Michelle e seu companheiro robótico Skip atravessam um mundo devastado onde máquinas dominam as vontades e desejos dos homens e a civilização entra em um lento crepúsculo. Com uma estonteante arte que mescla a aquarela e o digital, essa é uma HQ premiada que os leitores brasileiros finalmente poderão conferir.
Sinopse:
Numa mistura delirante de On the road e Black Mirror, o artista sueco Simon Stålenhag cria um livro único. Uma viagem visual a um futuro aterrador e sombrio.
Num 1997 imaginado e apocalíptico, uma jovem em fuga e seu robô atravessam os Estados Unidos rumo ao oeste. Ruínas de gigantescos drones de batalha se espalham pela paisagem, junto a toda espécie de lixo descartado de uma sociedade ultra tecnológica e consumista em declínio. À medida que se aproximam da fronteira do país, o mundo parece se desfazer num ritmo cada vez mais alucinante, como se em algum lugar além do horizonte o núcleo oco da civilização finalmente fosse desabar. Em Estado elétrico, Simon Stålenhag volta sua visão atordoante para a América. Com desenhos hiper-realistas e um talento extraordinário para narrar, o artista sueco coloca em cena uma história de amizade e horror, lealdade e suspense, em que uma sensação de constante ameaça paira sobre cada sequência e imagem.
Fazer uma reflexão sobre o estado das coisas é algo completamente necessário em alguns momentos de nossa sociedade. Quando estamos avançando em uma direção, retrocedendo em outra. Estado Elétrico é justamente isso: Stalenhag pensando os caminhos errados que podemos tomar e como podemos cair em algumas armadilhas no futuro. Muitas vezes buscamos algum bode expiatório para os problemas do planeta, mas pode acontecer de sermos nós mesmos aqueles que levarão à derrocada da civilização humana. Sua visão é pessimista? Com certeza. Mas, quem de nós não anda pessimista com os últimos anos? Para alguns de nós, é preciso observar o abismo e torcer para que possamos aprender alguma coisa com ele e que ele não nos olhe de volta. Cabe também a nós repensarmos nossos rumos como sociedade, se estamos ou não nos relacionando socialmente e como a tecnologia tem afetado tais relações. Pode ser um caminho para alcançarmos uma real evolução. Ou poderemos cair na armadilha da civilização da personagem da história.
Estamos em uma road trip ao lado de Michelle e Skip, uma garota e seu pequeno robô que precisam atravessar os Estados Unidos e chegar a um endereço do outro lado do país. Mas, este é um mundo completamente diferente do nosso. A civilização está em ruínas e uma zona de exclusão foi montada para evitar que a contaminação passe para outras regiões. Uma guerra foi feita, mas não houve vencedores do conflito. Aqueles que restaram buscam abrigo em um mundo de fantasias e ilusões, alimentados por projetores neuronais que realizam seus mais secretos desejos. Drones gigantes fornecem a energia suficiente para alimentar esses projetores e em pouco tempo são os seres humanos que dependem das máquinas para alimentar suas ilusões. Enquanto Michelle atravessa o país, conhecemos mais de sua história, de como ela perdeu sua mãe e foi parar com uma família de estranhos. Família essa que acabou por se tornar vítima dos projetores e ela acabou sozinha e abandonada neste estranho mundo. Pelas estradas do país, pedaços de uma civilização arruinada estão por toda a parte e o perigo pode estar à espreita. Não será uma viagem fácil... nem física e nem emocionalmente.
"Alguém deveria arrancar essas estruturas de suas fundações e deixá-las rolar pelas montanhas até os subúrbios, esmagando o que ainda restava dos jardins, casas e SUVs pilotados por mães e pais de família, para que pudessem, enfim, cessar suas atividades e descansar em paz nos centros urbanos abandonados, como se fossem memoriais da humanidade."
Não temos todas as informações para compreender o que de fato aconteceu. Mas, o autor nos fornece algumas pistas. Existe um segundo narrador na história (em trechos onde a fonte está em itálico) que são uma carta de um soldado a outra pessoa contando o que aconteceu em sua base. A última guerra da humanidade foi realizada com drones, mas o uso prolongado deles causou diversos problemas neurais em seus usuários. Aqueles que não saíram com danos cerebrais, nunca mais foram os mesmos. As mulheres passaram a não ser mais capazes de ter filhos, gerando bebês natimortos. Tem uma descrição terrível de um lugar onde bebês natimortos eram acumulados que é de embrulhar o estômago. Fato é que aqueles que foram derrotados pela guerra tiveram suas existências modificadas à força e os vencedores não tiveram um destino tão melhor assim. Stalenhag faz uma crítica pungente ao emprego indiscriminado da tecnologia, sem se questionar o que pode acontecer àqueles que estão próximos demais dela. Diz-se que uma guerra com drones seria uma guerra "limpa e civilizada". Isso não existe. Toda guerra é suja. E a tecnologia tornou a morte um instrumento cirúrgico. No atual conflito entre Rússia e Ucrânia pudemos ver os dois lados empregando drones para guiar seus ataques. Isso não tornou a guerra menos suja. Pelo contrário: as mortes com o uso de alta tecnologia são ainda mais cruéis porque sabemos o que estamos fazendo e continuamos repetindo.
