Em uma terra que está em seu alvorecer, o conhecimento se tornou algo caro. As histórias giram em torno de feiticeiros que buscam mais poder, príncipes conhecimento e pessoas de si mesmas. Um clássico que finalmente chega ao Brasil.
Sinopse:
Contos de Dying Earth O livro, uma coletânea de contos, é o primeiro da Série Dying Earth e figura entre os 33 melhores livros de ficção pela Locus. Seu autor, John Holbrook “Jack” Vance (1916-2013), vencedor de 3 prêmios Hugo, 1 Nebula e muitos outros, inspirou inúmeros autores. Entre os nomes inspirados por Vance estão George R. R. Martin e, principalmente, Gary Gygax, o pai do RPG mais famoso de todos os tempos: Dungeons & Dragons. Em Contos de Dying Earth somos levados para um futuro distante, sob a constante ameaça do nosso sol extinguir-se e, após o estranho desaparecimento da lua, a humanidade vive em profundo niilismo esperando pelo apocalipse iminente. A Terra está morrendo. As grandes civilizações ao redor do globo não existem mais e, com isso, criaturas estranhas espreitam os ermos. Nesse cenário de decadência e desolação, magia e tecnologia se misturam e são usadas por pessoas que não as compreendem de verdade. A versão nacional de Dying Earth ainda conta com um acabamento em alta qualidade. Da impressão em papel pólen ao verniz localizado na capa com arte exclusiva do talentoso Bruno Prosaiko, essa edição é perfeita para fãs antigos e novos de um dos maiores mestres da fantasia.
Já tinha ouvido falar de Jack Vance, mas admito que meu contato com as obras do autor era nulo. Apenas algumas obras do autor se encontram em português na velha coleção Argonauta. A New Order traz para os leitores a série mais famosa do autor que serviu de inspiração para que Gary Gygax criasse a primeira versão do Dungeons & Dragons. Mas, se vocês acham que vão se deparar com uma obra meio ultrapassada, de outra época e com uma linguagem empolada... revejam seus conceitos. Fiquei muito surpreso com o que li e não deixa nada a desejar a nenhuma das obras mais recentes de fantasia. Tenho certeza que o leitor vai ser pego no contrapé porque a minha expectativa ao pegar o livro era uma obra tradicional de fantasia, bem ao estilo Senhor dos Anéis com heróis lutando contra criaturas malignas, princesas em perigo e coisas do gênero. Vance já quebra qualquer expectativa na primeira história com um feiticeiro absolutamente abominável chamado Mazirian. Vi várias resenhas destacando o ar rpgístico do livro, mas queria me concentrar no lado humano das histórias apresentadas por Vance.
Antes de compartilhar minhas impressões sobre o livro, queria dar um puxão de orelhas na New Order. "Contos de Dying Earth"? Sério? Por que não Contos de uma terra moribunda? Dying Earth não é um nome próprio; sequer é uma expressão largamente conhecida. Não havia motivo para uma tradução tão estranha como essa. Parece até Os Avengers... ou Os Quatro Fantastics. Entendo que deve ter ido uma série de discussões sobre como traduzir melhor o título, sem perder aquela coisa de chamar o leitor para comprar, mas às vezes o simples é melhor. Achei o livro muito bem traduzido, a edição está o fino do trato, com um bom papel, letras bem espaçadas. O tratamento editorial está de primeira. Pouquíssimos erros de revisão. Mas, o título eu vou implicar.
Bem, falando do livro, é bem complicado fazer uma sinopse da obra. Até porque são histórias curtas que se passam no mesmo mundo, mas com personagens bem diferentes. Há alguma conexão entre elas, mas tal é feita de maneira bem sutil. A edição da New Order corresponde ao primeiro livro da série chamado Mazirian, o Feiticeiro. Além do conto que dá título ao livro, temos outras cinco histórias. O que me parece é que a New Order se planejou para publicar a série em quatro volumes sendo o primeiro este que vou falar hoje, além de "Cudgel, the Cleaver", "Cudgel: The Skybreak Spatterlight", e "Rhialto, the Marvellous". Poderia-se até pegar os dois livros de Cudgel e colocar em um só, como acontece em algumas edições com o nome de The Cudgel Saga. Mas, bem, essas são as edições.
"T'sais assistia sem entender. Os três eram igualmente vis, com sangue gosmento, massa vermelha, imundície íntima. Liane parecia um pouco menos ignóbil, ele era mais ágil e mais elegante. E T'sais observou com pouco interesse."
