A cidade de Alto Oeste foi o lar de Kênia por muitos anos. Um lugar distante e afastado que guarda memórias ruins para ela. Mas, a cidade afundou em um fenômeno natural estranho e depois de muitos anos ela submerge. E com esse retorno, Kênia, agora uma fotógrafa, e seu parceiro Facundo vão fazer um registro da vida dos moradores da cidade.
Sinopse:
Da mesma autora de “As águas vivas não sabem de si”. Alto do Oeste é uma cidade no meio do Cerrado, que, no início desse século, afundou inexplicavelmente dentro de um lago. Apesar de insólita, essa submersão foi acontecendo de forma lenta e gradual, de modo que também foi aos poucos que seus habitantes foram “expulsos” pelo avançar das águas e obrigados a abandonar à cidade. Anos depois, uma seca extrema no cerrado voltou a revelar Alto do Oeste, e todos os resquícios da vida das pessoas daquele lugar antes da inundação vieram à tona novamente, como se fossilizados pelo barro que agora encobre todas as coisas. Ao saber da notícia, Kênia Lopes, uma antiga moradora da cidade, decidiu que precisava fotografar as ruínas, como se em busca da resposta para uma questão jamais respondida: o que faziam os moradores enquanto aquele pequeno apocalipse se aproximava?
O quanto somos moldados pelos lugares em que vivemos? O tempo e as memórias de um lugar esquecido no meio do cerrado brasileiro, uma cidade que afundou misteriosamente e depois ressurgiu do mesmo jeito. Esta é a história de Alto Oeste, um lugar que, para a fotógrafa Kênia, marca memórias de uma infância e juventude que ela desejaria esquecer. Tendo ido ao lado de seu companheiro documentarista Facundo à recém-redescoberta cidade, ela se vê obrigada a enfrentar algumas de suas feridas do passado. Momentos de dor e angústia de uma cidade que foi desaparecendo pouco a pouco, sem ninguém se dar conta até ser tarde demais. Nos dias de escola passados há muito tempo, um diário esquecido trará à tona uma amizade destruída pela falta de expectativas do presente, por uma sensação de abandono e solidão diante de uma cidade pequena em todos os sentidos da palavra. Através de entrevistas e relatos dos antigos moradores que voltaram para a cidade, encontraremos um mosaico de histórias que nos ajudará a montar o que aconteceu antes de uma cidade ser engolida pelas águas.
Esse é o segundo romance que leio da Aline Valek e este é bem diferente do primeiro. Se o primeiro transbordava ficção científica pelos poros, esse está mais para o lado do realismo mágico, bem na verve de um Garcia Marquez. Não há necessidade de explicar por que a cidade afundou até porque a história não é sobre isso. O leitor vai se deparar com algumas coisas inexplicáveis, mas que nos ajudam a entender as histórias daqueles que passaram por Alto Oeste. O próprio tempo é um pouco maleável aqui e a narrativa não segue necessariamente uma ordem cronológica de compreensão. E está tudo bem porque o leitor vai compreender tudo sem nenhum problema. As divisões temporais são localizáveis sem stress e esse esquema de ir e voltar no tempo nos fornece as informações que precisamos. Fico em dúvida se essa é uma história de Alto Oeste e aqueles que viveram nela ou se é de Kênia e sua necessidade de resolver assuntos deixados para trás. A gente pode argumentar dos dois lados e essa é uma discussão bem saudável. Há argumentos para as duas abordagens.
"Todo mundo que voltou deixou alguma coisa aqui. É por isso que se volta. Para buscar."
No geral, a escrita da Aline Valek é em terceira pessoa dependendo de quem é o narrador daquele capítulo específico. Isso porque existem os capítulos narrados por Tainara em seus registros de diário. Estes são em primeira pessoa. Há também alguns capítulos sendo feitos com recortes de jornal. Então, há uma variedade legal de formas de apresentar a história que tiram o leitor do lugar comum. Temos três personagens que são principais, no sentido de aparecerem mais vezes, e uma quarta que aparece na segunda parte da narrativa. A autora escolheu escrever a história usando capítulos bem pequenos, como se fossem fragmentos de memória que podem ser juntados para formar a narrativa principal. Isso torna a leitura bastante rápida e fluida. O leitor pode ficar tranquilo porque a escrita é leve, não há estruturas complicadas, nem nada, sendo fácil se situar na história. Cidades Afundam em Dias Normais é uma história sobre pessoas que vivem em uma cidade pequena no meio do nada. É esse tipo de narrativa mais intimista, ao qual vamos nos apegar aos personagens e suas vivências. Por essa razão, não há necessidade de empregar jargões ou formas mais complexas de compor narrativa. Bastava que o leitor se importasse com aquelas histórias. E nesse sentido a autora foi muito feliz.
