Keigo é um menino problemático muito por conta de uma família devastada: um pai abusivo e uma mãe que abandonou o lar. Sua vida muda quando ele conhece Asato, um menino com o estranho poder de absorver as feridas de outras pessoas para si.
Sinopse:
Keigo e Asato frequentam uma classe para crianças que precisam de cuidados especiais. Um por que era agredido pelo pai; o outro, porque foi esfaqueado pela própria mãe. Os dois garotos são obrigados a guardarem em seus pequenos corpos o sofrimento, as feridas e as tristezas empurradas goela abaixo pelos adultos. Até que Asato descobre que possui um poder mais do que especial: ele agora é capaz de transferir os machucados alheios para o seu próprio corpo.
Esta é a segunda história do Hiro Kiyohara que eu leio que possui roteiro do autor Otsuichi. Ou seja, Kiyohara sabe adaptar muito bem roteiros literários para o formato de mangá. Com isso temos mais uma vez uma boa história dramática (com alguns elementos sobrenaturais) sendo adaptados para o formato de quadrinhos. Queria destacar isso inicialmente porque isso demonstra uma boa capacidade de mesclar imagem com texto.
Não vou comentar sobre a edição da JBC porque ela está bem simples, sem grandes destaques. Aliás, aplausos para a editora que, na época, manteve o formato com papel jornal deixando o mangá um pouco mais barato. Nos dias de hoje o pessoal criticaria horrores, o que é uma lástima. Nem todos os mangás precisam ver em um formato de luxo. Algumas coisas podem vir em um formato mais em conta, principalmente se se tratar de um material menos badalado. Isso abriria portas para uma série de outros materiais secundários. Mas, infelizmente, o público se acostumou com um formato gourmet demais. A tradução também está muito boa e eu não detectei quaisquer problemas textuais.
Como se trata de um roteiro adaptado, a preocupação maior é em saber se há uma clara distinção entre início, desenvolvimento e conclusão. E isso acontece muito bem. A história consegue se desenvolver bem ao longo de poucos capítulos e temos uma boa noção de conclusão narrativa. O autor amarra todas as pontas soltas muito bem. Outro ponto de roteiro muito bom é que a história se encerra bem. A gente fica com aquela sensação de que tudo o que era possível fazer se esgotou na história. Não há uma possibilidade de continuação. Kiyohara conseguiu adaptar até a última gota o que lhe foi confiado por Otsuichi.
Admito não ser um fã incondicional da arte do autor. Apesar de ele conseguir ter um bom design de personagens, eu os acho sempre muito parecidos. Não há tantas diferenças entre os personagens que ele cria, o que causa uma homogeneização muito estranha. Além disso, ele emprega muitos fundos brancos e cinzas que acabam sempre me incomodando. Gosto de uma preocupação com o que está por trás dos personagens. Se a arte compensasse ignorar o fundo, até daria para relevar, mas tal não acontece. Por outro lado, algo que eu aprendi a gostar na maneira como Kiyohara mexe na quadrinização é em como ele consegue contar situações dramáticas com poucas palavras. Ele não exagera nos diálogos, abrindo as cenas para as expressões dos sentimentos dos envolvidos naquele momento em específico. Já sei que nas próximas leituras que farei dos materiais dele, vou prestar bastante atenção nesta característica.
A história é linda. Talvez o que tenha mais me saltado os olhos nesta narrativa é o quanto a narrativa mexe com a gente. A temática empregada é a de órfãos abandonados em situações de extrema violência. Os dois personagens passaram por situações que nos deixam de coração apertado. Keigo foi vítima de inúmeros momentos de violência doméstica. A cena inicial em que ele aparece com uma marca de ferro nas costas é revoltante. Falo isso porque já tive experiências com alunos meus que tiveram situações semelhantes. E isso é uma daquelas coisas que sempre mexem conosco. O jovem tenta entender o que ele fez de errado para merecer aquilo. A primeira página mostra uma possível situação em que Keigo imagina um único momento na vida de pai e filho onde seu pai teria demonstrado algum carinho por ele. Mas, a situação é tão remota que ele não consegue distinguir se isso realmente acontece ou se é fruto de imaginação.
Toda a situação com a absorção de feridas vem do fato de ambos os personagens lidarem com a dor. Eles estão tão acostumados com a dor que ela faz parte dos seus seres. Tanto Asato como Keigo entendem a tarefa de retirar a dor das pessoas como uma espécie de penitência por algo que eles supõem terem feito e merecido aquilo. Quando paramos para refletir melhor, é de uma melancolia profunda. O caso de Asato é ainda pior porque sua mãe o esfaqueou e ele sequer entendeu a razão para aquilo. É a banalidade da questão da violência doméstica e ela de fato às vezes não tem uma explicação plausível.
Outra ferida emocional presente em ambos os protagonistas é o sentimento de rejeição. Oriunda das situações que ambos viveram: um abandonado pela mãe e o outro apunhalado por ela. No primeiro caso, a gente consegue racionalizar em partes. A história do pai abusivo teria justificado uma possível fuga da mãe quando o marido é internado no hospital em estado terminal. Esta é uma situação que não é tão incomum no Japão. Já vi esse tema sendo abordado em algumas animações recentes como Hanebado (em que a mãe de uma das protagonistas simplesmente abandona o marido e a filha sem explicação) e Toradora (o mesmo tendo acontecido com a protagonista Taiga que é deixada em um apartamento sozinha). Se vê que esta é uma situação social que precisa de atenção por lá. Por aqui, muitas vezes a mãe também abandona o lar, mas estabelece uma segunda família que pode ou não absorver a criança do casamento anterior.
Enfim, Feridas foi um mangá que tocou o meu coração. Talvez nem tanto pela arte que definitivamente não me agrada, mas com um roteiro competente e reflexivo. A obra mexe com alguns temas que nos fazem ficar revoltados com determinadas situações que acontecem na trama. Ficamos compadecidos de ambos os personagens que apenas merecem um pouco mais de carinho e amor.
Ficha Técnica:
Nome: Feridas
Autor: Hiro Kiyohara
Baseado em um roteiro original de Otsuichi
Editora: JBC
Gênero: Fantasia
Tradutor: Edward Kondo
Número de Páginas: 200
Ano de Publicação: 2013
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