Continuando a análise dos contos presentes nessa excelente coletânea sobre contatos imediatos. Curtiram até agora? Se preparem para mais história como as de Vitor Martins, Mayra Sigwalt, Cirilo S. Lemos e Clara Madrigano.
Nesta segunda parte da resenha desta coletânea, temos os seguintes contos:
6 - "Entre as Gotas de Chuva, Encruzilhada" (de Cirilo S. Lemos)
7 - "O Regresso" (de Clara Madrigano)
8 - "O Morango de Itaipu" (de Mayra Sigwalt)
9 - "Estrela Cadente" (de Vitor Martins)
Seguem as resenhas:
6 - "Entre as Gotas de Chuva, Encruzilhada"
Autor: Cirilo S. Lemos Avaliação:
De todas as histórias da coletânea essa é aquela com um tom mais cinza e pés no chão. Fica até o recado de que temos cenas de violência nesta narrativa, que ajuda a ela a ter um tom mais realista. Se é que podemos citar realista em um conto de ficção científica. Mas, é aquele conto que te dá um soco no estômago. Onde o autor nos coloca em uma situação desconfortável para nos contar uma bonita história. Somos apresentados a Marcelina e Alvinho, um casal de meninos de rua que vivem entre seus colegas cheirando cola, roubando pedestres e sem ter esperanças na vida. Sua história é a mesma de milhões de meninos de rua que vemos todos os dias. Mas, e se sua existência fosse assim por conta de alguma força externa? Quando uma estranha mulher oferece uma chance para salvação, Marcelina é a única que acredita nessa possibilidade.
A escrita de Cirilo é bem crua e direta. Ele não afaga nos golpes dados no leitor. Não à toa ele avisa lá no começo sobre a existência de violência na narrativa. Ele vai empilhando as situações apresentando de fato um caminho sem volta para aqueles meninos. A existência da mulher é quase como um aspecto onírico dentro do que ele se propõe a fazer. A escrita segue um tom bem simples e os personagens são muito verossímeis, o que é de fato muito assustador. Gostei muito da interpretação que ele deu ao tema de contato imediato; de fato é algo bem particular.
Ao mesmo tempo sua temática é uma crítica social. O quanto esses meninos de rua são criaturas apagadas, abandonadas e esquecidas por todos nós. Só nos lembramos deles quando acontecem algum caso de violência conosco. A situação que acontece depois com a gangue de Estragado é um reflexo do descaso social a eles. Claro que na hora em que alguma situação de violência acontece conosco, não pensamos direito; apenas nos voltamos para aqueles que amamos e desejamos que a justiça seja feita. O efeito colateral posterior se tornou algo muito comum nos dias de hoje. Se podemos atrelar ao Estado a incapacidade de lidar com menores abandonados e resinseri-los na sociedade, também pode ser incutida a ele a incapacidade de levar justiça àqueles que foram afetados. É um grande efeito dominó que se espalha por todas as áreas. Hoje não há como separar a sociedade ativa daqueles que vivem à margem. Estes moram logo ali na esquina e compartilham do mesmo espaço que nós. Não há como simplesmente ignorá-los.
A narrativa de Cirilo começa violenta e desesperançosa e adota um outro tom seguindo mais para o final. Quando há o desaparecimento do lagarto no ombro de Marcelina, vamos acompanhar uma bonita cena onde o autor nos mostra todas as possibilidades que aqueles meninos poderiam ter tido. É a demonstração máxima de o quanto há uma escolha para eles, caso esta tivesse sido ofertada. Todos os jovens tem a capacidade de alcançar um futuro brilhante; basta que os caminhos surjam diante de seus olhos. Gostei demais de como o autor se apossou do tema e criou algo inesperado em cima disso. Parabéns!
7 - "O Regresso"
Autora: Clara Madrigano Avaliação:
A ligação entre irmãos gêmeos é sempre algo a ser discutido. Muitas vezes representa uma conexão que vai além do depender uma da outra para alcançar algo quase metafísico. Leila e Clem são companheiras desde pequenas. Uma sempre apoiou a outra ao longo de toda a sua infância e parte da adolescência. Clem sempre foi a sombra enquanto Leila era a mais ativa. Mas, um dado dia, Leila desapareceu. Sem muitas explicações. Equipes de busca foram enviadas para tentar encontrá-la, mas isso nunca aconteceu. Desde então, Clem precisou se adaptar a uma vida sem aquela na qual ela se apoiava. E os anos se passaram, Clem se formou, se casou e teve toda uma nova existência. Mas, quando Clem acaba optando por voltar a morar na casa de seus pais, tudo muda.
