O escrivão Isaías Caminha é enviado a Porto dos Amantes para descobrir a verdade por trás do caso do temível Doutor Louison. Um homem que matou com requintes de crueldade oito pessoas importantes da cidade. Mas, será que existe algo mais por trás deste caso?
Sinopse:
Uma aventura steampunk brasileira! Livro vencedor do concurso ‘a fantasy quer o seu mundo’ 1911. Porto Alegre. Dirigíveis gigantescos dominam o céu. Abaixo, o vapor cinzento dos bondes, das fábricas e dos estaleiros ao redor soma-se à fumaça dos charutos, dos cachimbos e das cigarrilhas. Vozes robóticas, barulho de hélices e maquinários misturam-se ao alarido do povo. De um Zepelin, desembarca Isaías Caminha, um jornalista carioca enviado à cidade para escrever uma matéria sobre o assassino em série Antoine Louison, que há poucos dias assombrava o local com um verdadeiro show de horrores: a exposição dos órgãos de suas vítimas. Nesta busca pelo paradeiro do assassino, Isaías e um grupo de investigadores ainda vão topar com conhecidos do Dr. Louison, pertencentes a uma sociedade secreta de intelectuais, chamada Parthenon Místico, que estão dispostos a tudo para defendê-lo e desmascarar os criminosos. E esses amigos de Louison são alguns aclamados personagens da literatura brasileira, em brilhante reinvenção: Rita Baiana e Pombinha, de Aluísio Azevedo, Simão Bacamarte, de Machado de Assis, Solfieri, de Álvares de Azevedo, entre outros.
Como alguém que vem buscado divulgar literatura fantástica nacional admito que alguns autores me intimidam. Me intimidam pela importância que eles tem para o mercado de produção de literatura fantástica, pela qualidade de escrita, pelo status que eles adquiriram com os fãs. Digo isso em relação ao Afonso Solano, ao Eduardo Spohr e ao Eneias Tavares. São pessoas fantásticas, de uma simplicidade imensa e, ao mesmo tempo, de uma qualidade inegável na arte da pena. Por isso eu esperei tanto tempo antes de criar coragem para me debruçar sobre o material deles. Porque eu queria fazer uma leitura com absoluto cuidado para não deixar escapar quaisquer detalhes.
“Projetava-se ali a imagem que correspondia aos antigos e moribundos ideais de um título de doutor. Sua voz pausada e sua fabulação eloquente, um pouco desencontrada das imagens em projeção, me feriam os ouvidos como apenas a mais perfeita sinfonia era capaz. Era um doutor aquele homem, que resgatava da humanidade decaída o pecado original de sua origem simiesca. Um doutor que conquistava a audiência seguro de sua majestade, falando e gesticulando como um herói mítico, desses que a vida insiste em esfumaçar de nossa imaginação.”
Eneias dá uma aula de escrita criativa em A Lição de Anatomia. Uma coisa que eu tenho como característica é o hábito de tentar me acostumar com um tipo de escrita. Depois que eu me acostumo, a leitura flui de forma mais rápida. Mas, ele não me deu uma chance em nenhum momento de me acostumar. Quando eu conseguia pegar o jeito da escrita dele, entrava outra parte que mudava completamente o estilo, me obrigando a rever a forma como eu encarava a narrativa. Parece algo ruim, mas eu encarei como um desafio. E adorei o que eu vi. Para mim, o autor é um alquimista da escrita: alguém capaz de transformar qualquer estilo narrativo em algo especial. Temos um diário, um romance epistolar, uma sequência de inquéritos, uma entrevista. Esta versatilidade acaba auxiliando no resultado final.
A narrativa segue na linha de primeira pessoa quando o estilo de escrita se enquadra neste padrão. Por exemplo, na primeira parte, narrada por Isaías Caminha ele é mais descritivo já que ele age como os nossos olhos. Porém, nos inquéritos policiais temos uma narrativa mais seca por se tratar de um tipo de relatório. A escrita empregada pelo autor é muito bem localizada. Faz total sentido com aquele momento romântico usado como base para compor o cenário. Dá para sentir aquela aura novecentista típica de romances como O Cortiço ou O Alienista. Eu fiquei impressionado em como o autor conseguiu até ambientar a sua escrita. Não é algo simples de ser feito; necessita de um profundo conhecimento sobre as estruturas empregadas pelos autores para construir frases, que palavras usar e em que situações encadeá-las. Mesmo quando ocorre uma mudança no estilo de escrita, esta se adapta ao tipo de personagem que a está usando. Por exemplo: se Isaías Caminha é mais jornalístico, Rita Baiana é mais informal e emotiva enquanto que mais à frente temos uma escrita mais floreada. Isso dá a cada personagem uma característica própria que interfere em como ele fala.
