Louise Canton toca o seu instrumento musical para conseguir uns trocados e leva uma vida bagunçada ao lado de sua parceira. Um dia, ela é atacada por uma criatura sobrenatural e tudo fica de pernas para o ar. Quando ela menos espera, está no Vietnã ao lado de uma tropa de outros iguais a ela caçando uma misteriosa mulher.
Sinopse:
Conheçam Lou: uma música que toca nas ruas atacada de forma selvagem por um terror sobrenatural.
Conheçam Lou: cruzando um Afeganistão marcado pela guerra com uma unidade de soldados transmorfos.
Conheçam Lou: uma monstruosidade mantida em cativeiro por uma besta fugitiva ao qual ela foi enviada para matar.
Cry Havoc é um daqueles quadrinhos divisivos em que qualquer opinião que se dê vai estar certa ou totalmente errada. A proposta é bastante ousada, até na maneira de compor artisticamente o quadrinho. Muitas ideias e conceitos jogados em uma narrativa queer de amadurecimento e chegada à vida adulta. Ao mesmo tempo temos uma discussão sobre o que significam os mitos e a crenças nesse nosso mundo contemporâneo onde, como diria Nietzche, Deus está morto. É possível enxergar todas as boas intenções do mundo naquilo que Simon Spurrier planejou para o quadrinho, só que com tanta coisa trabalhada não houve tempo para tratar do básico: uma história sobre uma garota tentando descobrir o seu próprio lugar no mundo.
A narrativa se desdobra em três temporalidades: um presente onde Lou está presa pela mulher que ela foi mandada para prender; alguns momentos antes onde ela está com a sua unidade de pessoas estranhas, cada uma com uma habilidade especial, atravessando um país devastado pela guerra; e mais no passado quando conhecemos o cotidiano de Lou ao lado de sua namorada até que ela é atacada por uma espécie de lobisomem. No meio de toda essa confusão, temos uma corporação privada que explora pessoas com habilidades para realizarem missões para eles. E uma besta renegada que está em busca de algum tipo de figura messiânica para servir de símbolo para o seu grupo de rebeldes. Embora tudo o que Lou deseja é se livrar da selvagem criatura que parece ter se apossado dela.
Temos um estilo artístico dividido entre três artistas, cada um abordando uma das linhas temporais da narrativa. Dos três artistas deste encadernado conheço o trabalho do Lee Loughridge e o do Matt Wilson: um deles por obras como A Realeza e o segundo por edições de The Wicked + the Divine. Lee é um artista bastante focado na exploração da palheta de cores e sua arte tende para uma expressividade maior dos personagens. Seus quadros são como uma explosão de cores por toda a parte o que nos deixa extasiados. Matt Wilson explora uma arte mais realista, embora tenha influências da pop art. Seus personagens costumam ter personalidade, aquele "swagger" que os coloca distintos das outras pessoas. Lee ficou com os trechos que se passam no esconderijo da besta e Matt Wilson com os momentos no Afeganistão. Nick Filardi desenhou os trechos que se passam em Londres. Até aí tudo lindo, são artistas conhecidos e que possuem um portfolio de respeito. Porém, os três ficaram estranhos ao colocarmos lado a lado. A história não segue uma estrutura linear, optando pelos flashforwards e flashbacks. Só que isso não vai ajudar em uma fluidez artística boa. Matt Wilson vai nos colocar em um cenário marcado pelo desespero e pela destruição em que os personagens aparecem se questionando o motivo de estarem ali. A atmosfera é melancólica e isso se reflete nas cores e no padrão de cenas. Lee traça alguns momentos bem gore da narrativa com as bizarrices se sucedendo por toda a parte. Além disso, ele precisa desenhar diversas criaturas sobrenaturais dos mais variados tipos, o que destoa um pouco do que foi apresentado antes. Já Filardi nos coloca em uma atmosfera urbana onde a protagonista vive sua vida comum até ser assombrada por uma estranha fome e fúria mortal que invade seu ser. Embora a arte seja boa, a combinação dos três artistas não ficou. Teria sido melhor abordar uma narrativa linear com os artistas se alternando à medida em que a história avançasse.
E aí o fluxo narrativo também sofre com isso. Mas, o principal motivo que me fez não apreciar a história foi o excesso de temas. Imagino que Spurrier tenha pensado em mais do que um encadernado de histórias (ou a HQ não teria um volume 1 escrito na capa, sendo que é o único volume dela) e alguma coisa aconteceu durante o processo de produção. Conheço o Spurrier de sua fase ao lado do personagem Legião, dos X-men. E ele conseguiu revitalizar o personagens, apresentando uma nova maneira de enxergá-lo. Spurrier conseguiu isso a partir de uma abordagem calma e paciente, com um cuidado ao explorar determinados ângulos de sua personalidade. Não vejo o mesmo aqui. O que começa como uma história de amadurecimento, subitamente passa para um debate sobre os terrores da guerra e a dicotomia inexistente de bem x mal nos conflitos. Para no momento seguinte explorar o que caracteriza um mito e como ele se adequa à nossa realidade atual, em uma vibe quase de Deuses Americanos, do Neil Gaiman. Só que nada disso recebe a atenção devida, com os últimos dois volumes parecendo corridos demais. Quase como se o autor tivesse que fechar a história de algum jeito, mas não soubesse como. Embora o final seja mais ou menos bem executado.
