As notícias são graves: a magia está desaparecendo. Para Valdete, isso pouco importa, mas quando ela e outras pessoas que não possuem magia são convocadas para o palácio do imperador Damião, ela se incomoda com o que eles pretendem. E outra: ela já tem coisas demais para se preocupar. Mas, tudo muda quando uma bola quebra a sua janela...
Sinopse:
A magia do mundo está desaparecendo, e o Conselho do Império lança uma profecia: somente uma pessoa idosa e sem magia poderá resolver o descontrole do Imperador em brasa.
A pessoa em questão é Valdete: uma viúva de oitenta e seis anos com quatro filhos, alguns netos e zero paciência para magia ou para o Conselho do Império. Para piorar a situação, o Conselho mandou uma pessoa do passado doloroso de Valdete para convencê-la a cumprir a profecia, e as duas vão precisar resolver sessenta anos de raiva, ranço e rancor para dar cabo de sua missão.
Será que Valdete terá saco para lidar com o Imperador, com o passado e com a profecia... e sobreviver no processo?
Gosto demais quando uma autora emprega a fantasia para contar assuntos bem comuns para nós. Personagens que são tão autênticos que poderiam ser nossos vizinhos. Muitas vezes nos esquecemos que a fantasia também serve para tecer críticas bem atuais. Acabamos deixando isso demais nas mãos da ficção científica. Mas, desde homens como Garcia Marquez e Samarago que percebemos a potência do fazer fantástico da América Latina. Seja explorando uma extensa família ao longo de várias gerações que tinham uma certa afinidade com milagres saídos da fantasia ou de uma cidade onde a morte tirou férias. Mas, calma! Não estou dizendo que este romance é uma narrativa de realismo mágico. Não acho isso, mas que ela flerta, flerta. Enfim, não conhecia Coral Daia e quero compartilhar com vocês um pouco das minhas impressões deste delicioso livro. Mas, antes... deixa eu pegar minha xícara de café que está passadinha.
Valdete é uma mulher de muitos talentos. Passar café, ser independente, cuidar dos filhos. Mas, magia certamente não é com ela. Seus filhos até possuem tais dons que, na visão dela, acabam tornando as pessoas preguiçosas. E por falar em filhos, ela tem vários deles. Alguns deles bem-sucedidos e trabalhando para o império, outro tentando tocar suas vidas enquanto um deles luta para ser aceito por quem é: alguém que ama seu namorado e espera que a sociedade o respeito. Valdete foi casada por muitos anos com Osmar, com quem teve seus quatro filhos. Mas, no passado, ela amou muito Cida, sua melhor amiga que a abandonou no dia de seu casamento arranjado, algo que deixou marcas em seu coração. Agora, com oitenta e seis anos, ela já não pensa muito nos anos que virão. Só que o mundo tem o dom de dar voltas. A magia parece estar desaparecendo do mundo e o imperador está tendo acessos de fúria, queimando a todos com seu poder vulcânico. Aqueles que não possuem magia estão sendo chamados para tentar apaziguar sua ira. E Valdete está em uma destas listas de convocação. Só que ela não tem paciência para essas bobagens imperiais. Até que Cida bate em sua porta...
Essa foi a primeira vez que tive contato com algo escrito pela Coral Daia e fiquei modestamente impressionado. Ela possui uma escrita bastante segura e conduz o leitor ao longo das páginas da história, apresentando personagens e situações as mais diversas. O cenário quase sempre é a casa de Valdete, embora mais para o final tenhamos uma mudança rápida de cenário. A gente acaba se acostumando e se aconchegando naquele pequeno espaço onde toda uma vida se desenrolou e ainda se desenrola diante de nós. Uma narrativa contada em terceira pessoa e com personagens bastante autênticos. Talvez essa seja a característica mais marcante de sua história. Os personagens são bastante tridimensionais, apesar de que eu gostaria que a autora tivesse dado um pouco mais de profundidade aos irmãos. Alguns deles mal aparecem na história e daria para trabalhar algumas boas situações com eles, principalmente por sua diferença de pensamento em relação aos dois que mais aparecem. A ideia de levar a história para um mundo mágico funciona mais como uma alegoria para que a autora possa brincar com as fundações da realidade. Novamente, não consigo encaixar essa história no realismo mágico, mas dá para traçarmos várias similaridades com as situações apresentadas em Como Água para Chocolate, da autora Laura Esquivel.