A ambientação é um dos pontos altos do livro. Empregando a estética steampunk, Eneias nos apresenta a Porto dos Amantes, uma versão diferente da nossa Porto Alegre. Mesclando tecnologias como robôs (que substituíram os escravos que acabaram de se tornar livres), com carruagens e lâmpadas a óleo, o autor é tão sutil em suas descrições que os elementos dissonantes steampunks parecem harmônicos. Quase como se sempre estivessem ali desde o começo. Porto dos Amantes exala personalidade e os elementos que a compõem são colocados pouco a pouco: a Casa dos Prazeres, a ilha, a mansão de Louison. Essa construção sistemática ajuda também no desenrolar da história porque o leitor vai se familiarizando com o cenário.
A história é apresentada a partir de diversos pontos de vista distintos: Isaías Caminha, Simão Bacamarte, os inquéritos policiais, as cartas trocadas entre as mulheres da Casa dos Prazeres entre outros. O leitor vai juntando as peças do quebra-cabeças, montando as personalidades de cada um dos personagens. Conhecendo estes ângulos distintos, as coisas vão ficando mais claras e os plots vão sendo resolvidos um a um. Ao final, o autor consegue lidar com todas as pontas, deixando apenas alguns ganchos que podem ser aproveitados futuramente. Outro ponto interessante é que ele vai citando diversos acontecimentos do passado dos membros do Parthenon Místico que nos deixa curiosos sobre suas aventuras.
Há muita riqueza nos personagens e em suas atitudes. A temática principal da narrativa é uma jornada de vingança. Mesmo uma pessoa lógica e racional pode ser vítima de suas emoções. Por mais que sejamos capazes de buscar racionalizar nossas ações, quando se trata de alguém que amamos, perdemos a razão e passamos a enxergar em tons de vermelho. Isso pode mudar a atitude de um homem. E quando cedemos a esse instinto primitivo e matamos alguém, avançamos a outro estágio absoluto de percepção sobre a natureza do mundo e das pessoas. Por mais justificáveis que sejam as ações cometidas, infelizmente, os fins não justificam os meios. O que levou à tragédia fez com que o personagem só fosse capaz de pensar na gravidade do que foi feito muito tempo depois. E não percebemos nele um arrependimento; sua justiça foi direta e fatal.
“Foi na mesma época que eu descobri a necessidade de estar só comigo mesma, de ler e ser lida na leitura que fazia dos outros. Ora, uma mulher pode tudo e pode ter tudo, se dela partir a coragem de se ouvir e de ouvir nos outros suas míseras fraquezas.”
Outro personagem de grande destaque é Simão Bacamarte. Eneias conseguiu criar um personagem realmente repulsivo. Ele tem aquela personalidade do cientista preconceituoso do século XIX. Alguém que prega o evolucionismo social e é responsável por um manicômio. Suas formas de tratamento são completamente questionáveis e as elites dirigentes fecham o olho às suas ações reprováveis. Cada página do diário de Bacamarte transborda loucura e racionalismo ao mesmo tempo, demonstrando a personalidade conturbada e contraditória do personagem.
Todo o ar decadentista criado por Eneias está presente na própria maneira como os personagens entendem o mundo ao seu redor. O melhor exemplo disso é Rita Baiana que busca no prazer e na música a ambrosia capaz de curar suas dores. Ela sente falta de sua senhorinha e escreve cartas cada vez mais repletas de solidão e dor. O mundo criado pelo autor não é para os fracos; estes são testados diariamente em suas certezas e convicções. O mundo está mudando e estas não parecem estar acontecendo para uma mulher. Os valores são questionados pelos personagens como a substituição de escravos por autômatos. E o que acontece aos escravos libertos? Como será sua vida?
“Certas coisas não se conta nem se escreve. Só se vive.”
Enfim, o autor consegue nos surpreender positivamente com uma escrita deliciosa, empregando personagens da literatura brasileira com originalidade. Nenhum deles parece ter sido forçosamente utilizado; todos tem uma razão de ser e de estar. Para um livro de estreia, é um trabalho de competência ímpar que só fez crescer o meu apreço pelo que o Eneias faz pela literatura fantástica nacional. Só tenho a fazer recomendações efusivas para que todos leiam este trabalho. Não percam tempo!!! Sejam encantados por esta escrita sensacional.
Ficha Técnica:
Nome: A Lição de Anatomia do Temível Doutor Louison Autor: Eneias Tavares Editora: Casa da Palavra Gênero: Ficção Científica (Steampunk) Número de Páginas: 320 Ano de Publicação: 2014 Link de compra: https://amzn.to/2QD98do
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