Duas animações da temporada de abril de 2021 lidaram com o tema da diferença de idade. Partindo de jornadas diferentes, elas entram nessa polêmica e nos fazem pensar a respeito. Mas, e aí: idade importa?
Não sei se é impressão minha, mas o tema da diferença de idade entre casais voltou à moda nos últimos tempos. Seja em reality shows, em programas de fofoca e agora até em animações japonesas. Estamos em um processo de reflexão sobre essa relação entre duas pessoas. Se é correto ou não, o caso é que a sociedade se encontra em um momento em que tudo é muito fluido, desde gênero até aspectos culturais. Uma relação complicada de acontecer por vários fatores, mais alguns que mais se destacam são a mentalidade das duas pessoas envolvidas e o julgamento feito pela sociedade. Nesta temporada de abril no Japão tivemos duas animações japonesas que lidaram com esse tema: Koikimo (diminutivo para Koi to Yobu ni wa Kimochi Warui) e Higehiro (diminutivo de Hige wo Soru - Soshite Joshikousei wo Hirou). Uma delas lidou de uma forma leve e divertida enquanto a outra teve uma narrativa mais pesada e que envolveu traumas para a personagem.
Vamos falar primeiro sobre Higehiro. Hige wo Soru - Soshite Joshikousei wo Hirou (vou chamar de Higehiro daqui em diante, okay?) é uma animação que estreou em abril de 2021 e foi adaptado de uma light novel de mesmo nome que começou a ser publicada de forma online no website Kakuyomu. Posteriormente a Kadokawa Shoten relançou a light novel em seu selo Sneaker Buno e ela finalizou com 5 volumes, sendo o último lançado agora em junho de 2021. O autor chama-se Shimesaba e a série acabou fazendo um bom sucesso de vendas, o que a tornou viável para ser adaptada para anime pelo studio Project No. 9 (Netoge e Jaku-chara Tomozaki-kun). A direção é de Manabu Kamikita e este anime é o seu trabalho de estreia. A série conta com 13 episódios e não sei informar se vai ter uma segunda temporada. Teoricamente não porque os cinco volumes foram adaptados, mas sempre é possível fazer OVAs com algum tipo de epílogo. A animação em si não é espetacular, mas cumpre o que se propõe a fazer. Não tenho destaques nesse sentido. A trilha sonora não é lá muito legal; acho que Koikimo é melhor nesse ponto.
A narrativa de Higehiro segue as vidas de Sayu e Yoshida. Yoshida trabalha em uma empresa com uma carreira estável e vinte e seis anos de idade. Apesar disso, ele mora sozinho e é apaixonado por sua chefe de setor, Airi Goto. Um dado dia, ele a convida para jantar e diz a ela que se sente atraído por ela, e é rejeitado por Goto. Decepcionado, ele volta para sua casa bastante chateado e acaba encontrando uma menina sentada embaixo de um poste na rua. Yoshida conversa com ela rapidamente e a leva para sua casa de forma a abrigá-la e dar algo para ela comer, imaginando que ela tenha sofrido algum trauma. Quando eles chegam no apartamento dele, Sayu tanta seduzi-lo e afirma ser o pagamento por ele tê-la abrigado. Yoshida se revolta com a atitude da menina, uma colegial, e afirma que vai expulsá-la caso ela tenta fazer isso novamente. Sayu se assusta com a reação e diz que sempre troca abrigo por sexo desde que fugiu de casa, em Hokkaido. Yoshida acaba se sentindo mal pelo que outras pessoas fizeram a ela e, como Sayu não quer contar o seu passado para ele, ele deixa ela permanecer em seu apartamento enquanto ela precisar. Sua condição é que ela só saia de lá quando decidir retornar para casa e que ela não use seu corpo dessa maneira novamente. É aí que se inicia uma estranha relação entre Sayu e Yoshida.
Quando fui pesquisar sobre Higehiro descobri que a série consta como sendo de comédia. E não foi bem isso o que eu senti enquanto assistia a relação entre Sayu e Yoshida. Apesar de ter um estilo leve, ela não é divertida no sendo de eu rir com as cenas. É diferente de Koikimo que tem umas tiradas engraçadas da Ichika. Sayu é uma personagem que sofreu vários traumas em sua vida, seja com sua família ou com outros homens. Em alguns episódios vemos o quanto a personagem criou uma espécie de redoma em torno de si para proteger seus sentimentos. O fato de outros homens terem se aproveitado de sua situação frágil a fez perder o pouco de confiança que ela tinha. Yoshida tem bastante trabalho para resgatar os sentimentos e os valores dela. Como ele mesmo diz a ela em um dado momento, a Sayu perdeu completamente a auto-estima e não se importa em se tornar um objeto em troca de um teto. E parece que é nesse momento que ela desligou o botão dos sentimentos. Quando ela se dá conta do que fez e as lembranças voltam à tona, Sayu sofre copiosamente.
