De forma sempre irreverente, Saramago propõe reflexões acerca da morte, protagonista absoluta da história, enquanto tece críticas à sociedade e sua hipocrisia em diversas instâncias.
Sinopse
"Não há nada no mundo mais nu que um esqueleto", escreve José Saramago diante da representação tradicional da morte. Só mesmo um grande romancista para desnudar ainda mais a terrível figura. Apesar da fatalidade, a morte também tem seus caprichos. E foi nela que o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel da Literatura buscou o material para seu novo romance, As intermitências da morte. Cansada de ser detestada pela humanidade, a ossuda resolve suspender suas atividades. De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema. Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder "passar desta para melhor". Os empresários do serviço funerário se vêem "brutalmente desprovidos da sua matéria-prima". Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque "sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja". Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna? Ao fim e ao cabo, a própria morte é o personagem principal desta "ainda que certa, inverídica história sobre as intermitências da morte". É o que basta para Saramago, misturando o bom humor e a amargura, tratar da vida e da condição humana.
As Intermitências
Último ganhador do Nobel de literatura da língua portuguesa, Saramago fez história. O pensador e escritor lusitano distribuía críticas ácidas e muito significativas por toda sua obra, criando, assim, vários romances indispensáveis a qualquer leitor amante de histórias inteligentes e desafiadoras. Saramago foi um ícone, uma referência, um mestre da literatura. É sempre um prazer ler e discutir o seu legado.
Em As Intermitências da Morte, o autor explora à fundo a hipocrisia da sociedade. Podemos dividir o livro em três partes, nas quais a morte - com a inicial minúscula mesmo, porque a Morte maior não se ocuparia de meros indivíduos e nem desejamos conhecê-la – é a protagonista, plena em seu papel de ceifadora. Como o próprio título sugere, acompanhamos as suas intermitências, suas pausas. A morte decidiu que ninguém mais morreria naquele determinado país, pois todos eram ingratos e não reconheciam a importância do seu trabalho. Vou falar melhor da evolução da história e sua narrativa.
Em primeiro momento, fala-se sobre a abstenção da morte. Saramago desfila seu tão conhecido humor ácido, verborrágico, cheio de críticas inflamadas, disfarçadas de piadas irônicas. Estas são suas maiores armas para denunciar os males da sociedade. O autor conecta ideias e consequências para a ausência de mortes que vão desde a crise financeira do setor médico e funerário à previdência social, fundos de pensão, atingindo inclusive instituições de base como a família e a Igreja. Notório ateu, Saramago não poupa críticas ao sistema religioso e aos interesses do clero, mas sejamos justos: ninguém escapa às suas palavras. Conforme seguimos a narrativa, Saramago nos apresenta, ainda, a crise, o ponto de ebulição da trama, e um desfecho delicado, bonito, cheio de moral e significado.
“A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.”
As Intermitências da Morte é uma aula de escrita em apenas duzentas páginas. A narrativa é sólida, inteligente e demonstra um nível de domínio e de confiança na manipulação das palavras que é impressionante. Saramago brinca com o leitor, desafia-o. Para quem não está acostumado, a leitura pode ser um pouco assustadora, dados os parágrafos infinitos, à pontuação peculiar, o completo desprezo pela padronização esperada em romances. Não é fácil ler Saramago, é preciso pontuar bem isso. Requer tempo, paciência e reflexão. Além disso, é preciso considerar que, por recomendação da editora responsável pelos interesses do autor, nenhum dos livros de Saramago é traduzido do português de Portugal para o brasileiro; Isto pode causar muita estranheza no começo, mas não é tão difícil se adaptar à linguagem.
Saramago utiliza elementos de realidade fantástica para compor sua trama, incorporando-os ao cotidiano vivido pelos personagens – todos secundários e sem nomes – com naturalidade. O país retratado é uma monarquia fictícia sem identificação, mas a alegoria serve muito bem para qualquer lugar do mundo. O autor não se preocupa muito com ambientação e muito menos com explicações: as coisas são como elas são, e ponto final. Ele brinca e desconstrói a narrativa por diversas vezes, atiçando o leitor a questionar suas distorções da realidade, o que só reflete a irreverência de sua escrita. Esse universo tão genérico, aparentemente, faz o leitor conectar qualquer situação e contexto às críticas presentes no texto.
“As religiões, todas elas, por mais voltas que lhe dermos, não têm outra justificativa para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca.”
Havendo apenas uma personagem definida, ao menos a princípio, é de se imaginar por que eu daria nota máxima também para essa categoria. A morte criada por Saramago é emblemática, nua, plástica. Reflete tudo e nada. É um personagem denso e cheio de camadas, interagindo com a humanidade de forma muito particular. Apenas uma protagonista, mas tão bem construída que tece toda a história em torno de si mesma. O talento de Saramago fica, portanto, para lá de evidente.
Ao tratar da morte, Saramago fala da vida. É um ciclo sem fim, e, mesmo inevitável, nunca queremos pensar que assim se sucederá. Tememos tanto essa entidade poderosa e invisível que, muitas vezes, nos esquecemos de viver. As reflexões do autor são atuais, sempre presentes e muito relevantes, tornando As Intermitências da Morte uma obra de enorme peso na literatura mundial. Ninguém deveria deixar de ler Saramago.
“Se não voltarmos a morrer não temos futuro.”
Ficha Técnica:
Nome: As Intermitências da Morte
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Gênero: Ficção
Número de Páginas: 208
Ano de Publicação: 2005
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*Material enviado em parceria com a editora Companhia das Letras
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