As geleiras do mundo estão avançando e tornando o mundo mais frio. A população do mundo entra em desespero. No meio de toda essa confusão, um homem segue em uma perseguição obcecada pela mulher que deseja.
Sinopse:
Não é à toa que Jonathan Lethem afirma no prefácio desta edição que "Gelo" “é uma narrativa como a lua é a lua. Só existe uma.” Experimental, onírico e inebriante, o romance de Anna Kavan teve um percurso particular desde sua primeira publicação, em 1967. Se por um lado Kavan foi consagrada pela crítica ― que a filiou a escritores canônicos como Kafka, Woolf ou Beckett ― e despertou a admiração de autoras como Anaïs Nim e Doris Lessing, por outro lado, a ficcionista inglesa que adotava como pseudônimo o nome de uma de suas personagens foi menos lida do que merecia, de certo em razão de suas rupturas narrativas desconcertantes. Em meio a uma iminente catástrofe ambiental que destruirá o planeta com uma avalanche de gelo, três protagonistas inominados e envolvidos em um suposto triângulo amoroso tentam se salvar a um só tempo da destruição que se aproxima e uns dos outros. O narrador, “a garota” e o “guardião” estão sempre a um passo da aniquilação, da guerra dos homens diante da escassez de recursos, da violência de seu próprio relacionamento e das imensas paredes gélidas que engolfam seus caminhos em ambiente e tempo não definidos. Sempre no encalço da garota cristalina de cabelos brancos de tão loiros, os dois homens não poupam brutalidade para protegê-la, tratando-a como vítima incapaz e indefesa. Tudo em "Gelo" parece ruir e escapar inclusive da leitura mais atenta, como se a brancura gélida cegasse a percepção. Mas, como é comum acontecer com obras de vanguarda, o tempo vem realçando o caráter antecipatório do livro ao evidenciar mais de um aspecto central da narrativa: ao lado do protofeminismo do romance, subjaz nele a certeza de que ação destrutiva do homem sobre a natureza invariavelmente o levará à extinção. Embora temas pós-apocalípticos já fossem comuns na literatura do período pós Segunda Guerra Mundial, sobretudo pela falta de saída em que se encontravam os indivíduos fraturados, é inevitável ler "Gelo" nos dias de hoje sem associá-lo ao panorama das mudanças climáticas, tema do posfácio desta edição, assinado pela pesquisadora inglesa Victoria Walker. Não apenas pela escolha temática, mas por sua linguagem e forma, o romance pode ser lido como uma poderosa representação literária do antropoceno e do apocalipse ecológico prenunciado pela genialidade fugidia de Kavan.
Aviso de gatilho: violência contra a mulher, insinuação de estupro
Se você é sensível a esses temas, por favor, não leia a resenha
Gelo, da autora Anna Kavan, é um livro que me incomodou em muitos níveis. Daquelas leituras que você faz que são bons livros, mas o personagem é um canalha em tantos níveis que te deixa enojado. Um livro onde as cenas transbordam violência, seja concreta, seja aparente. E se você não se incomodar com o que o livro apresenta, alguma coisa está errada com você. Entrei em contato com Gelo graças a um clube de leitura que participo mensalmente chamado Filamentos onde discutimos obras cujo tema perpassa o debate sobre o Antropoceno e as alterações causas pelo homem no planeta. E este é um livro que se encaixa na categoria de ficção pós-apocalíptica (de certa forma) e que irá discutir muitos dos problemas ambientais que conversamos hoje. Mas, é um livro complicado de se chegar até o final. Em vários momentos me deu embrulho no estômago, fui surpreendido com algumas descrições bem complicadas e no final queria que o protagonista se explodisse ou fosse para o inferno.
Antes de passar para falar sobre o livro, queria dar uma puxada de orelha na editora Fósforo. Esse é um livro pesado que dispara vários gatilhos relacionados à violência contra a mulher. Não tem nenhum aviso sobre isso no começo do livro. E a obra da Anna Kavan é abundante em descrições de violências as mais variadas e abjetas possíveis. O livro é de 2022 e a gente está cansado de saber que tem que destacar esse tipo de coisa em leituras mais sensíveis. Não pode passar algo assim. Precisa estar na orelha, na quarta capa ou na página do título. Quem tem gatilho com situações de violência, vai ter sérios problemas. O protagonista se deleita com descrições de violência contra a garota a qual ele está atrás. Para não dizer que só há problemas, a edição da Fósforo é bem minimalista, com um design que gostei bastante e combina com a vibe do livro. A tradução está muito boa e a leitura flui bem. Camila von Holdefer fez um ótimo trabalho e conseguiu manter a essência seca da escrita da autora. Tem um prefácio de Jonathan Lethem, mas o meu destaque vai para o extenso posfácio de Victoria Walker que é basicamente um artigo falando sobre as conexões de Gelo com as discussões sobre desastres naturais e o papel do homem. Victoria é uma especialista na obra de Anna Kavan e vai fornecer amplos detalhes sobre o processo de escrita da autora, sua trajetória e como Gelo se insere no hall de grandes obras do gênero.