Em um âmbito geral, a escrita do Vance é acima da média. Ele tem uma clareza na maneira como ele encadeia as orações e equilibra um mundo estranho com uma compreensão simples das coisas. Estamos em um mundo fantástico de feiticeiros, fadas e outros seres maravilhosos, mas o leitor não se sente perdido em nenhum momento. A física do mundo é explicada de uma maneira bem clara. Até a maneira como os feiticeiros fazem para usar seus poderes possui uma lógica interna. A narrativa é em terceira pessoa onisciente, bem ao estilo mais tradicional com o leitor entendendo tudo o que está acontecendo. Predomina o estilo descritivo com Vance frequentemente apresentando o ambiente e o que acontece ao seu redor para o leitor. Aqueles que jogam D&D vão perceber a semelhança de alguns feitiços tradicionais dos livros nas histórias como os Mísseis Mágicos, o Cone de Luz ou a Esfera de Fogo. Mas, as semelhanças param por aí. É um mundo em franca decadência com o sol perdendo seu brilho e a magia que rareou nos reinos. Deter conhecimento mágico é um privilégio de poucos que quase entram em guerra uns com os outros pela posse de pergaminhos mágicos. Fiquei surpreso com o rumo que algumas histórias tomavam porque não há previsibilidade alguma na escrita de Vance. Às vezes imaginamos que um personagem vai fazer X e ele toma o caminho inverso. Mesmo sendo narrativas curtas, as histórias tem um bom tamanho com exceção da de Guyal de Sfere que poderia ser um pouco menor.
A narrativa nem sempre segue personagens virtuosos. Estamos diante de um mundo perigoso onde aventureiros e feiticeiros disputam espaço. Monstros espreitam na floresta e nem sempre seguem uma lógica racional. Por exemplo, a primeira história tem como protagonista o feiticeiro Mazirian. Dono de poderes fantásticos, ele realiza experimentos em seus prisioneiros divertindo-se com seu sofrimento. Em seu belo jardim, ele busca aperfeiçoar suas artes e pensa em como destruir os seus rivais. Mas, ele começa a ficar obcecado por uma bela mulher que se esquiva de suas garras. Nos dias que se seguem, ele planeja capturar para si e aproveitar todos os sabores dessa fruta que, por ora, lhe é proibida. Mazirian é uma criatura mesquinha e desprezível e a narrativa é uma história de perseguição. A jovem consegue se esquivar de todas as maneiras possíveis do alcance do feiticeiro que fica mais e mais frustrado a cada momento. A perseguição deixa de ser algo prazeroso e se torna uma questão de orgulho, de Mazirian dominando alguém mais fraco.
No segundo conto conhecemos Turjan, um feiticeiro que compartilha com Mazirian o gosto pelos experimentos com seres vivos. Mas, seu maior experimento é também o seu maior fracasso. Isso porque lhe faltam os conhecimentos arcanos capazes de dar vida a um ser triste e defeituoso. Ele então passa a buscar o auxílio de alguém que tenha ainda os livros ancestrais, magias antigas de antes do mundo decair. Lhe é aconselhado procurar Pandelume, um sábio que diz possuir conhecimentos além dos possuídos pela maioria dos feiticeiros. Ao se deparar com o tal ser, Turjan terá acesso ao que deseja, mas primeiro precisa realizar uma tarefa para Pandelume. A narrativa brinca com esse espírito de aventura ao mesmo tempo em que começa a entrar no campo do que fazemos com o conhecimento que adquirimos (algo que ele retoma lá na narrativa de Guyal). É bastante curioso que diante do dilema vivido por Pandelume, Turjan busca uma saída doce e gentil. Algo que terá uma conexão com o primeiro conto.
"Mazirian arrancou uma rosa do arbusto, aturdido, e avançou em direção a ela, lutando contra o ímpeto das Botas Animadas. Ele havia completado quatro passos, quando a mulher cravou os joelhos nas costelas da montaria e afundou pelas árvores."
É no terceiro conto que chegamos ao ponto mais alto desse livro. T'sain é um experimento feito por Pandelume. Durante sua execução, ele cometeu um erro mortal e a mulher sai com um defeito: ela não consegue ver nenhuma beleza no mundo. Tudo que é belo, é horrível a seus olhos e precisa ser destruído a qualquer preço. Depois do contato que ela teve com Turjan, T'sain deseja ir ao mundo ver se consegue encontrar a beleza em algum lugar. Depois de quase ser morta por um grupo de bandoleiros, ela segue para a casa de Etarr, uma criatura horrenda que vive nos pântanos. É sensacional a narrativa desse conto porque Vance coloca alguém incapaz de ver beleza ao lado de uma criatura que foi amaldiçoada por uma bruxa. O autor vai discutir aquilo que se encontra no fundo de nossos corações. Nem sempre a beleza está em um belo jardim florido, mas pode ser encontrado em um pântano lamacento. A busca de T'sain é também uma busca por ela mesma e qual é o seu papel no mundo.