Quando Paul Ricoeur, em seu livro Tempo e Narrativa, fala sobre o papel do historiador ele menciona a necessidade da rememoração. Na sua visão, a história é uma visão do presente acerca dos acontecimentos do passado. Ao nos recordarmos sobre os acontecimentos que já se sucederam, usamos nossa experiência atual para buscar um sentido naquilo que já se passou. A história não é construída por historiadores, mas por pessoas; cabe a estes apenas transmiti-las às gerações futuras. Na narrativa de Valek temos vestígios históricos, materiais e humanos, que são encontrados por Kênia e Facundo. As pessoas que dão seus depoimentos procuram buscar pela memória fragmentos de suas vidas passadas. Mas, estes fragmentos nada mais são do que momentos que foram marcantes ou fatos que foram mal resolvidos e que deixaram algum tipo de feridas que não cicatrizaram completamente. As narrativas dessas pessoas relatam diferentes visões sobre acontecimentos, se confrontam e se chocam para buscar nos mostrar uma aparente visão do todo. Tem uma fala da Érica quase no final da história que diz que as memórias pertencem ao futuro e só contamos histórias pensando para frente. E é um pouco isso o que é transmitido nessa narrativa. Cada pessoa é uma casa em permanente construção. As experiências vividas são como pequenos tijolos empilhados um após o outro. Às vezes um trecho da obra pode ficar mais frágil porque os tijolos não foram postos adequadamente e até desmoronar enquanto outros serão sólidos. Cada acontecimento é importante de alguma forma para moldar quem somos.
"Ela se sentia em casa ali, do mesmo jeito que eu me sentia à vontade na casa dela. [...] Ou talvez a gente se sentisse em casa uma com a outra."
A vida de Kênia foi difícil assim como a de muitos dos personagens da narrativa. Mas ela nunca se imaginou como parte daquela cidade. Sua solidão vinha do fato de ela não desejar permanecer naquele ambiente. Por mais que ela tentasse se ajustar ao cenário, sempre havia alguma coisa que a tirava do rumo. Fosse sua amizade com Tainara que significou ter alguém a quem se apegar ou seu breve romance que serviu mais para suprir uma carência do que ser um sentimento romântico por outra pessoa. Ao observar a cidade desaparecendo lentamente, havia uma espécie de desejo não dito em voz alta de ver tudo aquilo ser tragado pela terra e ela ter uma nova oportunidade de reiniciar sua vida em outro lugar. Mas, faltava à personagem a coragem de tomar sua decisão de uma vez por todas. Nada ali a prendia de fato àquela realidade, nem sua amizade.
Por outro lado Tainara representava a permanência. Alguém que nasceu e se desenvolveu naquele lugar. Se Kênia era uma pessoa mais ativa e em busca de sua identidade, Tainara era mais observadora. Aquelas vidas em movimento a deixavam curiosa. Ela não era a garota mais popular da escola, e sim apenas uma menina estudiosa e sincera consigo mesma a respeito do que ela queria para si. Vale imaginar que sua amizade com Kênia surge de uma necessidade mútua de se encontrar uma na outra. As duas se complementavam porque tinham visões diferentes de mundo. Ao mesmo tempo ambas se colocavam no chão para poderem seguir juntas adiante. Somente quando seus sentimentos passaram a se chocar é que a comunicação errada e as ausências prejudicaram seus corações. Nenhuma delas foi responsável de forma direta pela tristeza da outra. Foi apenas o tempo e a vida que seguiram seu curso, com seus obstáculos e desafios a serem superados. O afundar da cidade significou para Tainara uma dor no coração porque ela via seu mundo ser destruído. Quando ela teve a oportunidade de deixar Alto Oeste, não queria fazê-lo, não porque ela não quisesse deixar sua avó para trás, mas porque aquele lugar representava tanto para ela. Se Kênia desejar deixar a cidade o mais rápido possível, Tainara deseja permanecer e ser mais um tijolo na história daquela cidade.
"A gente sempre se acostuma, depois de um tempo. Se acostuma com o caminho até o colégio, com os programas da TV, com a cidade sumindo, com os blecautes, com apanhar sem nenhuma explicação. Isso me assusta um pouco. Se acostumar é não conseguir mais diferenciar as tragédias dos dias normais."
Essa é uma história de perdas e tristezas sim, mas é a vida das pessoas. Nem sempre nossas existências são marcadas por bem aventuranças e sucessos. Pensar para trás, rememorar doces amarguras serve também para confrontarmos os fantasmas de nossos corações. Através de seu documentário, Kênia e Facundo fazem com que os personagens juntem os pedaços da cidade que foram deixados para trás em um passado não tão distante. Isso não significa que a maquete que eles montarem será a mesma cidade que existiu outrora. Só que para estas pessoas, inclusive para Kênia, essa é uma maneira de conseguir tocar a vida adiante, colocar alguns demônios para descansar e conseguir se aceitar como fruto dessas experiências. Afinal, como diz Ricoeur, estudar o passado é também compreender a condição humana.
Ficha Técnica:
Nome: Cidades Afundam em Dias Normais
Autora: Aline Valek
Editora: Rocco
Número de Páginas: 256
Ano de Publicação: 2020
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