Em mais uma coletânea de contos bastante antenada com nossa realidade atual, o autor nos entrega histórias curtas sobre o impacto da tecnologia e a natureza do homem em mundo em transformação.
Sinopse:
A imaginação brasileira, agora num plano universal, ganha um novo e extraordinário reforço, e atinge uma camada mais alta, altíssima, com esta coletânea de contos em que o fantástico mais surpreendente e a ficção científica mais na vanguarda se misturam, em textos híbridos de uma ousadia inacreditável. Nesses contos, toda a escrita − a fricção de tanta ficção − é um refrigério apocalíptico, uma reescrita visionária, enfim, a reescrita mais poética do futuro.
Nesses últimos e conturbados anos certamente nos pegamos pensando se o futuro que imaginávamos era esse que estamos vivendo: pandemias, conflitos político-ideológicos, ameaças de guerra. Quando buscávamos entender o que a tecnologia nos traria nas próximas décadas, se venceríamos doenças, se iríamos ao espaço. Nossa imaginação com certeza não chega perto de como um futurologista e um atualista como Luiz Brás tem refletido sobre esses assuntos. Nessa coletânea de histórias curtas, sua marca registrada, ele tenta passar um pouco de suas preocupações para o papel. O que podemos ver ao final é a mente de um homem sensível que, assim como nós, tem dúvidas sobre se o ser humano é capaz de deixar seus preconceitos para trás e abraçar uma nova era. Afinal, o problema não está nas novas tecnologias, mas em quem as manuseia.
A palavra-chave dessa coletânea é transgressão. Parece óbvio porque o autor é um transgressor, sempre nos brindando com experiências de vanguarda, mas aqui o que podemos ver é que ele transgride não apenas na temática em si, fazendo importantes discussões, mas na própria forma de escrever. Brás é um adepto dos experimentalismos, mas creio que poucas vezes o vi partindo para a manipulação não só das palavras, como dos símbolos em si. Por exemplo, os capítulos tem como início diversos símbolos geométricos que tem alguma coisa a ver com a história como o Vita Brevis, Ars Longa em que temos quatro símbolos interligados a partir de um eixo que demonstra uma progressão, mas voltada para a direita. Isso se comunica com o que ele quer dizer. As estruturas narrativas também se alteram seja com uma ausência total de preocupação com parágrafos, ou uma mudança súbita de ponto de vista a cada poucas páginas, uma contagem regressiva que me lembrou demais o livro Sobrevivente (de Chuck Palahniuk) ou até uma narrativa composta por páginas pares contendo símbolos e ímpares contendo texto.
Com certeza o penúltimo conto foi o mais divertido de todos de tentar entender, mas Salvem as Crianças merece um parágrafo à parte. Na história vemos uma sociedade de controle rígida que busca controlar mentes e corpos a partir da figura de um reitor universitário que emprega inúmeros sósias para poder escapar de atentados políticos. O controle que ele tem sobre o pensamento das pessoas torna seu governo opressor (me lembra até um certo alguém do Brasil), até o surgimento de uma vidente capaz de enxergar. As previsões que ela faz são catastróficas para o governo e os sósias do Reitor começam a ser progressivamente assassinadas. É uma narrativa que nos mostra as novas formas de controle que começam a se tornar comuns na sociedade contemporânea e seu esforço para se perpetuar indefinidamente no poder. Esse é o conto que comentei ser semelhante a o Sobrevivente e é contado em uma espécie de contagem regressiva. Outro ponto legal do conto é a quebra de expectativas com o final, mostrando o quanto essa é uma obra profundamente autoral.
Cubo Mágico é outra narrativa bastante interessante onde o autor vai se debruçar sobre a temática do transumanismo. Onde o autor trabalha com essa noção de que estamos buscando ultrapassar nossa natureza sem resolvermos os nossos problemas do presente. É também um bom experimento narrativo onde o autor brinca com a noção de perspectiva. Fico me recordando de quando, em minha época de escola, me via obrigado a desenhar cubos tridimensionais para entender espacialidade. Brás parte de um universo micro e vai subindo a lupa a cada desenvolvimento até sair completamente do estágio tangível e passar para o universo simbólico.
