Gótico Nordestino tem escrita com os pés no chão, sem excentricidades para dizer o quanto essa região do Brasil é diversa, por meio de contos apavorantes.
Sinopse:
Em nove contos, Cristhiano Aguiar mergulha nos elementos góticos e folclóricos ― buscando referências nas séries televisivas, no cinema e nos quadrinhos ― para criar narrativas vibrantes e inesperadas, que fogem da prosa literária tradicional. As histórias vão desde os tempos do cangaço, passando pela ditadura militar e chegando até os ecos sombrios de um futuro próximo.
Um menino é obrigado a cruzar o descampado perto do vilarejo de Riachão da Frente para levar uma carta que a mãe escreveu a Zé Barbatão, o cangaceiro local. Na madrugada, as sombras no caminho e a ameaça do bando crescem conforme a narrativa avança, e a realidade parece a ponto de se romper. “Anda-luz”, história que abre este volume, prenuncia o que virá nos oito contos seguintes.
Em Gótico nordestino, Cristhiano Aguiar caminha entre o sonho e a vigília, dialoga com outros gêneros e compõe um livro totalmente distinto do usual.
A publicação deste livro a partir de um dos selos da Companhia das Letras já configura uma vitória, que é a de ter mais narrativas brasileiras publicadas nessa grande editora, e ainda por cima com representatividade e de aspectos remetentes ao fantástico. Este livro não faz apelo escancarado a gírias ou gestos estereotipados como se o nordestino fosse uma pessoa excêntrica. De escrita realista, os contos são brasileiros, tal como o nordeste também é. Cristhiano Aguiar é o autor de Gótico Nordestino, uma coletânea de contos de terror publicada em 2022.
Confira a seguir a avaliação de cada conto:
1 - Anda-Luz Avaliação:
Chiquinho acorda bem cedo, de madrugada, a pedido de sua mãe, para entregar uma encomenda a Zé Barbatão, um cangaceiro. Chiquinho é apenas um menino, ainda assim consciente do porquê ter um café da manhã generoso, da relação de mamãe com o coronel, e dos bons motivos de se ter medo. No longo caminho a seguir ele encara seus medos de rotina, segue os conselhos da mãe e os do padre Antão. No encontro de Zé Barbatão, descobre que os adultos também têm os seus medos.
E este é o assunto do conto: o medo. Não importa a idade ou o porte do sujeito, eles enfrentam o desconhecido com o aprendizado que teve, provocando assim a sua reação. Ao longo da narrativa temos descrições que retratam a vida dessa gente representada no conto, e as descrições são aterrorizantes e ao mesmo tempo afirmam o quão cotidianas são, até encerrar o conto com algo que foge do comum e provoca reação desordenada, afinal ninguém aprendeu a lidar com esse medo, exceto Chiquinho, que se aproveitou do pavor alheio para escapar do próprio.
“No meio da noite e nas esquinas dos caminhos das estradas, as assombrações são luz e gritos.”
2 - As Onças Avaliação:
As pessoas vivem em quarentena, abrigadas em seus lares enquanto as onças trucidam quem encontram na rua. Eram onças diferentes dos animais irracionais já conhecidos, afinal subjugavam os próprios humanos. Por mais perigoso que fosse, é necessário sair às vezes para repor o estoque de mantimentos e remédios, como Diana e sua mãe precisam fazer para cuidar do pai e ex-marido.
O autor faz várias descrições indiretas sobre o fenômeno paranormal deste conto, atiçando a curiosidade por não dar todos os detalhes de uma vez e preparar o leitor para o desfecho. Já outras menções são diretas, quando se tratam do perigo iminente e provocam o pavor correspondente nas protagonistas e a refletir também no leitor. Todas essas descrições dão dicas do que aconteceu com o pai de Diana, mas se acaso descobrir o quanto antes, o espanto ainda se mantém graças à composição da cena.
“O que é uma filha, afinal? Anjinho, arma, continuidade, salvação?”
3 - Lázaro Avaliação:
Este conto extrapola sobre uma nova sequela da covid-19 causada por outra cepa: a de os infectados ressuscitarem com o tempo. Os personagens até tentam afirmar o acontecimento como milagre, algo bom, quando as consequências horríveis dessas pessoas renascidas, mas distorcidas, sem fala e demais características humanas desprovidas são evidentes.
Há inúmeros contos de terror explorando uma morte cruel, já este trata do horror em uma pós-vida. Do renascido fadado a ser um estorvo aos familiares e virar pauta de discussões religiosas, jurídicas — questões de herança e inventário — e de políticas públicas. Mesmo diante do novo fenômeno causado pela covid-19, o conto remete aos comportamentos negligentes diante da doença, a aglomeração, a teimosia contra o uso de máscaras e a perturbação causada pelos indiferentes. Aqui toda fagulha de positividade é apagada pelo apontamento de possíveis erros, como o da protagonista Olga ter de lidar com a parente renascida por viver dessa forma.
“— Sim, pode vir pegar: o corpo da sua avó acordou. — Disse, pelo telefone, o funcionário do IML.”
