A leitura nos acompanha do momento em que nascemos até nossos inevitáveis finais. Seja um livro, um signo, uma placa. Esta relação é intrínseca ao ser humano. Duvida? Confiram nesta matéria, baseada no maravilhoso trabalho de Alberto Manguel.
O verbo ler vem do latim "legere" cujo um dos significados é colher, escolher, recolher. Curioso pensar que uma palavra tão cara a nós e que tem a ver com o ato de obter informações ou conhecimentos vem de um ato tão distante dos livros como é o da agricultura. A palavra chega à contemporaneidade a partir do processo de escolha de símbolos e palavras para formar significado cognoscíveis. Alberto Manguel em seu livro sobre a História da Leitura nos chama a atenção para as diferentes maneiras como a leitura foi parte das relações sociais ao longo do tempo. Desde os tempos primitivos com os vestígios deixados por povos que ainda descobriam o emprego de símbolos ou ideogramas, passando pelos pensadores gregos, os copistas medievais, a criação da imprensa e as diferentes formas como a tecnologia nos fez repensar o ato de leitura. Mas, o que é a leitura e quais as formas que ela assume?
A leitura nos acompanha desde que nascemos. Isso porque ler não é apena agrupar símbolos para produzir palavras. Ler envolve também decifrar códigos que podem ser placas, instruções, pinturas, cores, imagens, gestos. Nosso cérebro procura decodificar essas informações e nos fazer reagir da maneira adequada. Ao longo de nossa infância e adolescência ganhamos informações culturais que nos permitem conviver em sociedade. Se pararmos para pensar a leitura é a primeira coisa que fazemos e a última que desaparece. Ou seja, precisamos nos desprender dessa percepção superficial de que a leitura está atrelada às letras. Quando um caçador rastreia sua presa, ele lê suas pegadas e marcas deixadas na floresta. Quando um jardineiro cuida de um jardim, ele lê o crescimento das plantas e as poda quando necessário. Quando um ceramista está moldando sua peça, ele lê suas formas e tamanho para criar algo mais belo ou vistoso. Quando um médico cuida de seus pacientes, ele lê sua anatomia para ver que parte de seu organismo possui alguma doença. Manguel nos fornece vários outros exemplos fascinantes em seu livro, mas queria contribuir de alguma forma para essa discussão. Ao me deparar com esta estranha realidade, me paro para refletir em o quanto ler está na essência de nossas vidas. É a própria ambrosia que nos move todos os dias. Nos permite nos maravilhar, nos enternecer, nos entristecer, nos emocionar.
O que quero dizer com o parágrafo anterior é em o quanto a leitura assume disfarces e nos apresenta apenas sua face mais primordial. É como um enorme iceberg cuja ponta nos oferece letras escritas por homens como Drummond de Andrade, Machado de Assis, Oscar Wilde e tantos outros. Enquanto em suas profundezas, ações mais simples do cotidiano estão em seu escopo. Como bom historiador me pego pensando nos povos caçadores e coletores da Pré-História e em suas maneiras para perpetuar os conhecimentos adquiridos às duras penas e o legado para gerações futuras. Pensem nas imagens deixadas nas cavernas de Lascaux, na França. Ali estão alguns dos primeiros registros da humanidade. Como caçavam animais, como faziam fogo, como usavam ferramentas para facilitar suas vidas. Os descendentes de uma geração seguinte seriam capazes de compreender as pinturas e assim terem maiores chances de sobreviver em um mundo mais difícil. Se pararmos para pensar nesse ponto, temos que concordar com Manguel que não existem sociedades sem leitura. Podemos ter sociedades sem escritas, baseadas na oralidade como assim o eram os povos da África mais antiga ou os povos da Polinésia. Para eles, não havia uma necessidade prática para acumular registros escritos em papel ou em estelas. Bastava indicar com desenhos ou símbolos.
Para os egípcios, desenvolver um tipo de escrita homogênea estava na base da sobrevivência neste mundo e no pós-vida. Isso porque os comerciantes egípcios precisaram criar algum sistema matemático que os permitisse realizar suas negociações sem terem grandes prejuízos. Mais uma vez, saímos do mundo das letras e nos voltamos para uma outra forma de compreensão do mundo. Dessa vez, o mundo das trocas. Mas, é claro que a maior parte dos leitores se encantam com as tumbas, os sarcófagos, as pirâmides e seu incrível alfabeto hieroglífico. Só que esses símbolos tinham um significado ulterior para estes povos. Dominar o significado dos mesmos era o mesmo que memorizar uma fórmula mágica que permitia a eles ser bem recebidos no mundo inferior. A leitura era quase um ritual, defendido e escondido a sete chaves pelos escribas e sacerdotes. No Egito antigo, ser um escriba era dispor de um status privilegiado e eles eram um dos poucos grupos que eram alfabetizados. Um rei podia ter um ou mais escribas como conselheiros de Estado. O escriba detinha um enorme poder social.