A arte de Stalenhag é inacreditável. Aliás, fica os meus parabéns para a edição da Companhia das Letras que manteve o formato wide da HQ. E aí a gente pode discutir se Estado Elétrico é um livro ou uma HQ, já que se trata de um livro ilustrado. Na minha visão continua sendo uma HQ assim como outras obras feitas nesse mesmo estilo como Bezimena, da Nina Burjevac. A arte está atuando em consonância com o texto, nos fornecendo os meios para adentrarmos no universo criado pelo autor. O texto sozinho é bom, mas ele vai atingir toda a sua potencialidade somente a partir da arte que o acompanha. Portanto, se trata de uma HQ. As pranchas por página são lindíssimas e mesclam arte digital com aquarela. É curioso observar isso porque se encaixa com o tema da HQ que faz essa oposição entre humanidade e tecnologia. Vários dos quadros são de página dupla ou pelo menos uma página e meia, o que fornece espaço para o cenário se espraiar e permitir que o leitor observe diversos detalhes. Algumas das artes são mais desfocadas enquanto outras são repletas de detalhes por toda a parte. As figuras são tão complexas que permitem um estudo individual de cada uma delas. Stalenhag usa algumas das pranchas para fornecer contexto ao trecho que ele conta na página ao lado, mas nem sempre isso se dá. Muitas vezes a arte está ali mais para oferecer um contexto visual para o que está sendo apresentado.
Michelle é uma personagem bastante interessante. Passou por diversas situações difíceis e conseguiu manter sua sanidade mesmo em um mundo tão destruído como o que ela vive. É curioso pensar que ela acabou cuidando de três "mães". Sua mãe biológica foi uma piloto de drone e acabou afetada a longo prazo por uma condição debilitante. O cuidado e a atenção às medicações e ao cotidiano se tornou parte da vida dela. Quando sua mãe faleceu depois de um tempo prolongado com a doença, Michelle passou a viver com sua avó em Kingston. O cuidado aqui está presente em ter atenção a uma pessoa de terceira idade e atender às suas necessidades. É óbvio que sua avó faleceria mais cedo ou mais tarde. Depois Michelle passou para uma família adotiva e o casal Ted e Birgitte acabaram se tornando dependentes de seus projetores. Michelle precisou cuidar de ambos porque eles não tinham mais contato com a realidade. A morte de ambos se deu de uma maneira bastante estúpida, o que ilustra o total desapego ao mundo real. Ou seja, a personagem é uma cuidadora e acabou se tornando também uma observadora. Em sua jornada, ela tudo observa e tece seus comentários sobre os lugares por onde passa, nos levando a seu lado em um mundo estranho. A personagem permanece sozinha por vários dias a fio tendo apenas o robozinho Skip como companheiro.
"Algo se moveu na neve lá fora, bem distante na paisagem branca. Elevou-se na superfície com um movimento impossível de compreender. Queimamos. Queimamos tudo."
Por conta de um problema genético, ela não pode usar projetores. Talvez isso seja sua salvação como uma pessoa diz a ela. Mas, ao mesmo tempo a torna uma alienígena em uma terra apocalíptica. Sua história de abandono é a ilustração da própria história da humanidade nesses tempos. Os seres humanos são apresentados quase como zumbis desprovidos de espírito. Tem uma cena sensacional onde dezenas de pessoas estão ligadas por cabos a um drone gigantesco. A tecnologia suplantou a humanidade. E não é porque houve uma Inteligência Artificial para isso, mas foi a própria humanidade quem se colocou nesse caminho. Os drones foram o instrumento para sua destruição. Tudo o que eles tiveram que fazer é estarem ali. Foram os homens que pegaram os cabos e implantaram em seus projetores. Percebam a ironia da coisa. Tentamos buscar esperança com a jornada de Michelle, mas tenham certeza de uma coisa: a humanidade já foi destruída. No começo vemos amplos espaços vazios e depois nos deparamos com bolsões de pessoas. Mas, estes bolsões nos mostram uma humanidade que é qualquer coisa menos humana. A observar na história se existe alguma interação de Michelle com um ser humano.
Stalenhag nos presenteou com uma história poderosa. De como podemos sair de nossos caminhos e o quanto é necessário para isso. Apesar de toda a atmosfera futurista e meio cyberpunk da história, tudo o que ele apresenta aqui está a um passo de distância. Isso é o que é mais apavorante. As melhores histórias de ficção científica, aquelas que nos deixam de cabelo em pé, são essas como Neuromancer ou O Conto da Aia. Daquelas que nos fazem tremer na base e olharmos por cima do ombro. Sem falar na arte magnífica presente por toda a narrativa. Para mim, foi uma das melhores leituras do ano e é daquelas quando a gente lê no momento certo, no contexto certo e no humor certo. Tudo bateu... inclusive a mensagem da história.
Ficha Técnica:
Nome: Estado Elétrico
Autor: Simon Stalenhag
Editora: Quadrinhos na Companhia
Tradutor: Daniel Galera
Número de Páginas: 144
Ano de Publicação: 2022
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