Sean Murphy reimagina o homem-morcego em um universo onde os papéis do Batman e do Coringa acabam invertidos por conta de uma conjuntura de fatos que colocam o nosso herói em seu limite. Surge Jack Napier, o Cavaleiro Branco que deseja salvar Gotham da corrupção.
Sinopse:
A série escrita e desenhada por Sean Murphy, agora reunida numa edição de luxo! Batman: O Cavaleiro Branco acompanha a transformação do Coringa no cidadão comum Jack Napier. Depois de se reconciliar com a parceira de que tanto abusou, a Arlequina, ele coloca em ação uma campanha meticulosamente planejada para derrubar aquele que acredita ser o verdadeiro inimigo de Gotham City: o Batman! (Batman: White Knight 1-8)
É difícil hoje em dia criar histórias do Batman que sejam realmente diferentes daquilo que já foi trabalhado antes. Todo o tipo de narrativa já foi criada: ele já foi aleijado, morto, enfeitiçado, trocou de identidade, quase se casou, trocou de parceiro, teve uma dúzia de parceiros. Para criar algo realmente novo é preciso partir de outras premissas para só então despertar o interesse do público. Principalmente quando é bem difícil que um status do personagem permaneça no cânone principal. A solução que se adota é empregar os Elseworlds, o mundo do faz-de-conta e do "e se". Sean Murphy conseguiu trazer a sua visão do personagem em um universo que é só seu para mexer. E eu garanto aos leitores que mesmo que algumas ideias já tenham sido aproveitadas aqui ou ali, o resultado final é bastante curioso e desperta o interesse de quem se envolve com a história. Muito por causa das escolhas que Murphy faz ao longo das oito edições.
Cavaleiro Branco é uma história que começa em mais um dia comum do Batman perseguindo o Coringa. Mas, o personagem parece no limite de suas emoções e usa de uma violência nunca antes vista contra seus inimigos. Ao entrar em um armazém farmacêutico em que o Coringa está atrás de um medicamento. Após imobilizar o Coringa, Batman o espanca e o faz tomar quase um pote inteiro de comprimidos, deixando o vilão em um estado inconsciente. Esse medicamento acaba mexendo com a psiquê do personagem fazendo ressurgir o homem original antes de se tornar o vilão, Jack Napier. Ele desperta transformado, sem mais ser o Palhaço do Crime. Agora, ele é alguém que luta contra a corrupção de Gotham, que combate aquela que ele considera uma das maiores ameaças à cidade: o vigilantismo do homem-morcego. O Batman precisa lidar com esse novo problema que colocará amigos e inimigos em novas posições e ele precisará de toda a sua astúcia para lidar com esse novo ambiente.
Uma coisa é fato e eu preciso pontuar de cara: a arte do Sean Murphy não me agrada completamente. Lendo Cavaleiro Branco, não consegui tirar da cabeça traços de comparação com Crononautas, outra HQ em que Murphy fez a arte para o roteiro do Mark Millar. Só que para a narrativa que ele coloca ao longo de oito edições, a arte caiu como uma luva. Isso porque o mundo criado por ele é sujo, é cinza, é repleto de contradições. E ele brinca com espaços amplos novamente aqui e nos mostra uma Gotham bem curiosa. Não é aquela Gotham imaginada por Frank Miller ou até pelo Grant Morrison, claustrofóbica e que nos prende em seus tentáculos como um imenso kraken. Nada disso. Sua Gotham consegue ser sombria, mas de uma maneira em que aqueles que habitam a cidade é que fazem isso acontecer. Gosto mais de como Murphy criou a sua própria versão de Gotham, explorando lugares novos como Backport, onde boa parte dos acontecimentos se sucedem.
A reimaginação dos personagens, no sentido artístico, ficou bem legal. O seu Batman é um homem da noite, sombrio como as trevas e para dar uma ênfase nisso ele fez uma opção simples: subiu a gola da capa e reduziu o tamanho das orelhas. Uma mudança estética simples conseguiu dar outro visual ao personagem que bate com o estilo conceitual proposto por ele. Para mim as duas Arlequinas ficaram sensacionais. Falando da mais "conhecida", ela se torna outro personagem mais à frente e seu visual fica aterrador. Não é porque ela coloca um delineador na face que ela fica semelhante ao Coringa, mas é o todo. Seu novo uniforme combina também com a atitude mais nilista. Já a outra Arlequina se torna um personagem tão mais interessante que mesmo o seu visual chama a atenção. Mesmo assim Murphy consegue entregar sorrateiramente as cores preto, branco e vermelho que compõem seu antigo uniforme espalhados pelo design da Harley. Também gostei das opções de enquadramento dele, optando ora pelo formato normal, ora por um estilo em trípticos, com pequenos quadros estilizados que servem como janelas para aquilo que está acontecendo.
