Neste clássico da literatura de ficção científica, Octavia E. Butler nos apresenta o drama dos negros que viveram no sul dos EUA no século XIX. Isso através dos olhos de uma mulher de 1976 que viaja no tempo até este período. Mas, Dana não é qualquer mulher. Dana é uma mulher negra em uma sociedade escravocrata.
Sinopse:
Em seu vigésimo sexto aniversário, Dana e seu marido estão de mudança para um novo apartamento. Em meio a pilhas de livros e caixas abertas, ela começa a se sentir tonta e cai de joelhos, nauseada. Então, o mundo se despedaça.
Dana repentinamente se encontra à beira de uma floresta, próxima a um rio. Uma criança está se afogando e ela corre para salvá-la. Mas, assim que arrasta o menino para fora da água, vê-se diante do cano de uma antiga espingarda. Em um piscar de olhos, ela está de volta a seu novo apartamento, completamente encharcada. É a experiência mais aterrorizante de sua vida... até acontecer de novo. E de novo.
Quanto mais tempo passa no século XIX, numa Maryland pré-Guerra Civil – um lugar perigoso para uma mulher negra –, mais consciente Dana fica de que sua vida pode acabar antes mesmo de ter começado.
“Impossível terminar de ler Kindred sem se sentir mudado. É uma obra de arte dilaceradora, com muito a dizer sobre o amor, o ódio, a escravidão e os dilemas raciais, ontem e hoje”. – Los Angeles Herald-Examiner
Antes de mais nada, é preciso parabenizar de pé o esforço da editora Morro Branco em publicar esta obra seminal de ficção científica no Brasil. Em um país miscigenado e formado por um enorme contingente de população negra, é inadmissível que somente após quase quarenta anos de publicação, Kindred tenha chegado ao Brasil. Com tantas editoras grandes e dedicadas a publicar grandes nomes da literatura mundial, não posso conceber que ninguém tenha se dado conta do furo que é não publicar a autora ou pelo menos esta obra em especial no Brasil. Foi preciso aparecer uma editora com uma proposta inovadora e com absoluta coragem em seus pouco mais de um ano de vida para que isso acontecesse. Não é porque a editora é parceira do blog, mas como é bom ver um trabalho que não teme publicar obras reflexivas e que fazem o leitor pensar. Para mim, a Morro Branco é a sensação do ano em 2017 e dificilmente alguma outra vai conseguir tirar este título. Talvez não com o volume de outras editoras, mas certamente pela escolha certeira dos títulos publicados.
A escrita da Butler é bem diferente do que eu imaginava. Kindred tem um status diferente de outras obras de gênero. É considerada alta literatura em muitos meios, não caindo tanto nas graças dos aficcionados de ficção científica. Porque é um livro diferente. É aquele livro que possui uma aura majestática, aquele espírito que somente poucas leituras como Guerra e Paz ou Ulisses (de James Joyce) possuem. Aquele aspecto intimidados. Porém, quando você começa a ler Kindred, tudo isso cai por água abaixo. A autora coloca nas linhas uma escrita deliciosa e as páginas voam em uma velocidade inacreditável. Me peguei lendo 80 páginas sem cansar. Eu queria saber o que viria a seguir sempre. E olhe que o livro possui uma narrativa em primeira pessoa, uma ferramenta que eu não aprecio tanto. Aqui ficou genial porque cumpre o propósito de nos apresentar uma realidade cruel a partir dos olhos de uma mulher que está fora de seu tempo. Os diálogos são o ponto alto da narrativa porque comprovam a diferença de vocabulário e tratamento entre alguém de 1976 e pessoas de 1816. O encadeamento de palavras empregado é bem específico do período, um cuidado bem especial tomado pela tradutora. Aos poucos vamos vendo o quanto o fraseamento e o vocabulário da Dana vão se alterando por conta de sua longa permanência em outra época.
“Não sabia que as pessoas podiam ser condicionadas com tanta facilidade a aceitar a escravidão.“
Temos também um trabalho muito grande no componente visual e no emocional. São características que chamam a atenção porque serão elas que irão compor a empatia com o leitor. O fato de a autora se preocupar em tocar nossos corações através de sua escrita colabora para dar um tom todo especial à história. Dana nos leva até o período tamanha a riqueza de detalhes e sensações colocadas pela autora. Fica também os meus parabéns para a tradutora que fez um trabalho impecável no livro. Seria muito simples cair no erro e traduzir erroneamente expressões típicas da época ou descuidar diante das formas como os personagens falavam na época.
Os personagens são riquíssimos em detalhes e nuances. Como estamos vendo a história diante dos olhos da Dana, precisamos entendê-la como uma narradora não-confiável. Isso porque a narradora nem sempre consegue captar as verdadeiras intenções de outros personagens. E isso vai ficar claro à medida em que a narrativa vai se desenvolvendo. Butler nos apresenta uma mulher corajosa e com ideais fortes, mas que ao mesmo tempo pode ser fragilizada diante de uma situação de violência extrema. O que Dana passa ao longo da história vai fazendo ela questionar a si mesma e aqueles que a cercam. Nem sempre suas decisões são as mais acertadas. Já Rufus começa com sendo um menino em apuros e vai se transformando pouco a pouco em um homem de seu tempo. Aliás, Rufus é o exemplo clássico daquela máxima que "as pessoas não mudam, mas apenas se adaptam ao seu meio". A relação entre Dana e Rufus é extremamente complexa e nem sempre o leitor vai compreendê-la de todo. De certa forma, eu consigo meio que entender algumas das escolhas da protagonista. Posso não concordar com algumas, mas compreendo as razões.