A escrita da Clara é carregada de uma emotividade marcante. Ela consegue colocar nas linhas o que os personagens estão sentindo: tensão, alegria, alívio, felicidade, depressão. Essa é a forma como a autora se conecta ao leitor. Sua narrativa começa de trás para frente com Clem saindo do presente para comentar sua conexão com Leila no passado. Apesar de que no começo não entendemos muito aonde ela se encontra e o que está acontecendo. Isso vai sendo revelado aos poucos quando o leitor começa a juntar as peças da trama. No final, ela retoma a narrativa de onde parou e o status quo segue até ser rompido por um acontecimento diferente. A história tem uma divisão bem clara entre os setores do que está sendo contado. Só achei o final um pouco previsível diante daquilo que acontece mais para a frente. Isso porque o instinto de proteção da Clem é muito forte e isso conduz o leitor a pensar no sacrifício propriamente dito.
Clara adota também o não mostrar. Eu gosto de quando um autor brinca com as nossas percepções. Em nenhum momento a gente sabe aonde se encontra o alienígena na história. Dá até para ter uma certa desconfiança acerca do regresso em si. A gente fica com um pé atrás, se aquele que regressou é o mesmo que desapareceu. O leitor fica com aquela impressão de olhar por cima do ombro e observar todas ações nos seus mínimos detalhes. Acho até que a Clara poderia ter brincado um pouco com um misdirection, ou seja, com guiar o leitor a uma conclusão diferente da que vai realmente acontecer. Mas, isso não tira nem um pouco o brilho daquilo que ela apresentou ao leitor. Gosto dessa brincadeira também das gêmeas e é interessante perceber que mais para o final da história a situação da protagonista se inverte em relação ao começo. Se ela é uma sombra no início, depois ela passa a ser a luz. Nos questionamos então se foi um sacrifício de Leila no começo ou se foi acidental mesmo.
O Regresso é um bom conto onde a autora trabalha bastante o desenvolvimento sentimental da protagonista e em como ela amadurece dentro de seu universo. A ligação entre as gêmeas é bem explorado e acaba revelando muito mais das personagens do que parece em uma primeira observação.
8 - "O Morango de Itaipu"
Autora: Mayra Sigwalt Avaliação:
Acompanhamos Nat, Mare e sua avó que foram convocados pelo governo para investigar uma estranha espaçonave que foi parar em Itaipu. Ao que parece não foram encontrados alienígenas dentro da nave o que leva o governo a acreditar que os seres teriam morrido na queda. A avó de Nat tem o poder de falar com os espíritos, então a ideia era falar com os espíritos dos alienígenas para tentar travar um contato com eles. Mas, as coisas começam a dar errado assim que elas entram na nave para iniciar a sessão.
O conto é repleto de boas ideias. Temos as personagens com poderes, alienígenas, uma conspiração governamental, diálogos divertidos... Mas, eu senti que foi muita coisa jogada em um pequeno espaço. O conto possui uma área muito limitada na qual o autor pode inserir suas ideias. Quando colocamos coisas demais, tudo se torna confuso, estranho ou fora de lugar. Eu estava conformado só com a ideia da vovó médium... Não havia necessidade de colocar poderes psíquicos nas duas meninas. A história começa como uma investigação com ares bem leves e vai se tornar um confronto entre seres muito poderosos. No final temos explosões, tornados, eletricidade. Acho que não havia necessidade para isso porque as dez primeiras páginas são muito divertidas e entregam tudo o que a gente precisa saber.
O ponto forte é a química entre as personagens. Mayra criou uma ligação intrínseca entre elas e a gente acaba curtindo-as. Queremos saber o que vai vir a seguir. A importância que cada uma tem na vida da outra ou o fato de elas serem complementares ajuda a criar essa impressão. Os diálogos descontraídos ajudam também a criar essa empatia. A narrativa é em primeira pessoa, contada pela Nat, o que acaba por reforçar isso. Gostei dos diálogo e as descrições acabam sendo bem dinâmicas e não seguram tanto a história. O final é deixado em um cliffhanger, com alguns elementos que a autora pode trazer em futuras histórias sobre estes personagens.