Já no conto A Última Árvore, o primeiro da coletânea, o autor traça um panorama bem diferente do que ele vai pontuar nos demais contos. Achei a narrativa mais disruptiva daqui, mas talvez seja porque não tenha entendido sua conexão com as demais histórias. Vale destacar também que todas essas histórias possuem múltiplas interpretações e vai depender de para onde o leitor vai concentrar o seu olhar. Temos o chefe de um morro em um futuro distópico que começa a encontrar pedaços de corpos espalhados próximos a uma floresta onde ninguém ousa entrar. Toda vez que alguém tenta, algo ruim acontece. Então após muitas tentativas, eles simplesmente param de o fazer. A narrativa discute o conformismo diante da adversidade. A gente pode trazer o tema até a sociedade brasileira (ou a americana também) que observa uma ópera do absurdo se desenrolando todos os dias com fatos que consideraríamos dignos de punição em tempos anteriores sendo normalizados em prol de uma pauta claramente conservadora em seu sentido mais agressivo. O que incomoda na narrativa é a passividade daquele que observa os fatos se desdobrarem e nada fazer para mudar alguma coisa. Essa passividade vai levar ao mote da história sendo deixado para lá e os personagens debatendo se o mundo deles é apenas aquele lugar onde vivem. Aliás, vale mencionar o recurso simbólico que é a perda de membros superiores e inferiores que acontecem no começo e na metade da narrativa. Invoca uma sensação de perda de liberdade, já que não somos mais capazes de caminharmos com nossos próprios pés e mãos.
Tem um conto que eu quero muito comentar, é o penúltimo, mas não vou citar o nome por causa dos algoritmos malucos da internet (tem um palavrão no meio). Só não é melhor do que o último porque curti os experimentalismos no final. Mas, façamos uma sinopse rápida dele para que os leitores possam entender por que é um dos meus favoritos. Uma IA decide resolver os problemas da desigualdade social pelo mundo fazendo uma redistribuição de renda. Ela nos observa como formigas e decide equilibrar o jogo porque não entende a razão por trás de tantos problemas. Os líderes políticos e a elite ficam alucinadas tentando entender ou resolver a situação. Tentam criar distrações ou falsas notícias a respeito, mas a IA está tocando o terror e como ela controla tudo o que é eletrônico e tem acesso à rede, nada consegue impedi-la. Um conto que é praticamente um grito no meio de um país que caminhou tanto para as trevas nos últimos anos. E tudo o que gostaríamos de fazer nesse final de trajeto é simplesmente causar uma enorme ruptura. Aqueles que estão cansados de serem moderados e de tolerarem uma ordem saída dos abismos profundos do caos, este conto ecoa com o que sinto neste momento.
E a última história (tem uma entrevista que merece ser lida ao final) nos apresenta uma metanarrativa em que o protagonista quebra a quarta parede e parece dialogar e se revoltar com o escritor. É uma crítica às formas como os escritores buscam guiar seus personagens à vontade de modas passageiras. Uma busca por aquela ficção que entrega aquilo que o autor deseja realmente, sem se preocupar com qualquer coisa que pudesse interferir em sua escrita. Gosto de como o autor dá umas piscadelas para outros contos publicados neste livro como o personagem Raoni. Outra questão posta é a do livre-arbítrio, mas dos personagens que acabam por criar vida e terem suas próprias decisões. Quanto autores dizem que parecem que seus protagonistas decidiram o que fazer sem que os primeiros planejassem é a isso a que ele se referia. Este conto é o que mais traduz a forma como Brás monta suas histórias, empregando metáforas, simbolismos, experimentações, figuras de linguagem. É o próprio sumo daquilo que ele faz melhor e é uma ótima maneira de finalizar esta coletânea.
Ficha Técnica:
Nome: Curto-cirtuito kamikaze
Autor: Luiz Bras
Editora: Caos & Letras
Número de Páginas: 320
Ano de Publicação: 2021
Avaliação:
*Material recebido em parceria com o autor
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