“Então, por algum motivo, me distraí com um dos livros de Kevin sobre a Segunda Guerra Mundial – um livro com memórias de sobreviventes de campos de concentração. Histórias de surras, fome, sujeira, doença, tortura e todo tipo de degradação. Como se os alemães tentassem fazer em apenas um ano o que os americanos praticaram por quase duzentos anos.”
Outros personagens como Tom Weylin, Margaret, Kevin, Carrie, Nigel, Alice, Sarah tornam a história inesquecível. Não consigo descartar nenhum deles. Seja Kevin e sua eterna parceria com sua esposa e seu amor incondicional, Margaret e sua inconstância e amor por seu filho, Tom e sua crueldade aliada a um senso deturpado de justiça, Carrie e seu jeito quieto e mudo de ser, Nigel e sua coragem, Sarah e a forma materna como ela trata os demais escravos da casa e, claro, Alice e sua objetividade em ver as coisas. Todos os personagens são muito vivos em suas características, suas virtudes e suas falhas. Ter de me despedir deles ao final da história foi duro, foi como se eu deixasse pessoas conhecidas para trás.
Falar de escravidão é um assunto considerado tabu em alguns lugares. Isso porque não basta comentar apenas sobre como esta se deu, mas as consequências sociais deixadas por ela. E isso porque a história se passa nos EUA que teve um volume muito menor de escravos e por muito menos tempo do que no Brasil. Aqui, a escravidão se estendeu por mais de trezentos anos e foi responsável pela morte e devastação de milhões e milhões de almas que vieram do continente africano. Mais de um terço de todo o volume de escravos negros africanos traficados vieram ao Brasil. Assuntos considerados polêmicos como as cotas raciais não deveriam ser sequer polêmicos. Nós, homens brancos, devemos muito por conta dos erros de nossos antepassados. E acho que jamais conseguiremos pagar completamente por isso. Escravidão é uma violência extrema. Aqueles que leram Kindred podem perceber isso na maneira como a protagonista vai nos mostrando pouco a pouco como ela destrói o ser humano irremediavelmente.
Quem imagina que ser escrava doméstica é menos pior do que trabalhar na lavoura vai mudar rapidamente de ideia. Existe tanta humilhação, abuso e violência na casa grande que as mulheres acabam acionando mecanismos de auto-defesa como a aceitação tácita, a fuga (o que acaba levando à morte) ou ao suicídio. E a autora consegue nos mostrar isso com uma riqueza e uma sutileza incríveis. Até mesmo detalhes pequenos não escapam dela. Recomendo aos leitores que façam uma leitura atenta neste livro. A quantidade de informações e detalhes que vocês irão captar são incríveis como o porquê da submissão diante da escravidão, a maneira como os escravos eram tratados pelos senhores, como eles sobreviviam e como estabeleciam relações sociais. É preciso destacar acima de tudo a maneira como os EUA formaram uma sociedade escravocrata única. Os senhores de escravos nos EUA tentaram "procriar" seus escravos de forma a não precisar "reabastecer" sempre o seu contingente, algo que não foi feito pelos senhores de engenho no Brasil. Isso levou à formação de um núcleo social bem específico nas fazendas. Até acho que a maneira como o americano sulista encara o escravo até os dias de hoje é fruto dessa estranha formação social.
O elemento de ficção científica, ou seja, a viagem no tempo, é mais um instrumento para fazer a história acontecer do que algo levado a sério. Alguns leitores dirão que Kindred pode ser encaixado no gênero do realismo mágico. Discordo. Discordo porque esse é um gênero específico de autores latino-americanos além de uma série de outras nuances de escrita como marcas regionalistas entre outros. A autora não se preocupa em explicar como a viagem no tempo funciona, apesar de ela tentar esboçar uma explicação em alguns momentos. Mas, isso nunca se dá de todo. Aliás, fica novamente o aviso de que esta não é uma obra de ação, mas um livro voltado para a discussão de um tema que é a escravidão no sul dos EUA no século XIX, o preconceito racial e a violência que um ser humano pode provocar. Quem procura outro tipo de obra, sugiro iniciar outra leitura.
"Já tinha visto pessoas serem surradas na televisão e nos filmes. Já tinha visto sangue falso nas costas delas e ouvido gritos bem ensaiados. Mas não havia ficado perto e sentido o cheiro do suor nem ouvido as súplicas e as orações das pessoas humilhadas diante de suas famílias e de si mesmas. Eu provavelmente estava menos preparada para a realidade do que a criança que chorava não muito longe de mim. Na verdade, ela e eu estávamos reagindo de modo muito parecido. Meu rosto estava banhado em lágrimas. E minha mente ia de um pensamento a outro, tentando me desligar das chibatadas. Em determinado momento, essa covardia extrema até trouxe algo útil. Um nome para os brancos que atravessavam a noite no Sul pré-guerra, derrubando portas, surrando e torturando negros."
Mas, mesmo que não seja o seu estilo de livro, Kindred é uma leitura especial. Recomendo demais lerem esta obra incrível. Em toda sua violência, a autora é capaz de nos apresentar uma realidade cruel que aconteceu de fato entre nós. E nossos antepassados foram responsáveis diretos por causar sofrimento a muitas pessoas. E, mais do que isso, essa escrita me encantou demais. Quero muito que a editora publique outros livros da autora. Este aqui já é um clássico instantâneo.
Esta resenha foi recomendada na campanha da editora educativa Twinkl sobre a importância das mulheres na literatura.
Ficha Técnica:
Nome: Kindred
Autora: Octávia E. Butler
Editora: Morro Branco
Gênero: Ficção Científica
Tradutora: Carolina Caires Coelho
Número de Páginas: 448
Ano de Publicação: 2017
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*Material enviado em parceria com a editora Morro Branco