Lennon vive! Em um mundo onde a técnica da ressurreição é acessível a poucos, há um conflito secreto entre alemães e russos pelo domínio da imortalidade como recurso definitivo para o homem. E John Lennon está envolvido no meio de tudo!
Sinopse:
O sonho não acabou. Graças ao famoso Método Frankenstein, um dos maiores artistas do século XX está vivo, e nada melhor que comemorar em grande estilo. A União Soviética é o palco do grande show de John Lennon e Moscou está em festa. Mas é o auge da Guerra Fria entre a Rússia e a República de Weimar num mundo onde a Segunda Guerra Mundial nunca aconteceu. Conspirações, segredos industriais e assassinatos logo envolvem o maior dos Beatles numa complexa trama de espionagem.
Enredos de história alternativa são extremamente sedutores para autores que gostam de brincar com a narrativa histórica. É o sonho de imaginar "e se" de uma maneira que permita a mente vagar por possibilidades infinitas. Este é um gênero que não tem tanto espaço assim no Brasil, mas toda vez que eu me deparo com um livro que se debruça sobre tais possibilidades é uma delícia como historiador ver o quanto a mente de um autor pode ser afiada. Neste romance, Fábio Fernandes brinca não com uma vida mais longa de John Lennon, mas o que aconteceria se a história de Frankenstein, de ressuscitar os mortos a partir de um cadáver, fosse possível. O que mudaria?
Olha, o Fábio Fernandes me colocou em uma missão bem ingrata ao resenhar esse livro. Sabe aquelas leituras em que você termina, mas não sabe o que dizer a respeito? E isso não em um sentido negativo, mas a um nível mais profundo, da compreensão do que move as engrenagens da narrativa ficcional? Pela primeira vez em muito tempo, um autor bagunçou a minha cabeça. E eu tenho certeza que vou acabar sendo injusto em meu texto de alguma forma essencial. Algumas coisas me agradaram demais, outras nem tanto. Posso dizer que o meu ego como historiador foi alimentado a contento pelo autor, mas o meu coração como leitor de ficção científica balançou em alguns momentos. Dentro do nível de análise que eu faço a partir de escrita, personagens e narrativa, todos são interligados de alguma forma. Nesse gênero de história alternativa não dá para pensar escrita sem pensar narrativa. O personagem acaba de certa forma ficando em segundo plano devido à riqueza do cenário.
A escrita do Fábio está on point nesse livro. Precisa, eficiente e mordaz quando precisa ser. É um livro até rápido de ser lido se você se dedicar a ele com afinco (como eu fiz). Em poucas sentadas é possível fechá-lo porque a gente quer saber o que vai acontecer a seguir. Tem muita referência musical no livro e eu recomendo sinceramente que vocês sigam a playlist que o autor colocou lá no final. Ouçam a playlist lendo o livro; é uma experiência bem diferente. Principalmente as músicas aos quais o Fábio inicia alguns capítulos como Nowhere Man. Ah... e outro exercício: leiam a letra traduzida. Ela se liga bastante à narrativa que o autor está apresentando em seu livro. As referências pop presentes ao longo da leitura não incomodam, não são confusas... pelo contrário, fazem parte da trama tecido pelo autor. Eu gostei e mesmo não conhecendo tanto assim dos Beatles (eu sou um fã dos Stones) me agradou positivamente.
Só que o Fábio acabou caindo numa armadilha que acaba afetando autores que escrevem história alternativa. E eu digo isso porque eu sempre quis escrever algo nesses moldes, justamente pela minha formação como historiador social. Montar o cenário e o que aconteceu de diferente nele acaba se tornando algo apaixonante. A gente quer mexer nas pecinhas e ver que ondas elas vão causar em outros acontecimentos históricos. Diga-se de passagem, quem acha que escrever história alternativa é fácil, está redondamente enganado. É preciso pensar em causas e consequências; o que mudou, o que foi implicado, que personagens tiveram uma mudança em seus paradigmas. São tantas variáveis a serem pensadas que dá para o nosso cérebro explodir. Mas, para quem gosta, dá um prazer danado em montar uma linha do tempo com acontecimentos diferentes; como o Fábio faz com a Grande Guerra, com Weimar, ou simplesmente dizendo que Hitler não passou de um pequeno cabo que causou um furdúncio e só isso. Só que acabamos presos em uma descrição detalhada sobre as diferenças entre o nosso mundo e a história alternativa, fazendo com que a narrativa principal acabe sendo colocada para depois. E é um pouco isso o que acontece, já que as grandes reviravoltas planejadas pelo Fábio vão acontecer mais para a metade da narrativa. E isso acabou afetando a minha percepção sobre o personagem (até tenho uma teoria sobre quem é o real protagonista de Back in the USSR).