Minha reclamação mesmo vem da inserção de muitos elementos de plot na narrativa. Muita coisa não foi bem explicada simplesmente porque não havia espaço para isso. A impressão que deu é que O Morango de Itaipu era um romance grande que foi transformado em um conto para poder integrar a coletânea. Isso prejudicou não apenas o desenvolvimento coerente da narrativa como a própria escrita que foi prejudicada pelas decisões de edição e corte. No entanto, o conto mostra que a Mayra tem uma boa pegada para histórias leves e divertidas.
9 - "Estrela Cadente"
Autor: Vitor Martins Avaliação:
Se eu puder usar apenas um adjetivo para definir o conto Estrela Cadente é doce. Vitor Martins nos entrega uma história doce e gentil sobre uma alienígena chamada Mikaela cuja missão na Terra é absorver e catalogar emoções humanas. Mika vive disfarçada como uma humana qualquer e trabalha validando ticketes em um cinema ao lado de seu companheiro de trabalho, Adão. Um dia, Mika conhece Manuela, uma menina que lhe passa uma emoção diferente que ela não consegue definir. Aliás, não uma emoção, mas uma mistura de várias diferentes.
Nossa, esse conto transborda gentileza, afetuosidade e carinho. Se somos capazes de sentir as emoções de um autor ao escrever uma história, Vitor Martins transportou seus sentimentos em luzes de neon. A cada parágrafo o leitor era capaz de sentir essa positividade vindo dos personagens e da narrativa. Das nove histórias presentes nessa narrativa, a primeira e a última foram as que tocaram o meu coração, as que me fizeram derramar aquela pequena lágrima no canto do olho. Se tivermos que reduzir a narrativa a uma temática simples é a de Mika conhecendo a si mesma através de Manu. Desde o começo da narrativa vemos que Mika está travada no aspecto pessoal. Ela não sabe o que está fazendo de sua vida, não sabe o motivo de estar fazendo o que está fazendo. Ela captura emoções porque seus pais pediram que ela fizesse; não se tratava de um desejo pessoal dela. Manu desperta em Mika a vontade de seguir em frente, de buscar a si mesma. A protagonista vai amadurecendo com o desenvolvimento da história, fazendo perguntas mais complexas porque seu interior começava a gritar por respostas diferentes.
Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa do ponto de vista da Mika, e o autor emprega construções frasais muito boas. Uma coisa que a gente é capaz de perceber é o quanto a narrativa nunca fica arrastada. Ele alterna bem momentos em que a personagem está mais reflexiva e momentos de diálogo onde ela relaciona com outros personagens. A riqueza da história está também no fato de que não há indivíduos jogados aleatoriamente, mas pessoas com muita importância para tudo o que está acontecendo ao redor de Mika. Sejam os pais, seja Adão ou Manuela. E a rede de relações que tem em Mika o seu núcleo (já que enxergamos a história a partir dela) mostra o que cada um destes personagens significa para nossa protagonista. O autor teve uma boa sensação de início, meio e fim e não ficam pontas soltas. A gente chega a ficar um pouco triste no fim da história, mas era isto e ponto final.
A relação entre Manu e Mika, apesar de curta é muito significativa. Sem apelações, apenas sentimentos entre duas pessoas que precisavam uma da outra em um momento específico de suas existências. Pelo que eu pude acompanhar na história, Manu encontrou o conforto que buscava na Mika, e Mika encontrou em Manu a vontade de seguir adiante. Formar ou não um casal não é o mais importante ali. E isso podemos aplicar para a vida. Determinadas relações podem não ser para todo o sempre, ou ser o final feliz. Algumas pessoas estão de passagem por nossas vidas, mas deixam suas marcas em nossos corações. Somos formados por vários tijolinhos de sentimentos que vão formando uma imensa estrutura que será o grande prédio que representa a nós mesmos. Ou seja, somos formados por todas as nossas experiências pregressas.
Estrela Cadente é uma história linda e está entre as minhas favoritas da coletânea e é uma maneira fantástica de encerrá-la. Com uma forma doce e gentil de nos apresentar uma história, Vitor Martins certamente vai encantar os corações de todos. E uma maneira bem legal de usar a temática do contato entre humanos e alienígenas. Já quero ver mais histórias de ficção científica do autor porque ele tem um tato bem diferente de outros do gênero.
Ficha Técnica:
Nome: Aqui Quem Fala é da Terra Coletânea de contos organizada por André Caniato e Jana Bianchi Editora: Plutão Livros Gênero: Ficção Científica Número de Páginas: 235 Ano de Publicação: 2018
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