"Tinha a consciência permanente de que estava indo para a execução. Não que minha própria morte parecesse importar. Eu tinha vivido, feito coisas, visto o mundo. Não queria envelhecer, decair, perder minha inteligência e as faculdades físicas. Mas sentia essa urgência compulsiva de ver a garota mais uma vez; ser o primeiro a encontrá-la."
O protagonista é um homem obcecado por uma linda garota de longos cabelos prateados. Um amor do passado ao qual ele deixou escapar e agora tem sonhos estranhos com ela. Quando o protagonista sai em busca dela para saber de sua vida, um terrível desastre começa a se acometer sobre o planeta. As geleiras do mundo estão se espalhando e tudo está ficando mais frio. Nesse espetáculo do desastre, com vulcões de gelo jogando cristais mortais por toda a parte e animais e homens morrendo de frio, a jornada do protagonista se torna uma fuga contra os efeitos nocivos desse inverno mortal. Na confusão gerada pela mortandade causada por isso, a jovem garota foge de sua casa e acaba indo parar nas garras de um homem conhecido como "guardião". Dois homens que desejam a mesma mulher. Para possuí-la, amá-la, machucá-la e destruí-la. A destruição do mundo é também a destruição destas almas.
A escrita de Anna Kavan é de um estilo meio experimental que possui uma crueza e um polimento que balança o leitor. Seus parágrafos são repletos de detalhes interessantes sobre o que o personagem está pensando e o que os outros estão. É curioso como ela mexe com a mecânica do fluxo do pensamento para transformar em algo só dela. E esse pensar pelos outros possui um segundo detalhe mais profundo. Como a narrativa é em primeira pessoa, representando um personagem que é enganador e iludido em uma farsa que serve apenas para acobertar seu próprio coração sombrio, o seu "pensar pelo outro" pode não ser algo real. O próprio protagonista escreve o que o outro está pensando... mas será que o outro está pensando isso mesmo ou é o que o protagonista acha que é? Nenhum dos personagens é nomeado, sendo retratados como o "eu" (o narrador), a "garota" e o "guardião". Isso dá um aspecto de aridez que é como se estivéssemos em um deserto gelado. Não importam os nomes. Não apenas não sabemos os nomes, como também não temos noção de em que lugar se passa a história. Kavan dá algumas pistas de que poderia estar se passando na Escandinávia, mas são só isso: pistas. A história segue em um rumo de fuga o tempo todo e somos transportados para várias paisagens em ruínas, alguns momentos oníricos até chegarmos a um destino final. Gostei que o final ele é subjetivo. Depende de como o leitor vai entender as últimas páginas e ele tanto pode ser entendido como um final ameno ou um desastre absoluto.
"Eu era parte de tudo isso, estava irrevogavelmente envolvido com eventos e pessoas neste planeta. Foi devastador rejeitar o que parte de mim mais desejava. Mas sabia que meu lugar era aqui, em nosso mundo condenado à morte, e que teria de ficar e assistir até o final."
O contexto onde a história se passa é esse mundo em um momento trágico. Todos estão vivendo em uma situação-limite em que as pessoas estão desesperadas para sobreviver. Isso leva os homens a momentos de bastante crueldade com o próximo. Alguns vão argumentar a estranheza de mostrar um mundo invernal, não um aquecimento global. A época em que Kavan escreveu Gelo não pensávamos em efeito estufa ou aquecimento das calotas polares. Contudo, a ficção apocalíptica estava em alta e elas prenunciam outras. Kavan é contemporânea de obras como The Drowned World, do autor J.G. Ballard (um crime esse título não estar nas prateleiras no Brasil) e Hothouse, outro clássico do cli-fi escrito por Brian Aldiss. Kavan é fruto de um período sombrio da história da humanidade quando os artistas de diversos campos saíram desiludidos com o final da Segunda Guerra Mundial. Achava-se que os conflitos estariam resolvidos, que o senso de liberdade prevaleceria e caminharíamos para um período de luz. Não foi bem isso o que aconteceu. Autores como F. Scott Fitzgerald pertencem a esse período com uma visão mais pessimista e cínica sobre a vida. Kavan se encaixa nisso. É um mundo escuro e frio, o que reflete essa visão de que estamos destruindo o lugar em que vivemos. O começo da história é como o cogumelo nascido da bomba de Hiroshima, produzindo todos esses efeitos adversos vistos depois. O contexto da história é de desesperança, de luto. Não existe salvação. É um mundo em estado terminal e a humanidade só se separa com tudo o que está acontecendo.
