pupila. Ela é a discípula perfeita para a Era dos Homens. É uma maga da paz. Embora quando ela assim deseje, Frieren pode ser apavorante. Mas, é então que somos lentamente apresentados à própria maneira como a personagem encara o uso de magia. Ela está atrás de novos feitiços pelo simples prazer da descoberta. Frieren incorpora o chamado à aventura, algo que ela acabou herdando do próprio Himmel. Ir atrás de novos feitiços é divertido e pode render ótimos momentos de encantamento, perigo e descoberta. Mesmo que ao final, o prêmio não seja nada além de um feitiço para tirar cera do ouvido. É a jornada que interessa, não a sua conclusão. Esta até pode ser importante, mas não é a essência da aventura. Fica aqui também a curiosidade sobre qual a magia favorita da elfa. É bem curioso e revelador sobre ela.
Os elfos desse mundo são bastante raros e não chegaram a organizar nenhum tipo de reino ou nada do tipo. Vivem espalhados pelo mundo e encontramos bem poucos ao longo da aventura. Mesmo entre os seus, Frieren é uma criatura bastante peculiar. Muito provavelmente por conta do tempo em que ela passou vivendo ao lado dos homens. Dando uma quebrada em expectativas, Frieren tem alguns hábitos divertidos: é bastante preguiçosa, sempre é a primeira a abrir um baú (mesmo quando este é apenas um mímico), tem uma imaginação fértil para as mais loucas situações, e sempre gosta de pegar todo tipo de tesouro enquanto explora dungeons. Mesmo que estes tesouros sejam apenas tranqueiras sem utilidade. Mas, é este conjunto de peculiaridades que a tornam a pessoa tão interessante que ela representa. Aliás, Frieren é alguém bastante desligada das convenções humanas. Por viver tanto tempo, ela não se importa muito em ter conhecimentos sobre a geopolítica dos lugares que visita. Para falar a verdade, ela nem deseja isso, já que seu instinto diz para ela continuar vagando sem rumo, sem estabelecer alianças com ninguém, eventualmente ajudando pessoas com necessidades.
Apesar de Stark também fazer parte dessa primeira parte da aventura e render diversos momentos engraçados, a narrativa gira na relação entre Frieren e Fern. Tanto que o primeiro episódio tem Heiter apresentando Fern para Frieren e o último mostrando a evolução dessa relação. Vale destacar a inteligência disso porque em nenhum momento uma das duas esteve em posição superior à outra. Ambas se complementavam. Frieren representa o ideal de como um mestre deve se relacionar com seu aluno. Ela não força Fern a adotar suas ideias, ou sua filosofia de vida. A jovem aprendiz vai adquirindo conhecimento pela junção de prática e teoria, errando quando possível e tendo sua mestra apontando onde ela errou e onde precisava melhorar. Frieren mostra as possibilidades de escolha para ela e lhe dá apoio para que possa evoluir como pessoa. Mais tarde, quando Frieren conta a Seire sobre Fern, ela já sabia de todo o potencial de sua aprendiz. E já não importava a ela títulos dados pelos homens... nunca importou. Toda a segunda metade da animação serve para mostrar o quanto Frieren se tornou uma ótima mestra para Fern quando esta precisava de alguém para estar junto dela. Voltando lá atrás quando disse que a elfa não sabia expressar seus sentimentos, nas interações com Fern, ela tenta ao máximo entender o que sua pupila quer dizer. Está certo que Frieren erra bastante ao não interpretar direito as coisas (e causa várias situações engraçadas e outras constrangedoras), mas ela busca até sair de seu modo de vida para entender aquela a quem aprendeu a ter um carinho genuíno.
Só posso dizer o quanto essa animação preencheu minhas semanas ao longo de quase seis meses. Me trouxe uma série de temas que não eram tão tratados assim em obras de fantasia. A narrativa é bem tranquila e pacífica, com alguns bons momentos de ação. Embora esse não seja o foco da história. A trilha sonora é fantástica com temas saídos da Idade Média europeia. Toda aquela sonoridade típica de séries e filmes que se passam nesse período. A animação entrou na maioria das listas de melhores do ano passado e não foi à toa. Para quem curte boas histórias de fantasia e quer sair do lugar comum, esse pode ser o seu lugar. Recomendo fortemente.
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