O quarto conto é uma história de humildade. Nos deparamos com Liane, o Andarilho conhecido por ser um aventureiro gracioso e corajoso. Em uma de suas andanças ele conhece a bela Lith, uma feiticeira a quem ele ficou encantado. Ele deseja a todo custo possuí-la e ela diz que apenas aqueles que a servem podem fazer dela o que bem quiserem. Basta realizarem um pequeno serviço. Ela pede a Liane que vá atrás de Chun, o Inevitável. Ninguém nunca conseguiu derrotar essa criatura e se ele conseguir um pedaço do mapa que está atrás do lar de Chun, ela fará o que ele quiser. Mesmo com todos os avisos daqueles que vivem perto do lar da criatura, Liane segue em seu trajeto. Aqui conseguimos ver o quanto Vance nos mostra personagens falhos em cujas histórias estes são colocados em seus devidos lugares por alguma circunstância específica. O leitor torce para o fracasso de Liane dado o seu temperamento fanfarrão e presunçoso. A graça é ver se isso vai ou não acontecer.
O penúltimo conto chama-se Ulan Dhor termina um sonho e vai lidar com o nosso conceito de realidade. Na narrativa o príncipe Kandive envia seu sobrinho Ulan Dhor em busca de uma tabuleta que se encontra em um lugar distante. Ao chegar até lá, Ulan descobre que a tabuleta foi dividida em duas partes e se encontra com dois grupos de indivíduos que se odeiam. Só que um não consegue enxergar o outro. De um lado está um grupo de sobreviventes da antiga cidade que moram em suas ruínas e temem os demônios chamados Gauns que só atacam à noite. Do outro estão os Cinzas que acreditam que os Gauns mataram todos os homens que existem na Terra exceto eles. A percepção de realidade que temos é testada porque logo Ulan Dhor percebe que alguma coisa está errada. E a necessidade das pessoas viverem em um conflito do qual elas sequer se lembram do motivo pelo qual fora iniciada. A maneira como Vance vai nos guiando através de uma série de mistérios que parecem não fazer sentido em um primeiro momento, mas que depois as peças vão se juntando e montando algo maior, é o que nos mantém presos na narrativa.
"O interior era como o do outro carro, um banco longo revestido, um globo montado sobre uma haste, diversos interruptores. O tecido do banco rangia devido à antiguidade, conforme Ulan Dhor o pressionava com a mão, e o ar acumulado tinha um cheiro de coisa guardada. Ele entrou, e Elai o seguiu."
Já a última narrativa é a que menos gostei porque senti que Vance acabou engordando-a demais. Guyal é um jovem com um incrível apetite por conhecimento. Ele deseja mais e mais até que se torna um estorvo para o reino. Ele sai em busca de um lugar distante que parece possuir livros e pergaminhos sobre períodos desconhecidos. Aqui neste último conto, Vance parece querer fazer uma construção de mundo ao mesmo tempo em que coloca o protagonista da história em uma busca desenfreada que o leva até um local onde parece haver dispositivos de alta tecnologia. Esse conto me fez pensar na série Shannara do Terry Brooks em que ele mescla fantasia com algumas pitadas de ficção científica muito localizadas. Quando li a sinopse de Dying Earth imaginei que se tratava de uma terra pós-apocalíptica e esse conto reforça essa ideia que eu tinha. Com esse conto finalizo esta matéria e deixo aqui para os leitores compartilharem um pouco de suas leituras, caso tenham lido o livro. Quero ler mais dessa série e torço para que a New Order traga mais para os brasileiros. Contudo, se não trouxer, já separei aqui na minha lista de desejos o ebook com o omnibus em inglês do Vance. Esse final me deixou muito curioso.
Ficha Técnica:
Nome: Contos de Dying Earth vol. 1
Autor: Jack Vance
Editora: New Order
Tradução: Gabriela Camargo
Número de Páginas: 230
Ano de Publicação: 2023
Link de compra:
Cara, gosto muito de fantasia! Valeu pela dica.