A Grande Inundação varreu a maior parte do planeta. Alguns sobreviventes vivem em Nova Piratininga, coletando resquícios de eras passadas. 19 autores contam histórias passadas neste novo mundo.
Sinopse:
A Grande Inundação de maio de 2050 foi provocada por uma soma de eventos: o nível do mar subiu em função do descongelamento das calotas polares, o eixo da Terra se deslocou, houve terremotos e tsunamis, e no Brasil, para completar o desastre ambiental, o Aquífero Guarani veio à tona.
Com isso, a maior parte do mundo ficou submersa e a cidade de São Paulo foi renomeada, virou Nova Piratininga, com sobreviventes amontados na avenida Paulista, no Parque Sabesp Sumaré e no Pico do Jaraguá, únicos locais a salvo das águas. (Mais tarde a Terra também seria rebatizada, tornando-se Aquária.)
É nesse contexto pós-apocalíptico, mais precisamente entre os anos de 2050 e 2055, que as histórias aqui reunidas acontecem. Exceto em três contos mais futuristas, ambientados um século depois da Grande Inundação.
Múltiplas histórias em um mundo tomado pela água
Era de Aquária é um livro bem diferente e divertido por causa disso. Trata-se de um universo compartilhado criado pelo Coletivo Kriptocaipora onde cada autor explora o mundo através de seus personagens. Às vezes as histórias se tocam de maneira bem sutil, outras vezes uma dá pano de fundo para a outra. Esse tipo de formato não é estranho, apesar de ser muito empregado nos RPGs. Se eu for comparar a algo mais na linha de literatura de gênero, posso citar Wild Cards, organizado por George R.R. Martin e Melinda Snodgrass. Temos todos os tipos de histórias aqui: romances, policiais, algo mais scifi, outros que exploram o destino da humanidade, narrativas experimentais. Tem de tudo aqui e eu duvido que algum conto não vá lhes chamar a atenção.
De um modo geral, as narrativas se passam nas décadas de 2050 e 2060, apesar de ter duas que se passam quase um século depois da inundação. Coincidentemente são as duas primeiras histórias. Ambas servem mais como contextualização falando um pouco sobre como o mundo ficou e se desenvolveu pós-catástrofe. Apesar de terem um enredo propriamente dito, eu encarei mais como um preâmbulo para os demais contos, mesmo as duas terem seus próprios méritos narrativos. Como qualquer coletânea de contos, as narrativas giram entre aquelas que vamos nos identificar mais e outras que vamos curtir menos. Totalmente esperado. Mas, preciso dizer que as narrativas são de bom nível, tendo poucas que eu realmente não curti. O formato das narrativas é o de flash fiction, ou seja, o de ficção relâmpago. As histórias possuem entre 7 a 12 páginas, sendo bem curtinhas, mas conseguindo passar a mensagem que desejam. Algumas não conseguem por causa do espaço, mas a maioria consegue entregar bem. Nesta resenha vou falar sobre quatro contos que me chamaram a atenção, fazendo o máximo para não entregar muita coisa sobre eles.
A Nathalie Lourenço escreveu um conto muito bom para entendermos a dinâmica desse mundo. Chama-se Uiara e mostra um grupo de crianças que vivem a vida buscando objetos que se encontram nos prédios que ficaram no fundo do mar. A ambientação é boa e mostra como esse mundo ainda procura se recordar daquilo que ficou para trás. Essa dinâmica é vista tanto na narrativa das crianças como no das pessoas que buscam o que elas fazem. Objetos bobos como uma bola ou um telefone servem como marcos para colecionistas. É engraçado que esse tipo de história é retomado por Tobias Vilhena no conto Cata-Trecos com uma narrativa semelhante. Mas, esta aqui me chamou a atenção por conta da sutileza com que a autora mostra a vida dos meninos. O quanto esse novo mundo tirou algumas coisas deles. Uma das crianças é fã de livros, mas todos eles se estragaram por terem ficado molhados e a tinta embaçando o texto. Ou os dois protagonistas que não sabem onde os pais foram parar ao se perderem deles.
