Dante D'Augustine se tornou um escritor muito famoso em uma Porto Alegre alternativa com suas intrigantes histórias de mistério e investigação. Tornou um gênero de histórias considerado popular demais para as grandes mentes em um sucesso. Mas, seu sucesso irá atrair um grupo estranhos de homens poderosos. Só que Dante também esconde segredos.
De todas as obras que li do Eneias Tavares, essa é aquela que mais transborda a personalidade do próprio autor. Sua personalidade e alguns de seus questionamentos como pessoa. Aliás, convido os leitores a prestarem atenção sempre nas notas deixadas pelos autores quando eles a colocam porque fala de onde veio a faísca que os inspirou a escrever alguma história. Nessa temos o personagem Dante D'Augustine, um dos vários que fazem parte da série Steampunk Brasiliana, um universo que o Eneias criou e tem tanto carinho, um escritor que obteve um enorme sucesso ao escrever suas ficções de polpa, um gênero considerado pelos eruditos de sua época como inferior e indigno de nota, mas que conquistou os corações dos leitores. E Dante está se preparando para uma nova etapa em sua vida quando precisará fazer uma revelação que surpreenderá seus fãs. Entre decisões tomadas, uma roda boêmia com seus companheiros e seu amado Louison e os louros futuros, Dante recebe um convite inusitado de um velho e preconceituoso aristocrata da tradicional sociedade porto-alegrense. Ao mesmo tempo, estranhos relatos de prostitutas e mulheres desaparecendo misteriosamente tomam a capital sulista e o instinto de Dante parece lhe dizer que as duas coisas parecem estar interligadas. É aí que se inicia uma jornada a uma capital que resiste às transformações que estão cada vez mais prementes e que revelará o lado obscuro de uma elite abjeta.
Antes de entrar nos meandros da história preciso elogiar a escrita fabulosa do Eneias. Ele consegue me encantar a cada novo romance que ele escreve. A maneira como ele consegue encaixar um vocabulário erudito de uma forma interessante e deveras picaresca. Ele usa uma entrevista para iniciar e outra para encerrar a narrativa e durante o seu desenvolvimento emprega uma narrativa em primeira pessoa. A história é contada de uma maneira bastante envolvente e conseguimos criar empatia com o personagem. Seus problemas se tornam os meus problemas também e desejo vê-los sendo resolvidos. Quando a narrativa se encerra, fiquei com um sentimento de satisfação. A narrativa é muito bem delimitada em três atos, bem perceptíveis para um olhar mais atento. Seja a introdução apresentando o protagonista e seus dilemas, ao desenvolvimento quando os problemas são criados e o mistério se apresenta para uma resolução e a conclusão onde as pontas soltas são amarradas enquanto ganchos são deixados para futuras histórias. Trabalho eficiente e competente. Para o leitor, não há necessidade de conhecer o universo criado por Eneias. Tudo o que você precisa saber sobre o mundo onde a narrativa se passa está ali. É claro que a história cria a curiosidade para que você mergulhe nos demais trabalhos, mas não é nada que seja obrigatório.
A narrativa possui várias temáticas bem interessantes. Vou começar por aquela que considero ser a principal que é o empoderamento de Dante. Sem querer estragar a surpresa deixada por Eneias, digamos que o protagonista não se sente inteiramente empoderado no começo da história. Para poder se tornar uma pessoa reconhecida em um meio literário voltado para uma elite, Dante precisou cavar o seu espaço com unhas e dentes. Sendo alguém que veio de uma origem humilde e sendo negro, o reconhecimento que a fama lhe trouxe também lhe deu de presente as falas comezinhas feitas por trás. Desde o começo vemos o preconceito transbordando por toda a parte, em um cenário que corrói nossa alma por dentro. Algumas das falas são incômodas para aqueles mais sensíveis. Mas é esse incômoda que gera a faísca que faz com que Dante queira vencer por seus próprios meios e méritos. Mas, existe um dilema a ser resolvido. Um dilema interior que somente quando Dante conseguir resolver por si só é que poderá tomar sua decisão. Antes de continuar a discussão, queria trazer algumas palavras da autora Joice Berth em seu livro Empoderamento:
"Quando falamos em empoderamento, estamos nos referindo a um trabalho essencialmente político, ainda que perpasse todas as áreas da formação de um indivíduo e todas as nuanças que envolvam a coletividade. Do mesmo modo, quando questionamos o modelo de poder que envolve esses processos, entendemos que não é possível empoderar alguém. Empoderamos a nós mesmos e amparamos outros indivíduos em seus processos, conscientes de que a conclusão só se dará pela simbiose do processo individual com o coletivo."
O conto de Eneias é basicamente a exemplificação literária do que Berth quis dizer. Dante realizou um enfrentamento contra forças opressoras dominantes no espaço em que ele vivia. Isso é representado por uma nobreza tradicional, avessa aos questionamentos de sua dominância. Partem de um pressuposto de darwinismo social para realizar o sufocamento de forças que são vanguardistas e antagônicas à manutenção de seus privilégios. Ao lidar com esses problemas de ordem social e política, Dante vai também enfrentando seus próprios demônios interiores. Suas dúvidas acerca de si e qual é o seu lugar social. No começo da narrativa, parece que o personagem vai seguir em uma direção específica, mas com o desenrolar da narrativa, suas ideias amadurecem e um terceiro caminho se mostra à sua frente. Essa transformação passada pelo personagem é um ato de empoderamento. Ao final, o personagem pode tomar sua decisão porque se sente capaz e confiante para enfrentar as forças que se opunham ao seu desenvolvimento pessoal. A jornada em si é maravilhosa.
Só que não há só isso nesse conto. E digo só com muita cautela, porque "só isso" já faria do conto sensacional. Eneias aproveita para cutucar em algumas feridas daqueles que detraem a literatura de gênero. Quando a ficção de polpa surge lá pela década de 1920 (e mesmo os penny dreadfuls de outrora), ela sofria com o escárnio de uma dita "alta literatura". Tanto as pennys quanto a ficção de polpa surgiram para atender a um público ávido por leitura. Ao escrever em uma linguagem mais popular e atrativa ao grande público, estes bravos escritores saíam das torres de marfim nas quais os ditos "gênios literatos" eram postos. Dante quer que seus livros sejam lidos por todos. Afinal, a leitura nos liberta para outros mundos. Sua crítica, posta em um mundo steampunk, decadentista é totalmente aplicável aos dias de hoje já que aqueles que escrevem literatura de gênero ainda são vistos e entendidos como inferiores. Em duas oportunidades no conto, o entrevistador de Dante tenta traçar comparações entre o que é escrito por Dante e o significado de "arte". Gosto bastante da resposta dada por Dante tanto no começo como no final. Este é um conto cuja história é bastante intimista e que vai tocar no coração de muita gente. Quero dar os parabéns ao Eneias pela narrativa corajosa e que possui todo o requinte que só poderia ter vindo de sua pena.
Ficha Técnica:
Nome: Dante e a liga dos anciãos assassinos
Autor: Eneias Tavares
Compõe a terceira temporada da revista Mafagafo
Número de Páginas: não informado
Ano de Publicação: 2021
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