Esse é um romance que debate a percepção da sociedade sobre a população LGBT. E a questão é tratada a partir de uma perspectiva de passado e presente. Primeiro vamos falar de passado e é claro que ser homossexual em tempos passados era bem complicado porque isso era vista como uma doença ou como um desvio de caráter. Ainda hoje é em alguns locais. Na história, a autora trata o tema com elegância mostrando o quanto a vida de Valdete acabou tomando outros rumos porque as famílias mais conservadoras queriam evitar a perda de status, as fofocas, as humilhações que vinham. O ostracismo básico de quando se descobre algo horrendo para a mente dessas pessoas. E isso acontece a Valdete; fatos que ela só vai entender mais tarde. No presente vivido pela personagem, a sociedade parece ter se tornado mais aberta, mas a percepção cotidiana continua sendo outra. São os comentários ruins pelas costas, é o desprezo até mesmo entre os seus. Considero incrível Valdete ter se tornado a pessoa que é, tão sábia e aberta, diante do ambiente que teve. Vale destacar que mesmo Valdete mantém leves preconceitos, porque ela teme a visão dos outros sobre ela. E queria chegar nesse ponto porque a visão externa se torna uma prisão, mesmo em nossa sociedade. O medo de ser julgado. Convivendo com adolescentes nas salas de aula da vida, me deparo inúmeras vezes com esse tipo de situação. Alguém que sofre porque deseja assumir seu amor, mas teme que seja abandonado ou se torne motivo de chacota ou agressões.
A luta de Valdete é para apaziguar seu coração. Até porque algumas dores são tão marcantes que mesmo décadas mais tarde elas ainda estão ali, cutucando quando menos esperamos. É curioso pensar que Damião e Valdete possuem problemas quase similares: a visão que o outro tem sobre mim. É a responsabilidade que imagino ter e que se transforma de algo positivo em uma obrigação cruel. Em grilhões que nos colocam para baixo e esfacelam nossos espíritos. Damião entende a si mesmo como infalível e todo-poderoso, mas sabe que seu poder é falho e que não é mais possível resolver tudo. Mostrar sua vulnerabilidade é perder aquilo que lhe é essencial. Valdete passa por algo semelhante ao se imaginar como uma mãe idosa e que suas batalhas já terminaram. Voltar com Cida é buscar para si um alvo que a faria ser julgada até por seus filhos. Só que se privar da felicidade é algo tão duro que nossos não corações conseguem aguentar antes de gritarem. E é esse grito que veremos saindo do desespero de Valdete ou das explosões de chamas de Damião.
Dou meus parabéns para a autora por explorar tão bem a terceira idade. Que pessoas mais velhas podem sim, iniciar uma nova trajetória na vida. Podem amar, se apaixonar, viver. Nos últimos tempos esse se tornou tema de algumas boas histórias como Suzette, de Fabien Toulmé e Sessenta Primaveras no Inverno, da Aimee de Jongh. Isso porque alguém que atinge essa faixa de idade não deixa de existir. Podemos sim fazer escolhas ousadas, amar. E isso é o que prende Valdete até o momento em que ela percebe que precisa ser feliz. E que a magia é algo tão secundário que as pessoas podem e devem aprender a se virar sem elas. Mas, este é outro tema na história e lhe convido a explorar esse bom romance publicado pela Editora Dame Blanche.
Ficha Técnica:
Nome: Café Passado e outros Dotes de Valdete
Autora: Coral Daia
Editora: Dame Blanche
Número de Páginas: 103
Ano de Publicação: 2023
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*Material recebido em parceria com a Editora Dame Blanche
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