O estereótipo do lobisomem já foi empregado inúmeras vezes e ele quase sempre se refere a um indivíduo que possui uma inconformidade com seu eu interior. A criatura liberta partes selvagens de sua personalidade que estão presas. Às vezes uma enorme raiva quanto ao que está ao seu redor, seja por uma vida difícil ou uma realidade sufocante. Lou é uma mulher que está em uma encruzilhada. Ela quer continuar a ser ela mesma e entende que é um desastre, mas as responsabilidades da vida se empilham em seus ombros. A pessoa que a ama é compreensiva, amorosa, embora reclame da falta de perspectiva de sua parceira. Mesmo com tudo isso, Lou é amada. Mas, isso não é o suficiente para ela que deseja que sua parceira expresse com mais firmeza aquilo que realmente está sentindo. Por mais que Lou bagunce tudo, ela nunca é culpada diretamente, apenas alguns comentários ocasionais. A gente se dá conta de que o namoro não vai mais longe do que isso justamente por esse inconformismo, essa vontade de algo mais. Lou se culpa e quer alguém para culpá-la, que a faça abrir os olhos. O mais curioso é que vai ser preciso ela vivenciar uma situação crítica para acalmar o seu interior. Chegar a um acordo consigo mesma e compreender o seu verdadeiro lugar.
Para quem está em busca de uma narrativa queer, Cry Havoc pode ser uma boa. Isso porque ela não nos mostra uma personagem linda e perfeita. Muito pelo contrário, Lou é uma bagunça ambulante. Fico até me questionando se o namoro com a Samantha não era tóxico para a Sam. Lou vive em seu próprio mundo e ela acaba não dando atenção para coisas simples e básicas. Em determinados momentos fica até difícil compreender aonde ela deseja chegar ou quais são seus objetivos, dado o seu nível de confusão emocional. Lembrando também que a temática do lobisomem também pode adotar contornos sexuais à medida em que a hospedeira se torna alvo de uma selvageria primitiva. Uma necessidade de se alimentar e de procriar. Outra coisa que será tema dessa HQ. Portanto, nada é tão simples quanto parece.
Não existem lados no conflito que se desenrola no Afeganistão. O grau de violência sobe bastante e inocentes são pegos no fogo cruzado. Lou tenta descobrir se ela está lutando ou não pelo lado certo e em suas convicções quebradas porque não temos uma resposta precisa a essa pergunta. Um bom exemplo disso é uma pequena comunidade que eles chegam próximos e os moradores locais estão sendo massacrados por talibãs. Lou deseja ajudar, mas um de seus companheiros pede que ela observe melhor. Os aldeões estavam criando ópio para poderem vender a viciados das regiões mais próximas. Uma maneira de poder sobreviver à fome e à falta de abastecimento. Só que o islamismo xiita condena veementemente o consumo de drogas alucinógenas; é considerado um pecado mortal e os talibãs estão realmente incomodados com o comportamento dos aldeões. Quem está certo? Quem está errado? Não há uma resposta adequada para isso. Todos tentam viver suas respectivas vidas da maneira que acham mais necessário.
O último grande tema é o da exploração dos mitos sobrenaturais do mundo inteiro. E um entendimento de que estes estariam desaparecendo devido à falta de fé e superstição que deram lugar a um pensamento racional. Alguns dos personagens foram vítimas dessas criaturas, embora Spurrier não explore com atenção esse trecho. A linha filosófica que ele tenta entregar mais ao final parece ser interessante com a necessidade de reviver esse pensamento primitivo e sobrenatural, só que não há tempo para explorar. A sensação que fica é que o assunto ficou jogado no ar e comprimido na história que ele estava contando a respeito de Lou. Embora o tema parecesse legal, o leitor acaba preferindo entender o que vai acontecer com a protagonista, como ela vai sair da situação e até onde ela vai estar ao final da história. Embora bem pensado, veio tarde demais na trama e próximo demais ao fim.
Cry Havoc é o exemplo de boas ideias executadas de maneira apressada. Um roteirista acima da média, uma equipe de artistas com ótimas capacidades embora juntos soem estranhos e uma narrativa promissora que ficou para trás por motivos que desconhecemos. Em entrevistas, Spurrier alegou um desejo de retornar à trama, mas sem ser uma continuação, explorando o mundo a partir de outra perspectiva. Sinceramente, não gostaria. Prefiro que a história permaneça como está e o artista se foque em outros projetos. Não curti, não gostei, não recomendo.
Ficha Técnica:
Nome: Cry Havo - Mything in Action
Autor: Simon Spurrier
Artistas: Nick Filardi, Lee Loughridge e Matt Wilson
Letreirista: Simon Bowland
Design: Emma Price
Editora: Image Comics
Número de Páginas: 160
Ano de Publicação: 2016
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