Um grupo de heróis é transportado para um outro mundo após um combate contra o AntiDeus. Passados dez anos, esse grupo tenta sobreviver em um lugar do qual eles não podem sair e onde não se sentem em casa.
Sinopse:
Black Hammer é representante nobre da obra de Jeff Lemire, um dos maiores nomes dos quadrinhos atualmente. Eleita a Melhor Série Original de 2017 pelo Eisner Awards, o principal prêmio internacional de quadrinhos, a obra de Jeff Lemire com o artista Dean Ormston e o colorista Dave Stewart explora os percalços na vida de heróis em decadência. No passado, eles salvaram o mundo, mas agora levam vidas medíocres em uma cidade rural fora dos limites do tempo. Não há como fugir, mas Abraham Slam, Menina de Ouro, Coronel Weird, Madame Libélula e Barbalien tentam empregar suas habilidades extraordinárias para se libertar desse incomum purgatório. Obrigados a disfarçar seus poderes, sua natureza e suas origens aos olhos dos habitantes locais, eles personificam uma típica família disfuncional, tentando criar para si uma vida normal. Este primeiro volume, Black Hammer: Origens secretas, reúne os primeiros seis fascículos originais e conta ainda com posfácio do autor, perfis da construção de personagens e esboços originais.
Depois de muito tempo, finalmente li algo do Jeff Lemire. Todos falando que ele tem uma escrita sensacional, que todos devem ler alguma coisa dele algum dia. Então fui com grandes expectativas para ler este trabalho dele. Não me decepcionei. Encontrei uma desconstrução do mito do herói. Uma história intimista sobre pessoas com super poderes. A cada capítulo da narrativa somos envolvidos por aquelas pessoas com seus problemas. Lemire é, sim, um autor que sabe trabalhar com emoções, com os sentimentos das pessoas e com as relações entre elas.
Falando um pouco da edição da Intrínseca, achei-a muito boa. No aspecto estético ela segue o estilo da capa cartonada da Dark Horse mantendo a capa e o melhor: deixando-a limpa para que possamos apreciar a arte do capista. O símbolo da editora está bem discreto, só isso já ganha muitos pontos. O papel é bacana e de boa gramatura, não sendo um daqueles mega luxuosos como o Couché nem nada. Mas, para uma HQ que pretende atender a todos os públicos, a escolha do papel foi ótima sob uma perspectiva de custo e benefício. Ao final tem uns extras bem legais como um texto do Lemire sobre as origens da história e artes conceituais dos personagens.
O roteiro é simples, porém muito eficiente. A partir dessa premissa simples, o autor vai trabalhando individualmente os personagens neste primeiro volume. Cada um dos capítulos daqui se foca em um personagem sem se esquecer do todo. Aliás, se você está procurando uma HQ de super-heróis combatendo ameaças espaciais, saia fora. Não é um quadrinho para você. Lemire nos apresenta um roteiro mais realista apesar dos super poderes estarem ali. É uma menina que não aceita estar presa em um corpo de menina, é um alienígena que lida com sua sexualidade, uma mulher que perdeu aquilo que havia de mais importante em seu coração, um homem tentando resgatar sua sanidade. Ou seja, é uma história com os dois pés fincados no chão. O curioso é que Lemire brinca em alguns capítulos alterando o paradigma de suas histórias. No trecho dedicado ao coronel Weird, temos uma narrativa mais psicodélica onde até o letramento e a quadrinização diferem do resto ou no último capítulo da Madame Libélula onde adota aquela vibe das histórias publicadas na Creepy com doses de terror. O autor não limita o seu enredo e não o descaracteriza: Black Hammer é uma grande homenagem às histórias de super-heróis.
"No começo, eu odiava ser a Menina de Ouro... Estava crescendo e detestava virar criança. Mas lá por 1970, eu não estava ficando mais velha... Estava ficando velha. Quanto mais velha, mais eu gostava de virar a Menina de Ouro. Era como ter encontrado a fonte da juventude. Como era temporário, era ótimo... Mas aqui a palavra mágica não funciona..."