Só que simultaneamente a esse resgate da auto-estima de Sayu e à resolução de seus traumas e problemas, a série coloca de forma bastante sutil o nascer de sentimentos entre os dois protagonistas. Não é algo tão óbvio quanto em Koikimo, mas está ali. Isso mesmo Yoshida tendo sentimentos ainda por Goto. Só que Sayu consegue transformar Yoshida. Ela faz com que ele se arrume melhor, fornece companhia a ele e é alguém com quem ambos podem contar. São parceiros. Não no sentido amoroso do termo, já que Yoshida é bastante respeitoso com Sayu. Esse nível de parceria entre os dois os tornaram dependentes um do outro. É perceptível até para os colegas de Yoshida. Ele resiste a esta ideia por várias questões, mas acaba ficando confuso a respeito de suas noções em relação a suas ações. Diferentemente de Koikimo, a posição do protagonista não é tão precisa assim. Ele não necessariamente aceita que está apaixonado por ela; sabe que existem sentimentos, mas não sabe dizer quais são. Se ele enxerga Sayu como uma irmã mais nova ou como uma mulher. Já Sayu tem certeza sobre seus sentimentos só que ela entende a impossibilidade de eles serem realizados. Principalmente depois que ela conversa com a Goto. Falta experiência para Sayu; falta ela ter um pouco mais de idade e falta entender o que seu parceiro quer. Algo que ela como uma colegial não é capaz de oferecer. E Goto, por ser uma mulher madura e experiente, é capaz.
Esse contraste é bastante interessante porque o autor não cai em um clichê de que o amor é capaz de vencer tudo e até de que os sentimentos são fáceis de serem explicados. Fora que o quadrado amoroso que acontece no anime é bem curioso porque não se trata de um harém para o protagonista, mas de mulheres distintas que possuem diferentes interesses por Yoshida. Não há espaço para outra na vida dele. Ou seja, os amores possuem intensidades variadas, não sendo pior ou melhor. Seja o amor de alguém que se apegou a outra pessoa, uma atração sexual ou um amor platônico. Nesse ponto, o autor foi muito inteligente e nos demonstrou como não é fácil para uma pessoa decidir o que ela realmente sente. Ao lado disso, existe todo o impacto do julgamento vindo da sociedade. Achei a narrativa bem mais madura.
Koikimo se foca mais na questão social. Ryo tem dois grandes questionamentos que ele precisa fazer a si mesmo: ele está disposto a colocar Ichika no escrutínio de uma sociedade que pode condená-la; e até onde ele pensa em ir com ela. As diferenças de personalidade são óbvias e apesar de Ryo ter uma postura bem mais moderada na segunda metade da série, ele se preocupa mais com o impacto que sua presença vai ter na vida de sua amada. Pior: Ryo precisa entender quais são os seus reais sentimentos e se a paixão que ele tem por Ichika é algo duradouro e não apenas uma situação de momento. O personagem ganha mais camadas, mesmo a série mantendo um clima leve e divertido. O fato de ele ter Matsumoto como outra pessoa interessada por ele e tendo características semelhantes a Ichika, faz o personagem refletir um pouco. E pensar se vale a pena se envolver com alguém mais jovem ou até fazê-la sofrer desnecessariamente.
Por outro lado, Ichika vai caminhando numa trajetória inversa. Se no começo e até meados da temporada ela tem certeza sobre seus sentimentos, mesmo Ryo sendo uma pessoa doce, a personagem começa a vacilar no final. Isso porque o personagem muda o seu comportamento e se transforma em outra pessoa. Esse é um efeito que vemos também em Higehiro. O quanto a presença de outra pessoa ou do florescer dos sentimentos é capaz de nos fazer mudar, amenizar nosso coração. Ichika começa a enxergar em Ryo uma pessoa confiável e sensível. Ela tem dúvidas no começo, mas quando ela toma a sua decisão ao dispensar uma pessoa que está apaixonada por ela, Ichika sabe o que sente. Só que pensa ainda na diferença de idade e o quanto isso pode ser determinante na relação entre ambos. Ichika tem uma sensibilidade grande e pensa na diferença de objetivos. Por exemplo, Ichika tem dúvidas sobre o que fazer depois de sair da escola. Enquanto isso, Ryo é um homem bem sucedido e com uma carreira traçada. Em um primeiro momento, isso pode não ser grande coisa, mas a partir da convivência isso pode gerar reações diversas.
Achei interessante trazer esse assunto porque não é todo dia que vemos dois animes com temáticas tão próximas estreando ao mesmo tempo. Certamente a sociedade japonesa está passando por transformações e há uma mentalidade de que alguns assuntos que eram tabus precisam ser abordados. Gostei de ver também que os autores das duas obras tomaram caminhos bastante diferentes para seus personagens, abordando outros espectros desse debate. Tenho minhas reservas quanto a esse assunto mais por uma impressão de diferença de mentalidade do que um julgamento social. Já me relacionei com uma garota sete anos mais nova antes de namorar com a minha esposa e não foi uma experiência positiva. Justamente por essa diferença de pensamento. Não parece algo grave à primeira vista, mas à medida que o tempo passa as coisas começam a ficar aparentes. Quanto à sociedade em si, acho que a gente precisa avançar em certas pautas. Se discutimos com mais liberdade sobre casamento de pessoas de mesmo sexo, a diferença de idade não deveria ser algo tão chocante. Em relação aos dois animes, recomendo bastante Higehiro. É um anime que vai te surpreender.
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