Imagine acordar todos os dias no mesmo dia. Você já viu esta história? Acredito que sim. Mas, Dodsworth imagina alguém que acorda todos os dias no mesmo dia, mas em corpos diferentes e em versões alternativas do nosso mundo. Conheçam O Extemporâneo.
Sinopse:
O que você faria se nunca soubesse como, onde ou quando vai acordar? E se, cada vez que adormecesse, você se tornasse uma pessoa completamente diferente? “Todos os dias, você acorda e ao menos uma certeza serve de alento diante das inseguranças da vida: você tem um passado. […] E se eu insistir que tudo isso é mentira?” Em “Extemporâneo”, somos conduzidos pelos diários fantásticos de uma personagem em eterna mutação que tem, na escrita, sua única chance de tentar se encontrar em meio às múltiplas realidades para as quais desperta, dia após dia. Entre um Brasil nazista paralelo, uma idílica Itália revisitada e uma Irlanda que pode não ser bem a que conhecemos, aventure-se pelas vidas de alguém que habita muitos corpos e busca a saída ― ou ao menos um sentido ―para o ciclo eterno de renascimento e de esquecimento ao qual parece estar condenado. Ou seria condenada? E cuidado ao acordar, pois, como diz nosso guia-autor: “o que acontece comigo também acontece com você. A diferença é que você não lembra”.
Viver a vida ou perseguir o real?
Uma das coisas que eu mais gosto na escrita do Dodsworth é em como ele consegue sair do lugar comum. Como a escrita dele consegue beirar a ficção científica dura e, mesmo assim, atender a uma ampla gama de públicos. Extemporâneo talvez seja um dos livros mais acessíveis do autor para aqueles que querem conhecer a magia de suas histórias. Em uma linguagem simples e divertida, ele consegue quebrar o clichê do dia que se repete após o outro, plot que ficou famoso principalmente com o filme O Feitiço do Tempo.
Estamos diante de um personagem que já não se lembra mais de seu nome. Ele está preso em um loop infinito de um dia que se repete. Mas, no caso dele, ele ou ela sempre acorda em um corpo diferente e, às vezes, em um mundo diferente. Ele precisa viver aquele dia normalmente e, quando o personagem vai dormir, desperta em outro lugar e em outra pessoa. É divertido ver as checagens matinais que o personagem faz para saber se é homem ou mulher, onde acordou, como acordou. As possibilidades são infinitas. Tudo o que o nosso protagonista deseja é sair desse loop. Ao final de cada dia, sempre desperta em um lugar onde uma fila segue em direção a uma cachoeira onde todos tomam banho. Após aparecer uma luz branca, uma nova realidade surge.
Após tantas trocas, há uma sensação de cinismo da parte do personagem que depende muito até da personalidade da pessoa que ele incorporou. E o curioso é que as memórias anteriores são apagadas. A ideia aqui é encontrar uma maneira de manter essas memórias para tentar descobrir algum tipo de padrão que possa ajudar a sair dessa situação. Claro que existe uma força superior por trás de tudo o que acontece para o personagem. Mas, a maneira como Dodsworth brinca com a própria memória do personagem nos coloca em um dilema. Isso porque, como a narrativa é em primeira pessoa e a memória do personagem é manipulada constantemente, o protagonista é um narrador muito pouco confiável. Cabe ao leitor fazer as conexões para tirar suas conclusões.
"Não vou começar dizendo "era uma vez", eu não tenho esse direito. No meu caso, é sempre a mesma droga de vez. Sem metáforas envolvidas, por favor, entenda que estou sendo literal. Acha complicado? A única forma de fazer você entender é descrever o que há de extraordinário em minha banalidade [...]"
Em busca do Padrão
A maneira como Dodsworth brinca com o clichê é fenomenal. Logo de cara ele nos alerta que nem tudo será da maneira como você imagina. Se estamos esperando um Dia da Marmota em um mesmo mundo, ele nos dá uma rasteira de cara. A primeira história se passa no Rio de Janeiro em um mundo em que os alemães ganharam a Segunda Guerra Mundial. A sociedade é baseada em raças, muito na filosofia da raça ariana como superior. É uma subversão do tema que permite ao autor brincar com o que ele quiser. Os dois únicos limitadores é que a narrativa precisa se passar na Terra e alguns personagens como Hitler e Michael Jackson sempre se repetem. São espécies de constantes presentes em várias versões dos diferentes mundos. A posição destes personagens é sempre importante, mas seu papel pode mudar.