Se Lemire é um dos grandes roteiristas atuais, Dean Ormston é um artista muito renomado com enorme experiência. Tendo passado por HQs como Sandman, Lúcifer e até Judge Dredd, possui uma arte muito versátil que podemos visualizar nesse primeiro volume. Um arista expressivo como ele combina com um roteirista que explora as emoções dos personagens. Algumas cenas criadas pelo artista são lindas como Barbalien e Gail sentados no telhado conversando sobre seus sentimentos ou Abe se lembrando de sua época de ouro. Mesmo quando precisa atender aos experimentalismos de Lemire, Ormston mostra o quanto sua arte é fora do padrão. Ele consegue impor o ritmo dos comics americanos, mas com aquela pegada mais indie. Os cenários também são eficientes para aquilo que se propõe ser. Ele nos coloca diante de uma cidade bucólica do interior dos EUA. Tudo ali respira o sul dos EUA: a pequena Igreja, o bar de Tammy, a fazenda. Porém, quando requisitado ele pode nos entregar cenários completamente estranhos como a metrópole onde os heróis viviam ou a cabana estranha de Libélula.
Os personagens são incríveis. Neste primeiro volume Abe, Gail e Barbalien são os que possuem maior espaço e são os que eu quero comentar neste momento. Abe é o típico herói da Era de Prata. Aquela mescla entre um patriota e um combatente do crime veterano. Neste momento da história, Abe parece ter encontrado o seu refúgio após muito tempo nas ruas. Ele buscava um lugar para si e conseguiu esse espaço na fazenda. Por essa razão, voltar ao seu mundo natal não é uma opção para ele. A paz de espírito que ele conseguiu não é compartilhada pelos seus companheiros. Se podemos falar de alguém deslocado entre deslocados é o Abe. Ao mesmo tempo ele se preocupa com os seus companheiros porque entende o quanto eles sofreram ao perderem seus pontos de referência.
Já Gail está em uma situação diferente de Abe. Estar presa a um corpo de 9 anos tendo 55 deve ser frustrante para ela. O sofrimento é palpável. É a síndrome de Peter Pan só que entendida por uma outra perspectiva. Gail deseja amar, deseja beber, deseja viver. No entanto, sua aparência acaba sendo o parâmetro para como as outras pessoas a enxergam. Ela é o estereótipo de ser julgada pela aparência. Como os heróis exilados precisam fingir ser normais, Gail se vê obrigada a tarefas banais como frequentar a escola, usar roupas de criança e se portar como uma. Tudo isso é enfadonho demais para. As coisas pioram ainda mais quando ela descobre que a pessoa que ela ama e que a entende na verdade ama outra pessoa. A cena que mais parte o nosso coração neste volume é quando ela incentiva o seu amor a perseguir a pessoa que ele ama. Dá para ouvir o barulho de seu coração se partindo.
Se posso falar de algo ousado é o que é feito com Barbalien. Um marciano homossexual. Uau. Lemire surpreende a gente com essa revelação logo no segundo capítulo. O personagem sofre de um duplo preconceito: o de não fazer parte da Terra e o de ser homossexual. Não consigo ser capaz de entender todas as nuances disso. Mesmo me colocar no lugar de alguém que sofre preconceito de gênero já é difícil. No entanto, o autor consegue colocar esse dilema de uma forma tão doce e doída ao mesmo tempo que a gente passa a se importar com o personagem. O dilema de Barbalien nos é colocado de uma forma que o personagem precisa encontrar forças e coragem para voltar a perseguir aquilo que ele deseja. Mesmo que o seu desejo possa colocar de alguma forma seus companheiros em risco.
"Da última vez, contei uma velha história. Esta parábola de dor é bem mais recente... Foi cerca de 100 anos depois que a velha bruxa prometeu que atenderia o pedido da esposa do lavrador e, em vez disso, a deixou com um fardo em forma de cabana. A pobre mulher ainda sonhava em rever o filho perdido. Mas, não foi seu bebê que veio naquela noite. Não. Foi algo muito perigoso."
Black Hammer é uma enorme homenagem ao universo dos super heróis. Lemire consegue com maestria passar por todas as fases dos comics, nos apresentando uma narrativa intimista ao mesmo tempo em que ele desmonta o mito do herói. É como se ele pegasse um relógio de corda e nos expusesse as peças e mostrasse de que maneira essas engrenagens trabalham juntas. Com uma arte eficiente e que trabalha muito bem em equipe com o roteirista, Black Hammer mantém o interesse do leitor do início ao fim.
Ficha Técnica:
Nome: Black Hammer: Origens Secretas Autor: Jeff Lemire Artistas: Dean Ormston e Dave Stewart Série: Black Hammer vol. 1 Editora: Intrínseca Gênero: Fantasia Tradutora: Fernando Scheibe Número de Páginas: 184 Ano de Publicação: 2018
Outros Volumes:
Black Hammer - A Era da Destruição (parte 1)
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