Daí vocês me perguntam: a história é interessante só por que ele inventou os papéis de Batman e Coringa? Não. É o todo. Poderia ter sido só isso, mas Murphy foi sagaz na composição narrativa. Temos um Batman diferente, sem ter o Alfred, que está sofrendo de uma doença ao qual Bruce não sabe como curar. Então ele acaba se resignando a deixá-lo em um estado criogênico para preservar seu corpo. A falta da bússola moral do Batman o faz ficar na corda bamba e com um novo adversário chegando, Batman não consegue mudar o seu modus operandi. Seus métodos estão colocando a cidade em risco, e seus inimigos conseguem descobrir que existe toda uma especulação imobiliária clandestina baseada na própria atuação do Batman. Murphy se debruça novamente sobre a teoria de que é o Batman quem cria os supercriminosos. E que talvez eliminando o herói da questão a cidade pudesse ter um pouco de tranquilidade. Ao mesmo tempo são feitas críticas ao vigilantismo do personagem. Por que ele não atua junto do departamento de polícia? Se ele fornecesse seus equipamentos e estratégias, o departamento poderia estar melhor preparado para lidar com bandidos com super poderes. Napier coloca uma questão ótima: "com dez batmóveis será que não poderíamos fazer a diferença?". É apenas um pequeno detalhe em uma questão muito maior.
Se estou falando do Bruce, tenho que falar do Coringa também. A solução parece ser boba, a de medicamentos que colocam o Coringa em xeque, mas as potencialidades são infinitas. Napier se revela ser um oponente terrível e demonstra toda a inteligência do palhaço que era mantida escondida diante de seu gênio cruel. A narrativa se passa em um espaço de um ano e aos poucos vemos o personagem buscando derrubar as muralhas que fazem as pessoas temê-lo porque sabem quem ele é. Mas, com um discurso progressista e buscando realmente ajudar uma parte não apreciada de Gotham, consegue criar toda uma base de pessoas a seu favor. Lógico que todos ficam na ponta dos pés próximo a ele e qualquer risada demoníaca é vista com enorme pavor. Com inteligência e astúcia, Napier procura vencer o Batman em seu próprio jogo. Derrotá-lo aonde dói mais, questionando a sua atuação frente ao crime em Gotham. Claro que não é simplesmente um remédio que vai manter a personalidade do Coringa longe, como veremos o personagem vez ou outra recrudescendo. Ele precisa ficar atento para que esta, que se tornou uma outra personalidade, continue lá no fundo de seu ser.
Mas, para mim, a personagem que brilhou nesta série é a Harley Quinn. Ela conseguiu roubar todo o palco para ela. Antes de mais nada é preciso aplaudir Sean Murphy por ter simplesmente reformulado a personagem. A parceira que estávamos acostumados a ver ao lado do Coringa não era a verdadeira Harley, que havia abandonado o Coringa após anos de vê-lo obcecado pelo Batman. A personagem ama o Coringa e ao vê-lo com uma fixação quase sexual pelo seu nêmesis, que flutua entre o amor e o ódio, decide deixá-lo quando o Coringa espanca Jason Todd até ele ser dado como morto. Para ela, era mais saudável deixar o seu amado. Mas, como médica, ela pesquisa alguma forma farmacológica para ajudá-lo. E consegue finalmente criar uma medicação que atua na psiquê de Napier. A Harley de Murphy é uma mulher sagaz e ativa, capaz de tudo por aquele que ama. Mais do que isso, ela é um par ideal ao novo Napier, fornecendo insights importantes sobre tudo. O roteiro malandramente nos dá uma conclusão que a gente começa a imaginar da metade para frente. Tem um diálogo da Harley com o Batman que é fenomenal em que ela questiona à luz dos acontecimentos recentes, quem está mais dependente do outro, se era o Coringa pelo Batman ou o contrário.
Tenho que falar também sobre os segredos escondidos em Gotham. Falando só sobre o básico como é interessante ver o Sean Murphy usando algo saído do mundo real para explorar na HQ. Oras, por que não criar um esquema de venda de imóveis se baseando na atuação do homem morcego? O empresário compra o terreno a um baixo custo, se dá bem com subsídios do governo para revitalizar o lugar e depois vende pelo dobro ou o triplo do valor alegando algum tipo de projeto social. Um golpe imobiliário perfeito. A maneira como um empresário joga isso na cara do Bruce Wayne em uma festa é de deixar qualquer um de queixo caído. A simplicidade do esquema de corrupção é aterrador. Sem falar na existência de um fundo secreto que visa reconstruir tudo aquilo que o Batman destruiu no enfrentamento aos vilões. Uma espécie de fundo de demolição. Algo que seria feito completamente por baixo dos panos. E que envolveria de forma indireta as empresas Wayne. Na minha opinião a forma como Murphy explora isso é o que fornece outras camadas ao quadrinho. Faz com que ele ultrapasse as limitações das páginas.
Batman - Cavaleiro Branco é uma história alternativa do personagem que tem muito a entregar aos leitores. Tendo agido como autor e sendo responsável pela arte, ele conseguiu casar bem roteiro e arte. Ou seja, a arte faz sentido àquilo que Murphy tinha na cabeça. A HQ consegue entregar uma história emocionante, repleta de idas e vindas e que consegue nos prender até o final. Ele deixa algumas pontas soltas a serem exploradas depois em futuras séries, o que é bem instigante.
Ficha Técnica:
Nome: Batman - Cavaleiro Branco
Autor: Sean Murphy
Colorista: Matt Hollingsworth
Editora: Panini
Tradutor: Mateus Ornellas
Número de Páginas: 248
Ano de Publicação: 2021 (nova edição)
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