O protagonista é um homem desprezível. Ele segue em sua busca por uma garota angelical, ao qual ele tem um amor obcecado. Sua postura é covarde, ele se mantém alheio a todos os problemas que se apresentam ao seu redor. Em diversos momentos lhe é dada a oportunidade de salvar vidas graças à sua posição social. Ele prefere continuar em sua cruzada pela posse de uma mulher a qual ele não sabe como se sente. O seu egoísmo é patente nas páginas do livro e ele vai empregar de quaisquer meios possíveis para chegar à sua musa encantada. Tem um momento em que o guardião diz a ele que eles são parecidos e o protagonista refuta isso de forma veemente. Mas, logo depois ele se pega a refletir que ele, de fato, é parecido sim. Por mais que ele esconda suas ações, o seu desejo de posse da garota é quase doente e essa posse não se trata de um sentimento verdadeiro de amor, até porque ele nem sabe se sente amor por ela. O que as falas do protagonista deixam transparecer é uma percepção de devoção como os personagens vitorianos tinham por suas amadas. Uma devoção que, no caso dele, beira à idolatria. Mas, a beleza disso termina aí. Assim como o guardião, ele deseja machucar a garota a qual persegue. É que ele se pega em um conflito moral entre a execução da violência e a imaginação sobre ela. Ele fica no meio do caminho.
Parando para pensar depois, Kavan nos apresenta uma garota cujas feições são angelicais, delicadas, frágeis como um objeto de porcelana. A todo o momento, os personagens masculinos desejam maculá-la. Esse ser angelical precisa ser quebrado, fraturado, sangrado. O guardião executa as violências, exercendo sua força cruel sobre seus braços e pernas, a deflorando pelo prazer de manchá-la. Tudo é mostrado ou insinuado das piores formas possíveis. Tem uma cena que não desejo dar detalhes da mesma, em que o guardião está pintando a garota. Aquilo é de um grafismo cruel quase bíblico. Outros momentos envolvem os momentos de tensão social em que a personagem tenta fugir e acaba sendo ferida de maneira cruel no processo. O narrador é movido pela sua obsessão pela garota, mas Kavan parece fazer uma paródia do amor barroco. Do amor não correspondido e inalcançável. É a busca pelo amor impossível que move a trama. Só que diferente dos personagens desse tipo de narrativa, o narrador é completamente inerte diante das situações que lhe são apresentadas. E essa inércia o deixa frustrado e nervoso. Suas ações vão se tornando cada vez mais erráticas com o desenrolar da trama.
Outro detalhe é que o personagem imagina situações bem vívidas. Seus sonhos são repletos de detalhes onde ele é o herói e precisa realizar alguma ação que o torna capaz de estar com seu amor impossível. Só que tem um detalhe: em todas as vezes a garota acaba morta em situações cada vez mais bizarras. O grau de violência cometido contra ela só aumenta desde espancamentos, abusos e até ela ser devorada por um suposto dragão, tendo deixado seus restos mortais embaixo de um fiorde. Na minha visão, é como se o narrador extravasasse a violência que ele gostaria de causar a uma mulher que não atendia aos seus desejos cada vez mais doentios. Quando ele se depara frente a frente com a garota, ele não sabe o que fazer. Porque aquilo que o movia era o perseguir a garota. Era o estar em seu encalço. Observá-la à distância. Tem alguns momentos em que a garota sofria abusos em que ele nada fez para deter os seus algozes. Os mundos oníricos que o personagem imagina são os mais variados: cenário de fantasia, um que parece saído de um filme noir, outro onde são confrontos de exércitos. Kavan é inteligente e não anuncia quando ela faz a troca entre mundo real e mundo de sonhos. Em outros romances, eu poderia entender isso como uma falha, mas no dela, mostra o quanto o personagem não consegue mais discernir entre realidade e ilusão. Seus sentimentos estão tão além do alcance que ele prefere permanecer em um mundo de abstração do que encarar os seus mau feitos no mundo real.
"Ambos a perseguiam, ela não entendia por quê. Mas aceitou, como aceitou tudo o que aconteceu com ela, esperando ser maltratada, convertida em vítima e por fim destruída, fosse por forças desconhecidas ou por seres humanos. Esse destino parecia esperar por ela desde sempre, desde tempos remotos. Só o amor poderia tê-la salvado. Mas nunca tinha buscado o amor. O papel dela era sofrer; isso era sabido e aceito. Fatalidade trazia resignação. Não adiantava lutar contra o destino. Sabia que havia sido derrotada antes de começar."
Gelo é um romance poderoso e violento ao mesmo tempo. Fruto de uma autora que possuía uma visão radical sobre o desenvolvimento da humanidade no pós-guerra. A violência que ela apresenta em sua narrativa é apresentada com tamanha naturalidade que choca o leitor. Me peguei algumas vezes surpreso com... "espera aí, isso aconteceu mesmo?". Ao mesmo tempo, é uma bela discussão sobre o antropoceno e o quanto nos desencantamos com o papel do homem como transformador. Essa transformação hoje atingiu patamares parasitários em que a natureza parece desejar se vingar de uma criatura que lhe cometeu tamanhas atrocidades. A narrativa é impactante, reflexiva e cruel. Daquelas que o leitor ficará remoendo por alguns dias. Vale a pena? Sim. Precisamos de experiências boas e ruins para formarmos uma consciência mais reflexiva sobre o nosso papel no mundo.
Ficha Técnica:
Nome: Gelo
Autora: Anna Kavan
Editora: Fósforo
Tradutora: Camila von Holdefer
Número de Páginas: 208
Ano de Publicação: 2022
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