Com tudo o que aconteceu a sociedade que sobreviveu acabou precisando se virar para se adequar a este novo mundo. Com pouco espaço para realizar atividades produtivas, a alimentação se tornou algo necessário de se administrar. E logo a reprodução começou a ser vigiada no sentido de que não pode haver muitos nascimentos. Despedida, escrito por Gastão Moreira, explora o tema de uma forma especial. Nossos protagonistas são duas pessoas que se apaixonam à primeira vista. Ambos são jovens e poéticos em um mundo selvagem. Isto daria uma linda história de amor, se não houvesse o controle de natalidade. E este chegou a uma situação tão crítica que mesmo o relacionamento a dois passou a ser proibido. As pessoas não podem mais se amar porque isso é parte do ritual que leva à reprodução. Mesmo relacionamentos homossexuais são desestimulados já que todos precisam ter direitos iguais. Quem quer que seja pego em um relacionamento amoroso pode ser preso e condenado a ficar separado para sempre. Este é o dilema vivido pelo casal. O autor conseguiu construir essa narrativa de uma maneira bem doce e original. A gente sabe que alguma coisa vai dar errado por causa do título. Mas, achei legal o plot twist no final que eu não estava esperando.
Temos até a oportunidade de ver uma história satírica inspirada em parte (acredito eu) pelos romances de Jules Verne. Fábio Mariano conseguiu me fazer dar boas gargalhadas com o plot completamente bizarro de Porque És o Avesso do Avesso. Nele, o velho Laurindo tem um sonho estranho envolvendo uma privada, a descarga e ser sugado pela privada. Esse sonho o fez pensar que a grande inundação na verdade seria como água acumulada na privada: bastaria tirar o tampão (ou dar uma descarga) para que a água pudesse baixar e tudo voltaria ao normal. O pior é que ele acaba arrastando Gervásio em seu périplo para encontrar o tampão do mundo. Bem, até aí parece ser uma ideia bizarra que é levada com ceticismo por seu sobrinho. O problema é quando ele encontra o tampão... Fábio consegue manter o equilíbrio perfeito entre o bizarro, o engraçado e o correto dentro do universo que eles criaram. Claramente me fez lembrar os plots bizarros de Verne como enviar um objeto até a Lua, atirado da Terra. Esse é uma daquelas histórias que vocês precisam ler.
A última que eu gostaria de mencionar é a última narrativa chamada Três Pedidos, escrito por Sonia Nabarrete. É uma história emocionante de um menino descrevendo o seu mundo virado do avesso para seu amigo. Comentando como era antes da Grande Inundação, quando ele era apenas mais um adolescente fazendo pichações por São Paulo. Sua vida era muito mais simples e sem grandes responsabilidades. Me pareceu que o menino fazia apenas um relato de o quanto ele não foi capaz de aproveitar o que ele tinha na época. Subitamente ele se vê sozinho neste mundo quando seu amigo parece não mais responder a ele. Seu desespero e tristeza são patentes em seu rosto. É aí que a gente se dá conta de o quanto o mundo se perdeu definitivamente. Mesmo este sendo um dos contos que se passam pouco tempo depois do evento. Mas, vai aparecer alguém que vai lhe fornecer o velho plot dos três desejos. E tem um final bem curioso.
Era de Aquária é boa literatura com autores que eu realmente não conhecia. Tirando o Luiz Brás e o Paulo Lai Werneck não tinha lido nada de nenhum dos outros. Foi uma boa introdução ao que eles podem fazer. Apesar de haver algumas inconsistências aqui ou ali em relação ao mundo que eles criaram, as narrativas conseguiram me entreter a ponto de eu devorar o livro em apenas um dia. E, como eu disse, tem histórias para todos os gostos. Eu sugiro fortemente que vocês invistam algum tempo de vocês para conhecer o que estes autores podem fazer.
Ficha Técnica:
Nome: Era de Aquária - A Grande Inundação
Organizado por Coletivo Kriptocaipora
Editora: Oito e Meio
Gênero: Ficção Científica
Número de Páginas: 230
Ano de Publicação: 2019
Avaliação:
*Material enviado em parceria com a Editora Oito e Meio
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