Eu queria ter visto o Dodsworth pirar mais na narrativa. Apesar de o primeiro mundo ser bem louco e scifi, os outros três são bem próximos à nossa realidade com pequenas mudanças aqui e ali. O que me pareceu é que a narrativa é muito mais intimista do que o próprio autor deixa transparecer à primeira vista. Já vou chegar nos personagens de apoio, mas Extemporâneo é mais sobre um personagem e sua capacidade de se conformar ou não com aquilo que lhe deram. Isso porque poderíamos vê-lo ser mais relutante em lutar contra o status quo, mas desde o princípio o personagem é alguém que deseja algo diferente. Às vezes ele coloca a si mesmo em situações bem perigosas, mas não consegue ver determinadas situações acontecendo. Gosto desta abordagem do autor porque muitas vezes o tema do herói relutante acaba se tornando uma justificativa para um personagem reativo. Este tipo de personagem me incomoda porque ele acaba não tomando a gerência de sua própria vida, deixando que os acontecimentos venham até ele.
Em algum momento a história vai sair de seu momento estático onde o personagem apenas nos apresenta como ele lida com as múltiplas realidades. É aí que o personagem decide sair em busca dos padrões que se repetem nos vários mundos. No começo, não percebemos muito onde eles estão, mas à medida em que a história avança, pouco a pouco o autor vai soltando os easter eggs. Quando chegamos no final da terceira parte e no início da quarta, nossa cabeça explode. Dodsworth deixou muitas pistas em sua narrativa, mas só vamos nos dar conta da presença delas tempos mais tarde. Isso porque o leitor tinha os dados, mas não conseguia relacioná-los ou decodificá-los da maneira correta, O que o autor fez na narrativa é brilhante, e é um testemunho à sua habilidade de contar uma história.
Várias Vidas
Das quatro narrativas, a segunda foi a que melhor manteve o equilíbrio entre mistério e personagens empáticos. Pelo fato de serem várias histórias que se interconectam, algumas delas acabam sendo mais poderosas do que outras. A narrativa de Cassandra é interessante porque acabamos nos importando com o personagem ali. A partir desse momento, desejamos acompanhar os personagens até o final. Stephanie funciona melhor do que Júlia, par romântico do personagem na primeira narrativa. A narrativa de mistério mantém o leitor preso na história até o final quando acontece um plot twist sensacional. Dodsworth brinca muito de plot twists ao longo de todo o livro, mas este aqui é, sem dúvida alguma, um dos mais impactantes.
Por conta dessa preferência por uma narrativa, eu senti que os personagens de apoio nas outras três narrativas ficaram mais fracos. Foi necessário dar atenção à narrativa principal para que a história caminhasse em frente. Por essa razão não foi possível estabelecer relações exatas com o protagonista. Além do mais, não foi possível dar profundidade a estes personagens de apoio. E digo isso porque possuir profundidade é essencial, já que Extemporâneo se baseia fundamentalmente na capacidade do personagem de criar laços e de o quanto estes são importantes para que ele possa seguir em frente e questionar sua realidade. Por exemplo, eu não senti a menor empatia pela psicóloga da terceira narrativa simplesmente porque não deu tempo de me importar com ela.
"... e esta Londres é tão pontual quanto todas as outras, penso. E corro. Eu já estou quase acostumada a estar sempre correndo, seja qual for a existência. Como eu disse, algumas coisas são sempre as mesmas."
O livro tem uma batida bem veloz porque o personagem tem pouco tempo para estabelecer suas relações. Os capítulos passam muito rápido e não é incomum lermos vinte, cinquenta páginas de uma vez só. Eu li no mesmo dia. Sim, essa é mais uma prova do poder da escrita do autor. E, mesmo sendo veloz, é um livro tranquilo de ler, sem o emprego de jargões ou expressões complexas. No final ele questiona o tema de sermos responsáveis por nossas próprias vidas; tomarmos a frente sobre o que desejamos para nós mesmos. Nunca esperar que um mecanismo chamado destino regule nossas escolhas. Nesse sentido, Dodsworth retoma temas que ele trabalhou, por exemplo, em Dezoito de Escorpião. Aliás, tem até uma brincadeira com este livro lá na quarta parte.
Enfim, terceiro ano lendo algo do Dodsworth, terceiro ano sendo arrebatado por suas narrativas. Ficou mais um livro do autor que eu estou guardando para 2020.
Ficha Técnica:
Nome: Extemporâneo
Autor: Alexey Dodsworth
Editora: Presságio Editora
Gênero: Ficção Científica
Número de Páginas: 252
Ano de Publicação: 2017
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*Material enviado em parceria com a editora Presságio.
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