Em uma distopia que se parece muito com os nossos tempos, Amália perde sua filha. Ela desaparece misteriosamente e nossa protagonista quer encontrá-la a todo custo. Só tem um problema: Amália pensa que é Amália. Mas, será que ela é Amália de verdade?
Sinopse:
Amália pensa que é Amália.
Perdeu o emprego, a amiga e - a pior de todas as perdas - a própria filha. Desde sempre se sente perseguida, e o pior é que se vê envolvida insidiosamente por outras perdas que a impedem de encontrar o paradeiro de sua filha.
Uma força sobre-humana poderosíssima volta-se contra ela: criaturas aparentemente extraordinárias põem o mundo real à prova e os danos se multiplicam. Nessa narrativa distópica, os perseguidores são muitos e tentam se impor com os mais insuspeitos estratagemas, exigindo da protagonista o que ela ainda não sabe de si mesma.
Em busca de sua filha, Amália está atrás de Amália.
Uma distopia assustadora
Distopias são um gênero literário cujo foco é apresentar um futuro assustador especulando a partir daquilo que já existe. Quanto mais próximo da realidade, mais assustador é o romance. Por esse motivo, romances como 1984 e Fahrenheit 451 se tornaram tão icônicos. Mas, ambos os romances foram escritos na primeira metade do século XX onde o perigo tinha rosto e lugar. Mas, vivemos hoje em uma pós-modernidade líquida (segundo Zygmunt Bauman) onde o poder nem sempre pode ser percebido, e nem sempre tem um rosto. O aparato institucional serve para esmagar e compactar toda a nossa capacidade de resistência. Marco Aqueiva nos coloca em um confuso mundo onde uma personagem pode ou não ser nossa protagonista já que o inimigo não tem rosto. Dentro desse mundo claustrofóbico, somos colocados em uma busca irrefreável por uma jovem amada por sua mãe.
Amália perdeu sua filha Lise. Ela desaparece sem deixar vestígios e nossa protagonista não sabe o que fazer. A única coisa da qual ela tem certeza é que ela deseja ter Lise de volta. E ela sai em busca de pistas que possam levar a ela. Porém, pouco a pouco as coisas parecem perder o sentido. O real se alterna com um mundo digital onde os desejos das pessoas podem ser atendidos em um lugar idílico. Claro que tudo tem um preço. Neste lugar, as pessoas se esquecem dos problemas e vivem vidas confusas e estranhas cercados por seres poderosos que brincam com seus destinos. Amália vai perdendo sua percepção de si dentro deste lugar. Só que tem um detalhe: vamos percebendo outras Amálias existindo neste mundo. Uma que teve seu marido como cobaia em experimentos com drogas experimentais; outra que busca encontrar a eterna beleza; outra que está confusa ao ver a si mesma dentro deste mundo virtual e outro que deseja ser Amália. É aí que nossa mente entra em parafuso tentando descobrir o que de fato está acontecendo.
"O instrumento de violência e crueldade perfeito para derrubar a menor sombra de nariz empinado: couro sobre couro ajeitando a alma à submissão."
Estruturada com o emprego de poesia em prosa, Amália atrás de Amália é um belo exemplo de weird fiction, ou seja, de ficção estranha. Não se trata das insanidades maravilhosas que Jeff Vandermeer usa em seu livro Aniquilação, mas do uso do estranho para confundir o leitor. E nesse caso, Aqueiva é um prestidigitador mostrando a maçã para o leitor, mas escondendo o seu jogo em um truque oculto. Ficamos tão focados em Amália buscando sua filha que quando a narrativa pula para outra situação, tentamos encontrar nosso norte que nunca vem. Não adianta ficar tentando buscar um sentido porque ele não está no personagem e nem na narrativa. Weird fiction muitas vezes se foca no estilo e na mensagem. A dica que eu dou é preste atenção na trilha de tijolos amarelhos que Aqueiva vai deixando ao longo da história. Pouco a pouco vamos conseguindo juntar as peças para entender o todo.
