Uma aldeia é atacada pela manada liderada pelo cruel Ajantala. Os sobreviventes vão até a cidade mãe pedir ajuda a Xangô, o deus do trovão. Sabendo do próximo ataque dos ajoguns à cidade das águas, eles partem até lá para proteger Oxum e seus subordinados.
Sinopse:
Em um tempo antigo, quando céu e terra estavam unidos como duas metades de uma cabaça, deuses e heróis caminharam entre os homens. Travaram batalhas com furor, ensinaram a curar e lidar com a terra, o ferro e o fogo, reinaram e amaram com a mesma intensidade. Alguns desceram do luminoso Orum para realizar seus destinos, enquanto outros nasceram no Aiyê e pelos grandes feitos se tornaram ORIXÁS...marcando para sempre a história de dois continentes! -- Graphic Novel com 120 páginas,com história e material extra, formato americano (17 x 26 cm) acabamento especial em papel couchê colorido de alta gramatura e capa cartonada verniz com lombada quadrada.
Há uma enorme necessidade de criação de histórias baseadas em outras culturas que não a europeia ou a americana. Se formos parar para pensar pouco conhecemos as lendas dos vários povos existentes no continente africano ou sequer os mitos indígenas no Brasil. Hugo Canuto se propôs a divulgar histórias tendo orixás como personagens e conseguiu um resultado bem curioso. Adotando uma abordagem claramente inspirada nos trabalhos de Jack Kirby na Marvel, ele nos coloca diante de figuras como Xangô, Ogum, Exu, Oyá. O que temos é uma aventura surpreendente onde heroísmo e bravura se mesclam a poderes especiais.
A narrativa segue Xangô e sua esposa Oyá quando eles decidem ajudar um grupo de aldeões de uma vila que foi atacada pelas forças de Ajantala, chamados de a manada. Eles tomam a vila e seus habitantes e os colocam sob seus poderes místicos, fazendo-os lutar a seu comando. O objetivo de Ajantala é dominar a cidade das águas, uma linda cidade secreta governada por Oxum, a senhora das Águas. Xangô vai precisar de toda a sua coragem para derrotar os ajogun, os inimigos da humanidade. Mas, com os poderes de Oyá, Exu e do valente Ogum possivelmente eles terão uma chance de vencê-los.
Com uma proposta bem simples, o roteiro de Hugo Canuto busca adaptar uma história iorubá em um formato mais próximo ao dos super-heróis da atualidade. Mesmo colocando a ação em um cenário idílico, Canuto consegue tornar lendas até bem complexas, em narrativas mais palatáveis a um outro tipo de público. Com isso, a história ganha agilidade e os orixás, apesar de terem poderes divinos, são seres de carne e osso. Possuem sentimentos, dúvidas, valentia. Trata-se de um roteiro inspirado nas narrativas da Marvel e da DC dos anos 70 e 80. Apesar de a arte ser bem no estilo Kirby (e eu já toco nesse ponto a seguir), o roteiro me lembrou mais a fase do Thor sob a batuta do Walt Simonson. Deuses com características mais humanas, aventuras que exploram esse lado mais heroico enquanto que os problemas são bem simples.
Para quem é fã (como eu) do Kirby, a arte do Canuto é linda. Colorida, inspirada nas vestimentas africanas, mas com todos aqueles exageros típicos de personagens da Marvel, tudo caiu muito bem aqui. As cenas criadas pelo autor tem profundidade e detalhamento, o que é de encher os olhos. Tem uma cena aberta da cidade das águas que eu fiquei uns dois minutos absorvendo cada ponta do ambiente, cada detalhe aquático, cada dourado presente ali. Mesmo quando ele está contando uma narrativa mítica (como no início) tudo parece grandioso. O design de personagens também está preciso e cuidadoso. A gente vê que foram empregados modelos diferentes para cada personagem e eles são bem inspirados em outros super-heróis. Em alguns momentos, as expressões de Xangô me lembram a de um jovem Thor, ou Oyá que possui um físico parecido com o da Tempestade. A quadrinização segue bastante os clássicos com alguns detalhes mais atuais como o emprego das splash pages de forma a obter impacto.
Vale destacar também a importância das personagens femininas na história. Oyá (Iansã), a esposa de Xangô possui um profundo respeito de seu povo. Ela é importante na tomada de decisões e participa ativamente do combate. Em um determinado momento, próximo de partirem para a cidade das águas, Xangô pede a ela que permaneça na cidade, e Oyá não gosta dessa decisão porque parece uma proteção boba. Nessa cena, a personagem demonstra ser decidida e capaz de tomar suas próprias decisões. Por outro lado, vemos que Oxum, a governante da cidade das águas, é rechaçada por outras comunidades que tradicionalmente veem nos homens como os verdadeiros líderes de um povo. A personagem demonstra insatisfação com essa opinião sobre ela e consegue impressionar a todos com seu poder de liderança. Canuto então nos apresenta personagens fortes e que não deixam cair a peteca da representação feminina nos quadrinhos.
Os personagens possuem características bem distintas o que contribui para eles serem mais profundos. Por exemplo, Xangô é um homem de ação, impulsivo. Ele é o líder dos combates, mas isso acaba por causa apreensão entre seus pares. Tem um momento da HQ onde Oyá pede que ele se contenha um pouco por sua própria segurança. Exu é o brincalhão, e nada me tira da cabeça uma comparação com o Loki do Simonson. O deus da trapaça do autor da Marvel, aquele que prega peças, ora inocentes, ora malignas. Vejo isso na visão de Canuto sobre Exu embora aqui ele tenha empregado uma visão mais brincalhona do orixá. Quero ver algumas histórias que abordem o outro lado de Exu... e a partir dessa apresentação inicial do autor daria algumas boas aventuras. Já Ogum é o guerreiro calmo e decisivo. Com suas armas ele domina o cenário... sua presença em combate é importante e caso ele não esteja presente uma batalha pode tomar outro rumo.
Os extras ao final do quadrinho são sensacionais. Conta com um glossário de palavras para entender algumas expressões e alcunhas usadas ao longo da narrativa. Tem um pouco da história por trás da HQ e as capas que foram feitas inspiradas em outras de super heróis. Pensar que Contos dos Orixás provavelmente está em diversas escolas espalhadas pelo país é fabuloso. Populariza a riqueza da cultura africana em um país que sempre teve preconceito em relação a ela. Nos coloca diante do outro, do diferente. Nos mostra que a cultura iorubá é capaz de nos fornecer ideias para inúmeras narrativas. A importância disso é única e eu espero que o quadrinho possa se espalhar cada vez mais.
Para mim, a HQ só não foi perfeita porque eu senti que faltou um algo mais. A arte está fabulosa, caio até na mesmice de repetir isso. Mas, caramba, o Canuto conseguiu absorver muito bem o estilo de arte do Kirby e dar sua própria leitura a partir disso. Faltou algo na narrativa que pudesse me prender mais. Não sei dizer o quanto o autor foi fiel à história mítica em si, mas eu acho que ele poderia ter aberto mais as asas e extrapolado um pouco mais. Com tudo o que ele produziu ao longo da história, seria possível criar algo ainda mais rico sem perder a essência por trás daquilo que é posto pela religiosidade iorubá. Ah, sim, faltou um pouco de música também. Não consigo imaginar nada relacionado à cultura iorubá sem a presença de um atabaque ou de algum outro instrumento de percussão e alguma dança. Orixás e dança são intimamente ligados.
Ficha Técnica:
Nome: Contos dos Orixás
Autor: Hugo Canuto
Editora: Auto-publicado
Número de Páginas: 120
Ano de Publicação: 2019
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