O protagonista é um John Lennon bem revoltado e estiloso em sua forma de pensar. Por trás de seu jeito desbocado e impulsivo, existe um homem preocupado com a sua segunda (ou terceira... ou quarta) vida. Ele nunca quis isso para si, muito por causa de seus valores. Se tornar uma marionete de uma grande corporação é uma humilhação terrível para ele. E quanto mais o tempo passa na história, mais ele vai perdendo o agenciamento sobre sua própria vida. Quando o leitor se dá conta de o quanto o poder decisório lhe foi retirado, é uma sensação claustrofóbica. Parando para refletir depois, tudo o que Lennon pôde fazer na narrativa foi ficar frustrado e irritado com o que lhe era feito. Sua resposta, que pode parecer estúpida para alguns, é sua única liberdade naquele instante. A segunda metade da narrativa em que Lennon vai passando de mão em mão chega a ser triste e em vários momentos eu desejei mesmo que o personagem fosse libertado de seu sofrimento. No final, ele praticamente pedia às pessoas que lhe dessem um tiro na cabeça.
Só que eu acabei não sentindo empatia pelo personagem. É ruim quando a gente sente indiferença por aquele que move a trama. Nem adorar, nem odiar. Me encantei mais pelo universo criado pelo Fábio do que pelos personagens que habitam a sua história. Isso porque foi dado muito foco ao contexto em si e o dilema de Lennon e de sua situação ficaram para um momento posterior. Quando a narrativa se debruça sobre isso, já é tarde demais para recuperar a minha atenção perdida. Contudo é preciso apontar o quanto a narrativa ganha voltas e mais voltas, e lembra demais uma narrativa de espionagem. Onde ninguém é confiável, nem mesmo aqueles que se dizem seus amigos. Cada vez que Lennon despertava, o mundo lhe parecia mais estranho. Também senti falta dos personagens de apoio, embora Udo Frenzel tenha feito um ótimo contraponto ao desconhecimento do protagonista sobre o que o cercava.
Para mim, o verdadeiro protagonista de Back in the USSR é o método Frankenstein. Ele se torna preponderante e é quem vai fazer a "jornada do herói", se é que podemos usar essa expressão. Vai ser a partir de sua descoberta que os fatos históricos vão ser modificados, criando essa linha alternativa. Fábio Fernandes vai brincar de prestidigitador com os leitores, balançando o personagem de John Lennon por toda a parte para desviar nossa atenção enquanto trabalha mais profundamente na questão do método. Aos poucos vamos observando que a disputa se torna mais ferrenha por quem domina melhor a técnica. Boa parte do debate moral gira no uso ou não do mesmo (e já entro nesse assunto a seguir). Para os fãs de hard scifi, o autor nos brinda com bons conhecimentos sobre genética e envelhecimento. Então vai ter telomerase para cá, morte das células para lá. Claro que vai ter alguma especulação da parte do autor, afinal estamos falando de uma tecnologia fictícia, mas é interessante o quanto ele consegue misturar informações reais com ficção.
Este é um mundo que perdeu sua espiritualidade. sua transcendência. A ciência se tornou a verdade absoluta e solene. E é uma ciência sem ética. Isso é revelado logo de cara com o emprego dos soldados mortos durante a Grande Guerra. Não há um interesse por direitos ou liberdades. Ao invés de dar liberdade, o método a retira. No sentido de que as pessoas não controlam mais os seus destinos, estes ficando a cargo da Ewikgeit ou de outro grupo. Mesmo idealistas como Lennon e Yoko Ono acabam sendo absorvidos nesse mundo de ausências, silêncios e conspirações.
O autor coloca uma questão que vale a pena refletirmos: o que constitui a vida, o corpo ou a mente? Um corpo vivo, mas sem mente ativa é vivo? E uma mente sem um corpo? E onde se encaixa a alma nesse paradigma? Ou ela não existe? É algo que fica nas entrelinhas daquilo que é trabalhado ao longo de toda a trama. Quando Lennon se vê em uma encruzilhada da qual ele não tem mais retorno, e quando o seu agenciamento já não existe mais, ele busca entender o que significa estar vivo. Se pudermos ser até um pouco ousados, é possível dizer que Lennon nunca esteve vivo por toda a história. E até faz sentido uma brincadeira narrativa que Fábio Fernandes faz lá para o final onde ele questiona toda a nossa jornada narrativa ao lado do personagem. Talvez esta passividade do Lennon diante dos fatos (algo que nem é exatamente culpa completa do personagem) tenha me feito não me interessar tanto pelo personagem e focar minha atenção no que o cercava.
Enfim, continuo dizendo que o Fábio bagunçou a minha cabeça. E isso vai acabar interferindo na maneira como eu vou dispor minha avaliação final sobre a obra em si. Porque, dentro do confinamento dos meus métodos de análise, nada faz muito sentido. E isso não é algo negativo. Significa que o autor me impactou com uma obra que foge aos parâmetros de análise. Pior: tenho certeza que pela multiplicidade e subjetividade de interpretações, cada um vai tirar uma experiência diferenciada ao ler. Sendo assim, considero que a experiência do autor foi bem sucedida.
Ficha Técnica:
Nome: Back in the USSR
Autor: Fábio Fernandes
Editora: Patuá
Número de Páginas: 220
Ano de Publicação: 2019
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*Material enviado em parceria com o autor
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