Não quero entrar muito em detalhes por dois motivos: primeiro a história é do tamanho de uma novella tendo pouco mais de oitenta páginas, sendo que qualquer coisa que eu fale da história vai estragar sua fruição; segundo que se torna mais divertido encontrar o sentido nas linhas da narrativa. Me surpreendeu a qualidade da escrita de Aqueiva. Depois analisando melhor vai do fato de ele ser alguém que trabalha antes com a poesia do que com a prosa. Portanto, seus parágrafos são bem encaixados e encadeados, tendo ritmo e cadência. Nem sempre vemos isso em escritores puramente de prosa. Os capítulos são curtinhos, tornando a leitura veloz. Mas, não se enganem: sugiro fazer mais duas releituras para pegar algumas das interpretações possíveis na narrativa.
"Você já imaginou que o mundo pode ser igual a uma porta que leva a um corredor que leva a uma infinidade de portas e corredores inaparentes?"
Um dos temas presentes em Amália atrás de Amália é o da alienação. Nesse mundo pós-moderno, nos tornamos pessoas individualistas e que não enxergam o todo, senão as partes. Isso é um efeito do sistema capitalista que nos coloca como peças de uma engrenagem, porém nos achamos AS peças da engrenagem. Nesse mundo estranho criado por Aqueiva as pessoas não desejam sair de seu mundo de aparências. Mesmo sendo perseguidas por seres poderosos, viver no virtual apaga a tola vida material. É pensar na Matrix ao contrário: pessoas que desejam voltar para seus lugares insípidos, deixando de lado este mundo tão exigente. Aqueles que nos controlam estão em uma posição quase divina neste mundo. São seres que regulam todos os aspectos de nossas vidas, do momento em que acordamos até quando dormimos.
Outra mensagem poderosa que Aqueiva nos deixa através de sua prosa poética é a necessidade da ação. O sair da alienação para obter alguma coisa. É quase um soco no estômago do leitor quando ele diz que devemos olhar para fora. Que apesar dos mundos fantásticos presentes nos livros, a realidade está lá fora e depende de nós. Amália só se deu conta de si mesma quando ela perdeu algo. Ela poderia ter aceitado e sido subjugada, mas preferiu agir e buscar o que ela ama de volta. Para tal, ela vai precisar enfrentar uma série de desafios em que mesmo o conceito do self (de si mesma) vai ser colocada em jogo. Ao entender quem ela é, Amália passa a entender seu lugar social e o quanto ela precisa lutar para conquistar o que deseja. Só achei que antes de bagunçar todo o universo, o autor poderia ter dedicado algumas páginas a mais para desenvolver a personalidade de Amália e sua relação com a filha. Mas, entendi aonde ele queria chegar. É só um resmungo de alguém que queria mais já que a barra foi jogada tão para cima.
"(...) é a vida, e não a literatura, que está sempre do lado de fora. Porque nos alegramos com a vaidade espetaculosa dos grandes conhecedores da realidade: grandes horrores experimentamos com esses tolos pacholas! Porque apenas a fábula libera que desce igual a um gole de água pode reidratar a luta: aquela que pode nos dar não apenas a vitória, mas a esperança."
Esse é um romance poderoso, porém admito que não vai ser uma leitura para qualquer um. Exige do leitor que ele leia além das linhas, buscando significado no absurdo e no estranho. Não é um romance que vai te fazer entender aonde ele quer chegar, mas algo que vai te fazer pensar sobre aonde você vive e o que pode almejar alcançar. Gostei da prosa do Aqueiva e gostei mais ainda do desafio de ler algo diferente e intrigante. Mais um ponto para a Patuá.
Ficha Técnica:
Nome: Amália atrás de Amália
Autor: Marco Aqueiva
Editora: Patuá
Número de Páginas: 88
Ano de Publicação: 2019
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