4 - Firestarter Avaliação:
O conto trata de uma nova febre bem quente — trocadilho intencional — entre as pessoas como o protagonista/narrador: o de vislumbrar incêndio e “colecionar” suas chamas por meio de fotos e vídeos compartilhados atrav[es de dados móveis 7G. Tudo interligado à tecnologia, tem até aplicativo próprio para avisar onde há incêndios próximos para a galera curtir. Tem gente preocupada com este tipo de hobby, sempre tem, mas tudo faz parte da experiência, e não existe ninguém capaz de impedir o protagonista a aproveitar.
É uma narrativa absurda, mas inteligente. Extrapola a especulação ao tratar a realidade de jovens que buscam o perigo como entretenimento, e explora isso durante todo o conto, causando um contraste, um desconforto a quem lê em seu cômodo — ou num banco de madeira a céu aberto, num banco de ônibus — sobre personagens que só se importam em arriscar suas vidas para ver a beleza dessas chamas, conforme eles falam, até chegar ao extremo deste vislumbre.
“As telas dos nossos celulares exibiam o app TPF — Tá Pegando Fogo — a coisa mais importante do entretenimento desde a criação do primeiro Pokémon.”
5 - A mulher dos pés molhados Avaliação:
A família de Elvira é amaldiçoada, conforme seu pai dizia. Já ela, cética, questionava a maldição como resultados das péssimas escolhas e atitudes, embora receava do que poderia acontecer se for verdade. A narrativa não possui um tom peculiar como nos contos anteriores, limita-se a contar a história de Elvira e seu ceticismo até chegar na revelação com os elementos perturbando a sanidade humana, como é a proposta das histórias de terror. Até chegar neste desfecho, a escrita explora os problemas sofridos por esta família patriarcal de maioria feminina, o que torna interessante o questionamento das supostas maldições serem apenas os devaneios do pai de se eximir de sua culpa.
“— [...] Não tem forças macabras, painho, guiando nossa vida. Não tem satanás que justifique um macho bater na mulher.”
6 - Tecidos no jardim Avaliação:
O narrador estava passeando por Campina Grande. Em um dos pontos da cidade encontrou a tal “Casa dos Ingleses”, mas o que chamava a atenção na praça do entorno é a paineira, com os seus frutos brancos se desfiando feito teias de aranha, o que não causa medo nele, a não ser que...
É um conto curto que brinca com as percepções do narrador, com as experiências de vida que relata brevemente, para então provocar o efeito inusitado, quem sabe até um acontecimento paranormal diante dele, mesmo onde as crianças brincam sem preocupações, apenas ele e sua namorada pressentem. A narrativa se encerra levantando uma questão, esta que pairará no leitor que irá sentir o seu efeito.
“Até mesmo na placa a família desaparecia.”
7 - A Noiva Avaliação:
Após uma cena em que seu pai desmaiou diante de um manequim nu, o narrador conta sobre o que o fez desmaiar, uma lembrança de sua puberdade. Seu pai era o típico garoto tímido, levado pelos amigos por não ter iniciativa nem quando se deparava com os elementos aflorando os desejos de meninos jovens. Por toda a lembrança há este embate quanto à Noiva que lhe dá essas sensações incisivas escondendo deles os fatos que estavam escancarados, que quando revelado assusta a todos.
“O passado, me explicaria depois, tinha, de uma vez só, cravado os dedos na sua cabeça.”
8 - Anna e seus insetos Avaliação:
Anna enfrenta dois terrores: uma casa cheia de insetos que moram ali por causa do marido. A narrativa mescla os perigos físicos com a tensão psicológica da protagonista, cada característica acentuando o temor da outra, evoluindo gradativamente feito degraus de uma escada que Anna poderia tropeçar e se espatifar até o chão a qualquer momento. Quanto mais longe fosse, mais machucada ficaria, mas não teria como ficar parada, afinal estava sangrando. É uma sátira aterrorizante sobre o comodismo.
“[...] deixa de ser ridícula, Anninha. Você não é tão importante assim para morrer nessa história.”
9 - Vampiro Avaliação:
A vida da jovem protagonista é condicionada à presença do vampiro em sua pequena cidade, o qual interfere em inúmeros aspectos de sua rotina. O conto faz uma abordagem bem interessante de causar o temor do ser sobrenatural sem ele sequer aparecer, pois só de saber da sua presença na cidade cria um alvoroço, ou quem sabe ele nem seja real, o leitor pode inferir de o causo ser um delírio coletivo, mas que acontece tragédias reais as quais os personagens remetem a essa figura. Em ambas as interpretações o efeito sobre a protagonista é o mesmo, de ter sua vida moldada por causa deste mito.
“Acho que nunca quero saber, pensei em responder.”
Ficha Técnica:
Nome: Gótico Nordestino
Autor: Christiano Aguiar
Editora: Alfaguara
Número de Páginas: 136
Ano de Publicação: 2021
Link de compra:
*Material enviado em parceria com a Companhia das Letras
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