O desejo de difundir a capacidade de entender palavras esteve na ordem do dia em vários momentos. Basta pensar em Alexandre, o Grande e sua filosofia de helenizar os povos do mundo inteiro. Um gênio militar, mas que compreendia a necessidade de difundir conhecimentos, de encontrar formas de transitar entre várias culturas. Dominar a produção de conhecimento era controlar, indiretamente, o povos conquistados. Sua habilidade de leitura ia além de seu domínio de técnicas de combate avançadas, mas a da diplomacia também. O alfabeto fenício criou uma possibilidade de registrar o conhecimento em ideogramas que acabaram se tornando quase preponderantes no mundo inteiro. Claro que isso é graças principalmente ao domínio do Império Romano. É lá que surgem novas maneiras de se encarar a leitura. Os romanos beberam muito de seus antecessores, os atenienses e herdaram o interesse pela oratória. O ler em voz alta se torna parte da formação de um intelectual. Se em Atenas, os discursos eram feitos na ágora e eram abertos a todos, agora havia o espaço do Senado romano; o começo de uma elitização do conhecimento, algo que se torna marca registrada da Idade Média. Mas, basta percebermos o quanto a leitura em voz alta se torna importante. Em seu livro sobre a retórica, Cícero busca ensinar métodos de memorização. Gravar longos trechos de textos usando habilidades mnemônicas, a busca por padrões que facilitem nesse processo.
Só que todo o período áureo do domínio chega ao fim com as invasões germânicas e o mundo cai em uma convulsão social. Enormes pedaços de conhecimento são varridos do mapa nos saques e destruições que se sucederam às conquistas de homens como Átila, o huno, Alarico ou Odoacro, sendo este último aquele que pôs um ponto final a este enorme império. Mas, o que isso tem a ver com a leitura? Bem, basta pensarmos que agora ler era para poucos e para membros da Igreja católica, a verdadeira vencedora da guerra contra os romanos. A principal senhora feudal e a acumuladora de conhecimento. Os copistas medievais em suas torres (ou seriam Igrejas?) de mármore, copiando escritos clássicos, talvez alterando aqui ou ali. Para os copistas a concentração era fundamental e eles podem ter sido aqueles a difundirem a leitura silenciosa. Não que ela não existisse antes, mas entre os intelectuais havia uma visão idealizada do discurso.
A imprensa oferece um novo marco para a humanidade. Se antes os livros eram apanágio para poucos privilegiados a concentrarem seus tratados em suas bibliotecas preciosas, agora qualquer um poderia dispor de sua cópia, pelo preço certo. Lembrando sempre que esse universo editorial não era tão diferente do nosso atual com nossas eternas reclamações sobre preços e elitização da posse de um livro. Lógico que na época dispor de um belo tomo em sua capa de couro era algo que nobres e burgueses entendiam como sinal de status. O processo de impressão vai ganhando melhorias e desenvolvimentos tecnológicos até se tornar mais simples por volta do século XVIII ou XIX quando os panfletos revolucionários dão o tom da voz dos oprimidos. A leitura destes pequenos manifestos criam as bases para as lutas político-sociais que marcam a esteira do que foi o Iluminismo e o conflituoso século XIX. Imaginem que em um período de poucos séculos vemos o despontar da Revolução Francesa, a independência dos EUA, as independências na América Latina, a Comuna de Paris. Pensamos nestes movimentos como fruto de interesses e insatisfações, mas como pensar em se tornar independente ou se rebelar contra o status quo se o indivíduo não tivesse lido um Thomas Paine, um John Locke, um Montesquieu e, mais tarde, um Karl Marx. Ler se tornou um ato político e os governantes passaram a perceber o perigo de uma população consciente de seus próprios direitos e deveres.
A leitura assume seus disfarces e mostra novos lados para a humanidade a todo o momento. Não devemos colocá-la apenas na caixinha das letras, sendo que ela tem todo um universo de significados. Poderíamos fechar toda essa nossa digressão apenas dizendo o quanto o ato de ler abre nossas mentes, expande nossos mundos. Nos refugiar em outros universos ou refletir sobre os tempos em que vivemos. Lógico que o leitor é um bom viajante, disposto a pegar a estrada rumo a lugares fascinantes e a conhecer personagens diferentes. Como Alberto Manguel, sou fascinado pela leitura e o seu poder transformador. A sua capacidade inerente de ser como uma fada, apontando sua magia para nossas mentes e corações. Certamente toda e qualquer leitura, seja ela de letras ou de qualquer outra forma de leitura me nossas vidas, nos metamorfoseia, nos transforma em novas pessoas a todo o momento. E é um processo que está acontecendo continuamente. Ou seja, somos todos leitores. Só não damos conta sempre desse simples fato.
Livro mencionado:
Ficha Técnica:
Nome: Uma História da Leitura
Autor: Alberto Manguel
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Não-ficção
Tradutor: Pedro Maia Soares
Número de Páginas: 432
Ano de Publicação: 2021
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*Material enviado em parceria com a Companhia das Letras
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